terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Valter Pomar e o escafandrista


Valter Pomar não aprecia meu estilo literário: quando sou direto, ele o rejeita; quando sutil, não o entende. A linguagem, disse Marx, é a consciência prática, razão pela qual não devemos brincar com ela. No Brasil, a estranha combinação entre a recusa machadiana ao debate público e o bom mocismo dominante nas filas da esquerda convertida à ordem liberal produziu um deserto no qual a conduta avessa à polêmica não parece ser signo de impostura e covardia, mas, ao contrário, de sapiência.

Portanto, quando recebi sua crítica ao meu artigo Dentro da Baleia. A esquerda liberal e a eleição da presidência da câmara dos deputados, considerei uma bela oportunidade para sair da vala comum do silêncio cúmplice sobre questões essenciais, que, finalmente, confina a esquerda liberal à manufatura da opinião pública feita pela imprensa burguesa onde seus principais dirigentes imploram espaço.

No entanto, ao ler o texto de Pomar, recordei de imediato uma antiga advertência de Gramsci quando o sardo, há quase um século, nos Cadernos do Cárcere, recomendava que sempre devemos “ser justos com os adversários, no sentido de que devemos nos esforçar por compreender aquilo que queriam realmente dizer e não se agarrar maliciosamente aos significados superficiais e imediatos de suas expressões”. Pomar, não obstante, foi mais longe: não somente não tomou superficialmente meu parágrafo como pretendeu atribuir sentido oposto ao que escrevi!!!!

Na resposta, Pomar evitou todos os temas espinhosos e o núcleo racional de meus argumentos: a decadência moral, política e programática do PT, que, uma vez mais, se expressa na tentativa de “derrotar o governo”, elegendo um deputado que é expressão acabada da fração financeira turbinada por Maia e garantia última de Bolsonaro/Guedes. Ele reconhece – sempre de viés – “afirmações interessantes” no meu texto, unicamente para não tratar o tema crucial. Aproveitou o registro que fiz sobre o V Encontro para, à maneira de um escafandrista, recuperar seletivamente memórias de um tempo submerso, como se a miséria atual do seu partido não guardasse relação com as escolhas de Lula e Zé Dirceu, essas que, ao fim e ao cabo, o motivaram a se separar de ambos e formar a Articulação de Esquerda.  

Vamos ao ponto central escolhido por Pomar, ou seja, o V Encontro do PT, realizado em 1987.

Pomar pretendeu me colocar contra as resoluções daquele evento ainda hoje considerado pela consciência ingênua de muitos petistas como o grau mais elevado da consciência possível no interior do partido. Mas o que eu, de fato, escrevi? Reproduzo aqui, uma vez mais, pois mais claro não poderia ser:

“O PT nasceu do protesto operário contra a ditadura e do esforço da esquerda socialista, derrotada na luta armada, para avançar na luta pelo socialismo. No entanto, de maneira precoce, aderiu sem inibição à ordem burguesa como qualquer um pode ver revisando as teses vitoriosas no V Encontro do partido em 1987 sob comando de Lula e José Dirceu”.

Ou seja, no parágrafo acima eu indico claramente que, se o leitor revisar aquela antiga resolução e a comparar com o “Plano Nacional de Reconstrução e Transformação do Brasil” divulgado há poucos meses pela Fundação Perseu Abramo ou cotejar com a atuação dos deputados e senadores do partido no covil de ladrões assanhados em votar no candidato da fração financeira e/ou, finalmente, buscar ecos daquele texto nas declarações de dirigentes nacionais ou regionais do partido,  decerto entenderá por que afirmo o fracasso histórico do PT, sua decadência política, moral e programática sem remissão. Afinal, sou eu quem recordou certa grandeza no V encontro, pois, à época, ainda era filiado ao Partido. É mais do que óbvio meu propósito pois, tal como Pomar, na época militante da Articulação, eu já guardei, sem o orgulho indisfarçável que ele ainda exibe, a memória daqueles “dias de glória”, que, posteriormente, não impediram os governos petistas – Lula e Zé Dirceu no comando – de se constituírem em tempo bem curto em administradores mais competentes da ordem burguesa do que os tucanos, até então um adversário confortável. Ora, com o ímpeto de sempre, ambos arquivaram as resoluções do V Encontro como exemplo de um “erro de juventude”, que a maturidade não admitiria mais...

Nesse caso, então, não me defronto com uma apropriação superficial do meu texto por Pomar tal como condena Gramsci, mas para além disso, observo uma surpreendente leitura interessada, que não é capaz de reconhecer o bom português e, em consequência, tenta atribuir ao parágrafo sentido oposto ao que escrevi!!

Qual a razão desse procedimento arbitrário, contrário ao sentido expresso de meu texto?

Bueno, farei breves considerações. Os poucos militantes do PT que ainda se consideram de esquerda e orientados pelo marxismo estão numa situação bem difícil. O grau de adesão do partido à ordem burguesa  é de tal magnitude, que a “esquerda do PT” não possui chance alguma de mudar a correlação de forças internas em seu favor. Ademais, caminhando nesse eterno labirinto, são os mesmos que também defendem a “tese” de que Lula segue sendo a expressão máxima do sentimento popular e que o centro da esquerda brasileira tem como referência o PT e o ex-presidente. Em consequência, não são poucas as vezes que esses mesmos militantes afirmaram a impossibilidade de futuro para a esquerda brasileira... sem Lula e o PT!! Finalmente, nas circunstâncias atuais, não podem estocar contra Zé Dirceu e Lula senão de viés, indicando apenas que eles não eram em 1987 entusiastas das resoluções do V Encontro, embora saibamos que nada seria aprovado naquele evento sem a assinatura de ambos, pois comandavam a tendência majoritária, a Articulação. Assim, Pomar não pode superar a contradição na qual estão metidos e a qual, por sua vez, alimentam!   

O PT abandonou precocemente o combate para a superação da dependência e do subdesenvolvimento. O compromisso que em suas origens afirmou com o socialismo jamais foi  suficientemente profundo para elucidar a luta dentro e contra a ordem, razão pela qual Lula, Zé Dirceu e seus principais dirigentes muito cedo consideraram - ingênua e tragicamente - que poderiam conquistar a cidadania para nosso povo nos marcos do capitalismo dependente sem teorizar e lutar pela revolução social, pela revolução brasileira. Hoje, não há mais o que preservar daquela experiência já superada pelos dinamismos da História. Nem a criança, nem a água suja do banho.

Abaixo, vai o artigo de Valter Pomar.


Um companheiro sugeriu que eu comentasse um texto do Nildo Ouriques, intitulado “A esquerda liberal e a eleição da presidência da câmara dos deputados” e divulgado no seguinte endereço: https://resistentes.org/artigos/dentro-da-baleia/.

Neste texto, Nildo Ouriques critica a tática — defendida por parte do PSOL, adotada pela maioria do PT e pelo PCdoB — de apoiar um setor da direita golpista para (supostamente) derrotar o outro setor, neste momento apoiado por Bolsonaro, na disputa pela Mesa e Presidência da Câmara dos Deputados.

Há muitas afirmações interessantes no texto de Nildo Ouriques, embora geralmente encobertas por um estilo literário que a mim recorda desagradavelmente o de outro autor, que por pudor prefiro não nomear. Exemplos do estilo: “quinquilharias ideológicas”, “digestão moral da pobreza”, “PT, partido que possui a maior bancada no covil de ladrões”, “duas moléculas de lucidez serão suficientes” etc.

Entre as afirmações interessantes feitas por Ouriques, cito a de que temos no governo brasileiro uma “administração liberal da economia” que aplica um “programa de extração keynesiana”. Sendo que, “nas atuais circunstâncias, a derrota do candidato do governo com a possível eleição do tal Baleia Rossi será sobretudo uma vitória do ultra liberalismo”, “uma vitória de Maia e da fração financeira”. Embora a exposição tenha, na minha opinião, várias inconsistências, concordo com o núcleo da tese; aliás, desde o governo Reagan já se sabe que as políticas hoje chamadas neoliberais não são incompatíveis com medidas comumente chamadas de keynesianas.

Há também pontos que a mim parecem frágeis, como denominar de “esquerda liberal” ou de “liberalismo de esquerda” os que defendem participar do bloco de Maia, segundo Nildo para defender o “atual sistema político como se fosse, de fato, a defesa da democracia”. Aceita esta afirmação, o que sobraria de “esquerda” no Brasil? Pouca coisa, como o próprio Ouriques reconhece. Mas ele parece compensar isso com a temerária afirmação de que “o sistema político foi rechaçado em 2018 pela maioria do povo”. Confesso que não sei bem do que ele está falando, até porque “rechaço” é uma postura ativa. E o notável, tanto em 2018 quanto em 2020, é o tamanho da abstenção, dos votos em branco e nulos. Uma atitude passiva, não ativa.

Mas o que mais me chamou a atenção no texto de Ouriques é o que ele diz acerca do 5º Encontro nacional do PT: “O PT nasceu do protesto operário contra a ditadura e do esforço da esquerda socialista, derrotada na luta armada, para avançar na luta pelo socialismo. No entanto, de maneira precoce, aderiu sem inibição à ordem burguesa como qualquer um pode ver revisando as teses vitoriosas no V Encontro do partido em 1987 sob comando de Lula e José Dirceu”.

“Qualquer um pode ver”?

Vou transcrever a seguir um trecho da resolução do 5º Encontro nacional do PT:

“A ALTERNATIVA DEMOCRÁTICA E POPULAR E O SOCIALISMO

  1. A alternativa que apresentamos à Nova República e à dominação burguesa no País é democrática e popular, e está articulada com nossa luta pelo socialismo.
  2. Um governo e um programa democráticos e populares – os dois componentes de nossa alternativa – são o reconhecimento de que só uma aliança de classes, dos trabalhadores assalariados com as camadas médias e com o campo, tem condições de se contrapor à dominação burguesa no Brasil.
  3. É por isso que o PT rejeita a formulação de uma alternativa nacional e democrática, que o PCB defendeu durante décadas, e coloca claramente a questão do socialismo. Porque o uso do termo nacional, nessa formulação, indica a participação da burguesia nessa aliança de classes – burguesia que é uma classe que não tem nada a oferecer ao nosso povo.
  4. As propostas que proclamam a necessidade e a possibilidade imediata de um governo dos trabalhadores evitam a discussão sobre qual a tática, qual a política para alcançar esse objetivo. Na prática, separam a luta reivindicatória da luta política, por não compreenderem a necessidade da acumulação de forças. A retórica aparentemente esquerdista recobre a ausência de perspectivas políticas e uma concepção limitada, atrasada, das lutas reivindicatórias.
  5. Na situação política caracterizada pela existência de um governo que execute um programa democrático, popular e antiimperialista, caberá ao PT e aos seus aliados criarem as condições para as transformações socialistas.
  6. Nas condições do Brasil, um governo capaz de realizar as tarefas democráticas e populares, de caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopólio – tarefas não efetivadas pela burguesia – tem um duplo significado: em primeiro lugar, é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto, um governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; em segundo lugar, a realização das tarefas a que se propõe exige a adoção concomitante de medidas de caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfrentamento da resistência capitalista. Por essas condições, um governo dessa natureza não representa a formulação de uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático popular, e, o que é mais grave, criando ilusões, em amplos setores, na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática e popular”.

Pergunto: com base no trecho citado, é mesmo possível a “qualquer um” constatar que o PT teria aderido “sem inibição à ordem burguesa”?

Para ler o texto integral da resolução (em cuja elaboração Dirceu e Lula não tiveram o papel que Ouriques sugere), buscar aqui: https://fpabramo.org.br/csbh/wp-content/uploads/sites/3/2017/04/07-resolucoespoliticas_0.pdf.

Certamente há algum texto onde Ouriques explica melhor sua posição a respeito. Mas salvo melhor juízo, sua crítica ao que de mais avançado o PT elaborou na década de 1980 indica que – apesar de concordar que “a esquerda brasileira (…) necessita [de] um giro radical” – Nildo aponta no sentido oposto ao que me parece adequado, ou seja, ele aponta em um sentido oposto a uma estratégia democrático-popular e socialista.

Aliás, este é um traço típico de certa ultra-esquerda: jogar a criança fora, junto com a água suja do banho.

Neste sentido, embora eu tenha interpretado de maneira diferente a crítica feita a Arthur Miller em “Dentro da baleia”, acho que para ilustrar sua “tese” Nildo Ouriques fez muito bem em escolher George Orwell.

(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Dentro da Baleia. A esquerda liberal e a eleição da presidência da câmera de deputados



A defesa abstrata da democracia volta a circular entre nós. Agora, a propósito de uma disputa para a presidência da câmara dos deputados, os partidos que constituem o liberalismo de esquerda (PT, PDT, PSB e PC do B) se unem para "derrotar Bolsonaro" a partir de uma aliança com Rodrigo Maia, subitamente considerado um representante da "direita democrática". A distinção política entre a "direita democrática" e a "direita autoritária" foi lançada por Fernando Henrique Cardoso quando seu minúsculo PSDB - com epicentro em São Paulo - decidiu a aliança estratégica com o antigo PFL (o DEM da época) para disputar e vencer as eleições presidenciais de 1994. FHC fez escola...

Não me causou surpresa, portanto, quando na semana passada, José Dirceu concedeu algumas entrevistas e escreveu artigo tocando o clarinete do pragmatismo na recuperação do antigo argumento de FHC destinado agora a enfrentar e derrotar Bolsonaro numa disputa no interior do covil de ladrões que também atende pelo nome republicano de congresso nacional.

Quem seria o candidato dessa aliança até bem pouco tempo improvável? Ora, um deputado indicado por Rodrigo Maia que receberia o apoio de aproximadamente 130 deputados da esquerda liberal, talvez suficiente para vencer o candidato presidencial, Arthur Lira.

O congresso nacional na luta pela democracia

O candidato da “direita democrática” é um tal Baleia Rossi, do MDB paulista, uma escolha de Rodrigo Maia que toda a esquerda liberal decidiu acompanhar para – por tabela!! – derrotar o candidato de Bolsonaro. Maia é sabidamente homem da fração financeira hegemônica na coesão burguesa que sustentou todos os governos desde 1994 e, ademais, é também o líder das reformas que aumenta a superexploração do povo, comanda o assalto ao estado e aprofunda a dependência e o subdesenvolvimento.  

No entanto, Maia expressa de maneira miserável o espírito republicano que o proto fascista despreza em seu combate contra a “velha política” que lhe assegurou a vitória nas últimas eleições presidenciais. O conflito, portanto, entre a presidência da república e o presidente da câmara, é parte constitutiva das tensões que permanecem no jogo político mas são, de fato, incapazes de motivar Rodrigo Maia a votar um dos 56 pedidos de impeachment que tem sob sua guarda. A razão é simples: a crise atual impede a destituição pela via parlamentar do proto facista quem, por sua vez, aproveita cada lance para avançar no programa ultra liberal em favor da coesão burguesa (aliança entre o capital agrário, comercial, industrial-residual e bancário) com apoio decisivo de Maia.

Há algo que precisa ser melhor observado na crise atual. O proto fascista aplica, na prática, um programa de extração keynesiana. Guedes exibe o maior déficit fiscal da história republicana, possui a taxa Selic mais baixa quando comparado com qualquer governo do liberalismo de esquerda, mantém programas sociais que sustentavam a outrora a digestão moral da pobreza turbinada pelos governos do PT e garante o equilíbrio do balanço de pagamentos na base da economia exportadora e de empréstimos externos, além, é claro, de seguir com o super-endividamento do estado via dívida pública e transferências permanentes do Tesouro ao Banco Central. A administração liberal da economia não permite arriscar previsão otimista sobre a superação da crise cíclica mundial que se abate com mais força na periferia capitalista. No entanto, a crise aproximou os ultra liberais dos keynesianos de tal maneira que, no essencial, não existem diferenças substanciais entre os primeiros e os segundos. A divergência – que sempre existirá – se resume a desacordos eventuais na dosagem, mas jamais no rumo da política econômica.

A defesa abstrata da democracia – na qual Rodrigo Maia figura como representante da “direita democrática” – tem, não obstante, consequências práticas. A mais importante é a união do liberalismo de esquerda com a direita liberal na defesa do atual sistema político como se fosse, de fato, a defesa da democracia. Ora, o sistema político foi rechaçado em 2018 pela maioria do povo e nada indica – absolutamente nada! – que goza de boa reputação nas classes subalternas. Ao contrário, mesmo na análise dos resultados eleitorais de novembro, o rechaço ao sistema político segue sendo uma inclinação evidente do eleitor, além de combustível valioso para a direita em toda disputa eleitoral. Nesse contexto, a reivindicação abstrata da democracia aparece como o que de fato é para amplos setores das classes subalternas: a defesa da podridão do regime político atual, sem dúvida uma peça preciosa da campanha presidencial de 2022.

Mas o liberalismo de esquerda confina o profundo rechaço ao sistema político dominante, afirmando que a “anti-política” não teve vez nas eleições municipais e, em consequência, alimenta ilusões próprias e alheias segundo as quais os ventos mudaram, Bolsonaro saiu derrotado e o “centrão” e a “direita tradicional” venceram... Quinquilharias ideológicas sem solidez alguma, com a finalidade de ocultar o essencial no jogo pesado das classes sociais e suas frações.   

A absoluta falta de compromisso com a revolução brasileira no interior do liberalismo de esquerda – portanto, ausência de um projeto estratégico – a deixa rodando no labirinto da crise administrada pelo proto fascista. No fundo, Zé Dirceu se resume a reivindicar a constituição de uma “frente ampla” como se fosse possível com tal artificio reverter a lenta e inexorável deterioração da economia e do sistema político. A democracia – jamais poderemos esquecer – é uma realidade histórica a ser conquistada pela luta dos trabalhadores contra a burguesia e jamais a conquista de espaços no interior de um sistema eleitoral apodrecido que não goza de prestígio algum nas classes subalternas e tampouco guarda algum interesse à classe dominante. Aqueles que julgam a vitória do proto fascista Bolsonaro em 2018 como mero produto de uma conjuntura eleitoral – em vias de superação – divulgam uma ilusão que custará sangue e suor às classes subalternas.

Ora, um cargo na mesa diretora do parlamento, a presidência de algumas comissões e uma “vitória simbólica” sobre o proto fascista na disputa no interior do covil de ladrões justificaria, finalmente, a aliança entre o liberalismo de direita e o liberalismo de esquerda?

José Dirceu não está só na empreitada, justiça seja feita. A deputada e vice líder da bancada do PSOL na câmara de deputados, Fernanda Melchionna – Marcelo Freixo também – já anunciou que pretende se somar a corrente e eu não duvidaria que meu partido assumisse um lugar no bloco em “defesa da democracia”. Ora, a democracia não é um valor universal pois, tal como ensina a história brasileira, latino-americana e mundial, as classes dominantes não possuem qualquer compromisso com a forma liberal do regime de dominação. O liberalismo de esquerda esquece as razões do golpe de 1964 e, com a mesma convicção, oculta o conteúdo restringido do regime eleitoral (democracia restringida) que emergiu da crise da ditadura como forma de dominação política a partir de 1985.

Os liberais, ou doutor Ulisses, quanta saudade!

A questão não é, de fato, de natureza doutrinária. O senso comum funcional ao cinismo dominante afirma que devemos deixar de lado o purismo e avançar de maneira pragmática contra Bolsonaro impondo derrota após derrota, em todos os terrenos, numa luta sem quartel, até abatê-lo de maneira definitiva. Ora, o pragmatismo é também uma arte que tem lá suas exigências, nada fáceis de eludir. Nas atuais circunstâncias, a derrota do candidato do governo com a possível eleição do tal Baleia Rossi será sobretudo uma vitória do ultra liberalismo. Não basta – definitivamente não basta! – aos liberais de esquerda justificar sua adesão ao liberalismo de direita prometendo um céu keynesiano nas 10 premissas de um manifesto redigido para inglês ver. Portanto, se a adesão ocorrer e, quem sabe, o tal deputado Baleia derrotar o candidato de Bolsonaro, a operação é um reforço notável à Rodrigo Maia na disputa pela hegemonia da coesão burguesa contra o proto-fascista e, em nenhuma hipótese, um passo adiante para o liberalismo de esquerda. Ao contrário, é mais do que claro que uma vitória de Maia contra Bolsonaro será um reforço precioso ao liberalismo de direita na futura disputa contra os liberais de esquerda em 2022. A polarização na próxima disputa presidencial poderá ser – como tenho advertido antes mesmo das eleições municipais – entre os ultra liberais encabeçados pelo proto fascista e a direita liberal, cujas filas não param de crescer. Enfim, por vez primeira desde 1988, se tal cenário se confirmar, podemos estar diante de uma contenda na qual o liberalismo de esquerda finalmente revelaria os limites de sua própria política justificando o voto na “direita democrática” contra a “direita autoritária”. Portanto, se o pragmatismo é isso, pode ser também um sinônimo para suicídio político!

Nas circunstâncias da crise brasileira, o pragmatismo exige uma boa dose de radicalismo político, mas esse é um tempero que o liberalismo de esquerda “orientado” pelo bom mocismo recusa como se sua adoção violasse um mandamento divino, uma regra moral. Na real, a esquerda liberal só não navega sem bússola porque esta, na prática, orientado pelo liberalismo de direita sob o bordão da... “defesa da democracia”!

Há outras razões, nem sempre exaustivamente tratadas, que comandam a adesão da esquerda liberal ao candidato da fração financeira que hegemoniza a coesão burguesa, razão pela qual devemos exibi-las claramente para entender a racionalidade do pragmatismo que se pavoneia entre nós como se fosse, de fato, um comportamento político “responsável”.

José Dirceu escreve há tempos sobre a necessidade de uma “oposição radical a Bolsonaro” e uma “auto-reforma e renovação da esquerda” (liberal). Para tal, essa oposição, cuja ponto alto seria o impecheament do proto facista, teria que levar a “suspeição de Sérgio Moro” e, mais importante, “anular as condenações a Lula”. Ora, o drama do PT não representa os dramas do liberalismo de esquerda. O PT nasceu do protesto operário contra a ditadura e do esforço da esquerda socialista, derrotada na luta armada, para avançar na luta pelo socialismo. No entanto, de maneira precoce, aderiu sem inibição à ordem burguesa como qualquer um pode ver revisando as teses vitoriosas no V Encontro do partido em 1987 sob comando de Lula e José Dirceu. Portanto, os brados atuais para uma volta às bases, a defesa dos territórios, o enraizamento nas periferias, etc, são mera propaganda para sustentar o cretinismo parlamentar e a paralisia da antiga máquina sindical agora em frangalhos. A reconciliação entre o PT e as demandas populares contemporâneas são irrealizáveis nesse mundo, mesmo com Lula candidato. A propósito, não tenho dúvida a respeito: a devolução dos direitos políticos de Lula apenas elucidaria sua impotência moralista diante dos dramas reais do povo brasileiro. Nesse sentido, o caráter eleitoral dos partidos da esquerda liberal impede um ideário socialista, radical, de “renovação e auto reforma” como retoricamente defende José Dirceu. O PDT, na mesma toada, tampouco pode recuperar o ideário trabalhista tanto de Alberto Pasqualini quanto de Leonel Brizola, razão pela qual adota de maneira desinibida e com indisfarçável orgulho, as “teses” de um scholar chamado Mangabeira Unger! A “auto-reforma” e a “renovação” da esquerda liberal somente poderia ocorrer nos marcos de um diagnóstico da crise que o liberalismo de esquerda é incapaz e de uma ruptura com o sistema dominante. O keynesianismo que balbuciam não possui dentes para morder e, em consequência, não podem captar a força iracunda do povo afundado num abismo social sem remissão nos marcos da ordem burguesa. Na impossibilidade de romper com a coesão burguesa que sustentaram desde sempre com o adorno da filantropia, resta o “radicalismo” dos discursos parlamentares contra a “PEC do teto dos gastos”, manifestos contra as privatizações, ensaios de cobrança de impostos sobre os rentistas agora autorizado pelo FMI, a defesa dos direitos sociais no patamar do moralismo burguês, etc...

Mas se nem tudo é jogo de cena, há também ilusões necessárias na linha adotada pelo liberalismo de esquerda, conduzida pelo PT, partido que possui a maior bancada no covil de ladrões. Antecipo duas delas.

Algoz e vítima no respeito a democracia
A primeira, de caráter mais geral, consiste no fato de que o pragmatismo restrito a defesa abstrata da democracia é, na real, apenas mais uma jogada para manter o liberalismo de esquerda nos estritos marcos da ordem burguesa, sem avançar jamais na luta contra a ordem. Uma parte considerável do que Zé Dirceu chama de correlação de forças, de um “ciclo de derrotas” que impediria avançar mais é, na verdade, um fracasso histórico que emergiu de maneira clara na destituição de Dilma sem o recurso da luta de massas, pois a “estratégia anti-golpista do petismo” permaneceu apegada aos acordos no parlamento, as ilusões republicanas e a certeza que voltariam pela força do voto nas eleições de 2018... O PT nada mais possui de suas raízes históricas e não existe caminho para a reconciliação entre a máquina eleitoral que de fato é, e os chamados “movimentos sociais” que retoricamente reivindicam. Não por acaso, agora a “tática” é uma frente ampla cujos antecedentes podem ser vistos no encontro das Fundações dos partidos no ano passado com a criação do “observatório da democracia” e na reunião secreta de 5 horas entre Ciro e Lula em setembro desse ano cujo conteúdo o ilustre público nada sabe.

O liberalismo de esquerda encabeçada pelo PT mira 2022 acompanhado das mesmas ilusões que levaram a derrota da destituição da ex-presidente Dilma e a confirmação de seu fracasso histórico. Na real, agora pouco importa se as premissas keynesianas que adornam o voto com Maia no manifesto dos liberais de esquerda serão respeitados por Baleia – obviamente que não serão! – pois o relevante é manter a atuação política nos estritos marcos parlamentares sem convocar o povo para nenhuma batalha importante. Não fosse a pandemia, o artificio seria mais evidente.  

A segunda razão, igualmente importante, refere-se a luta do liberalismo de esquerda para liquidar definitivamente o “lavajatismo”. José Dirceu defende há tempos a “suspeição de Moro” e a anulação das “condenações de Lula” como requisito de uma ordem genuinamente democrática. Ocorre que agora, há de maneira cada vez mais desinibida, uma rara e óbvia coincidência entre Bolsonaro, figuras destacadas da direita e do liberalismo de esquerda, todos abrigados no covil de ladrões, que merece maior atenção. De fato, todos querem o fim da Lava Jato que, sob ordens de Bolsonaro, esta sendo gradual e seletivamente desativada. O objetivo para o liberalismo de esquerda é restituir os direitos políticos de Lula e deixa-lo livre para disputar as eleições em 2022. A redução da política à moral foi arma eficaz do liberalismo de direita contra o liberalismo de esquerda mas, no contexto de uma república apodrecida até a medula, não pode permanecer por muito tempo dando as cartas. Assim, Bolsonaro, Lula, Aécio, José Serra, Michel Temer e algumas centenas de deputados e senadores indiciados ou investigados querem e necessitam o fim da “pior das ditaduras”, aquela do judiciário e da PF. Nas atuais circunstâncias, num aparente paradoxo, Bolsonaro seguirá tanto beneficiário do reino da impunidade quanto agitador contra a corrupção. A luta contra a corrupção, que tanta autoridade deu ao liberalismo de esquerda encabeçado pelo PT na década de oitenta, foi simplesmente liquidado na esteira da incorporação do partido aos negócios de estado, tão eloquente no “caso Palocci” quanto confesso no financiamento não declarado das campanhas eleitorais. Por sua vez, Bolsonaro não poderia entregar a promessa do fim da corrupção, pois a origem primária do fenômeno se encontra na relação ultra parasitária entre o capital e o Estado, razão pela qual Moro jamais se atreveu em estender suas investigações aos segredos do Banco Central e do Ministério da Fazenda, limitando seu moralismo restaurador dos bons costumes aos partidos políticos e a merenda escolar, sem jamais olhar para os swaps cambiais, a administração da dívida pública, as medidas provisórias que concederam suculentos benefícios as multinacionais e aos capitalistas nacionais, a “fuga” de capitais, etc...

A “virada” de Bolsonaro no meio do ano – quando saiu de cena e diminuiu a emissão de declarações destinada a ocupar a cabeça do liberalismo de esquerda com quinquilharias ideológicas enquanto aprovava o essencial no covil de ladrões com as medidas de Paulo Guedes – não foi suficiente para desacredita-lo completamente como político símbolo da “luta contra a corrupção”. O proto fascista segue agitando aqui e acolá a bandeira da moralidade pública que não pode – por razões óbvias – ser disputada nesse terreno pelo liberalismo de esquerda (especialmente o PT). A queda de Sérgio Moro provou que a maioria seguia mesmo o proto facista na eficaz redução da política à moral cujo alvo é o atual sistema de partidos políticos, ou seja, o sistema “democrático”. As derrotas históricas, nós sabemos, tardam em diluir-se na memória do povo, razão pela qual mesmo cada dia mais implicado em sucessivos “escândalos” (vide o caso do senador Flávio Bolsonaro!) o proto fascista segue exalando ares de quem permanece solitário na “luta contra a corrupção” mesmo com a ação da PGR, do Ministério da Justiça e de sua própria base parlamentar na direção de um acordo que subalternize as ações judiciais ao mundo da política. No bordão do liberalismo de esquerda, o fim da “judicialização da política e a politização da justiça”. O grito da classe média contra a corrupção – em larga medida incompatibilizada com o petismo – está sustentado tanto nos pequenos privilégios da pequena burguesia proprietária ou assalariada quanto na deterioração de sua posição em função da voracidade da crise econômica.  

Maia – e o tal Baleia Rossi – seguirão vigilantes contra os supostos arroubos “populistas” de Bolsonaro, na mesma medida que atentos aos sinais “confusos” de Paulo Guedes em relação as medidas ultra liberais sempre consideradas pela fração financeira como cronicamente insuficientes. A vitória de Baleia sobre Lira seria antes de mais nada, uma vitória de Maia e da fração financeira, jamais uma derrota de Bolsonaro.

Nesse contexto, o liberalismo de esquerda atua apenas para reduzir danos no interior da política oficial, incapaz de tomar a iniciativa política. Na crise atual, a direita liberal acumula forças enquanto o liberalismo de esquerda, contabiliza derrotas políticas e ideológicas. Uma esquerda “auto renovada” não poderá jamais emergir entre nós da “luta” parlamentar, menos ainda quando se limita no parlamento a ser mera consciência crítica da política oficial sem enfrentar a coesão burguesa hegemonizada pela fração financeira.

George Orwell escreveu em 1940 um texto sobre literatura no qual denunciava a impostura intelectual e a covardia dos escritores ingleses diante do fim da literatura do liberalismo, desinibidos na arte de submergir nas entranhas de uma baleia como meio supostamente eficaz de fugir das turbulências históricas que marcaram as vésperas da guerra na Europa.

A baleia também encalha... e morre!

“As entranhas da baleia – escreveu Orwell – são apenas um útero o suficiente para conter um adulto. Lá ficamos, no espaço almofadado e escuro em que nos encaixamos perfeitamente, com metros de gordura entre nós e a realidade, capazes de manter uma atitude da mais completa indiferença, não importa o que aconteça. Uma tempestade que naufragaria todos os navios de guerra do mundo mal nos atingiria em forma de eco. Mesmo os movimentos da baleia provavelmente nos seriam imperceptíveis. Ela poderia nadar entre as ondas da superfície e mergulhar na escuridão dos oceanos médios (uma milha de profundidade, de acordo com Herman Melville), que jamais notaríamos a diferença. Com a exceção da morte, é o estágio sem igual, definitivo, da irresponsabilidade.”

A valorização da luta parlamentar representa hoje uma entrada na barriga da baleia e, portanto, um simulacro de luta pela democracia. O divórcio com o mundo real é completo e como manda a tradição, o artificio que fecha os olhos aos milhões de trabalhadores condenados ao desemprego permanente, ao desalento, à violência dos acidentes de trabalho, ao histórico sub financiamento da saúde e da educação, ao domínio avassalador da cultura metropolitana sob a cultura nacional-popular, à superexploração da força do trabalho é o mesmo que justifica “a defesa da democracia”. Enquanto isso, naquele covil de ladrões, a coesão burguesa legaliza compra irregular de terras por estrangeiros, a ampliação sem limites da fronteira agrícola, permite a fuga de capitais, transforma o Tesouro em garantia de lucros aos banqueiros e todo tipo de assalto ao estado com a conivência do liberalismo de esquerda.

A esquerda brasileira – ou o que sobrou dela – necessita um giro radical noutra direção. O liberalismo de esquerda não poderá fazê-lo, não tenho dúvidas a respeito. Creio, tal como podemos ver noutros países latino-americanos, que as explosões sociais mais ou menos radicais ocorrem sem que os partidos da ordem – da direita ou da esquerda liberal – possam sair as ruas e encabeçar a luta contra a classe dominante. Não há na política situações sem saída, razão pela qual sempre haverá algo pra fazer, mesmo em condições totalmente adversas. Nessas situações, duas moléculas de lucidez serão suficientes para entender a função construtiva da recusa em atuar na miséria do jogo parlamentar; antes de isolamento social, essa recusa é, precisamente, o caminho que abrirá as portas do futuro para a esquerda na próxima semana diante de milhões de trabalhadores condenados ao abismo social sem remissão nos marcos da ordem burguesa. A derrota do proto fascista não virá da luta parlamentar; até lá, se não podemos ganhar as ruas, não devemos nos somar ao cinismo e a impostura dominante que garante vida longa a classe dominante e condena nosso povo ao vale de lágrimas como se não houvesse outro futuro possível.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

o fracasso histórico do PT e o novo radicalismo político

Em maio de 2005 publiquei na Revista da Adusp breve reflexão sobre o fracasso histórico do PT. Em janeiro daquele ano - juntamente com um grupo de economistas reunidos no Fórum Social Mundial - assinamos uma carta exibindo as razões pelas quais deixávamos o partido de maneira definitiva. Naquela época julguei necessário afirmar o fracasso histórico do PT no momento em que Lula apenas esquentava a cadeira presidencial na qual os presidentes petistas permaneceriam longos 13 anos!

Há que entender algo importante: abandonar um partido quando esse chega a presidência não constituiu ato heroico mas colide com a força da tradição política brasileira afeita a conciliação de classe. No mesmo momento comecei a criticar a agenda social do petismo - a filantropia - como alienante e funcional à ordem dominante. Agora, quando o proto fascista Bolsonaro e seu ministro banqueiro ultra liberal Paulo Guedes confiram a permanência do Bolsa Família e produzem déficits públicos nunca antes visto em nosso país, quem sabe o liberalismo de esquerda se convença que tínhamos alguma razão.

Eu recebi esse artigo - não lembrava dele! - de um seguidor no instagram. Divulgo aqui porque jamais aceitei o bordão de renunciar a meus escritos.

Você poderá ler minha análise no endereço eletrônico abaixo

https://www.adusp.org.br/files/revistas/34/r34a03.pdf

Vai meu abraço!




sábado, 25 de julho de 2020

Projeto nacional ou nacionalismo revolucionário?



Ciro Gomes (CG) acaba de publicar um livro cujo título está orientado pela ambição: um projeto nacional para o Brasil.

Na edição de 8 de junho do Canal Duplo Expresso, dirigido por Romulus Maya, realizei durante hora e meia a crítica ao livro de Ciro. No mesmo dia, recebi resposta assinada pelo professor universitário Gustavo Castañon (GC), postada no Portal Disparada. Em resposta, reforçarei argumentos lá apresentados de maneira minuciosa com o objetivo de não deixar dúvida sobre a natureza de meus argumentos. O alcance inesperado de minha crítica foi recompensa gratificante porque no interior do liberalismo de esquerda atualmente dominante – da qual o PDT é parte integrante – a interdição da crítica é prática comum na burocracia dirigente dos partidos políticos. No entanto, é possível perceber que as restrições da burocracia partidária contrastam com o vivo interesse de centenas de militantes do PDT e/ou simpatizantes da candidatura do Ciro que, de fato, buscam respostas para os graves problemas nacionais para além da apologia ou o silêncio, duas formas perversas de supressão do debate sobre nossa difícil realidade. Na militância que sofre as duras consequências da conciliação de classes produzida pelo liberalismo de esquerda, observo algo essencial: as insuficiências da proposta de Ciro Gomes são percebidas e exigem superação.

O marxismo e a questão nacional
O marxismo acumula antigo e imenso debate sobre “a questão nacional” tanto nos pensadores europeus (Marx, Engels, Lenin, etc), nos asiáticos (Mao, Ho Chi Min, etc), nos africanos (Walter Rodney ou Amílcar Cabral) e especialmente, nos latino-americanos onde o tema é abundante e de enorme fecundidade.

A advertência seria desnecessária não fossem as lições históricas: toda revolução é resultado, essencialmente, de um projeto de nação. A distinção linguística aqui é decisiva, pois nem todo projeto de nação é um projeto nacional; historicamente – tampouco é ocioso recordar – a nação foi um produto das revoluções burguesas, jamais das revoluções proletárias, socialistas.

No entanto, na periferia capitalista há uma especificidade: quando escutamos o brado por um “projeto nacional” é fácil percebe-lo como expressão da miséria em que a maioria da população vive, submetido à mais vil exploração capitalista e, também, como manifesta reivindicação de superação da soberania limitada ou apenas formal que sofremos desde sempre. Portanto, o brado pelo “projeto nacional” expressa o clamor por uma completude que, nos marcos do capitalismo, julgo de impossível realização.

IMPERIO Y COLONIA. Escritos sobre... - Historia Universal - USAC ...
Marxismo e pensamento crítico
De minha parte, o mundo não está dividido entre marxistas e não marxistas; tampouco entre acadêmicos e políticos. Em qualquer debate o importante é o conteúdo da crítica e sua função social, sua utilidade imediata; afinal, a crítica orienta à superação de nossas debilidades ou consolida a impotência da esquerda liberal?

A propósito, Marx foi leitor atento de liberais, dos filósofos escolásticos, dos anarquistas, dos socialistas, etc. Nós, marxistas, não rejeitamos o debate mesmo quando ocorre no terreno fora de nosso agrado.

Por outro lado, Ciro Gomes convocou ao debate público sobre seu livro sem restrições de qualquer ordem. Não deixa de ser elucidativo que precisamente um professor universitário – Gustavo Castañon (GC) – ao contrário do próprio autor (CG), tente interditar o debate indicando a natureza marxiana de meus argumentos ou a origem supostamente “acadêmica” de minha posição.

A respeito, nas últimas 4 décadas, observei no estudo sistemático da América Latina, que muitas revoluções foram filhas do pensamento crítico latino-americano e nas quais o marxismo figurou não poucas vezes como referência distante. Acaso Fidel Castro era marxista quando do assalto ao quartel de Moncada? Não, Fidel não era marxista naquele tempo. Acaso o dirigente máximo da revolução cubana tinha lido O Capital quando, diante dos tribunais de Batista, bradou para o mundo um discurso inesquecível chamado A História me absolverá? Não, Fidel não era marxista! Os exemplos se multiplicam. De resto, ninguém – nem mesmo um trabalhista desbotado – deveria esquivar o marxismo como se estivesse diante de uma lepra. Até mesmo a socialdemocracia europeia que Ciro Gomes pretende filiação é uma derivação – bastarda, é certo – da força do marxismo e do movimento operário europeu! A caricatura em que se transformou até mesmo nos países nórdicos não elimina a vitalidade de sua origem.

A crítica à razão acadêmica contra o colonialismo
Minha qualificação à Mangabeira Unger – quem prefacia o livro de CG – foi recebida de maneira incrédula. Afinal, como eu poderia qualificar de “quinta categoria” um professor de Harvard, interlocutor de J. Habermas e Perry Anderson? Ora, a “interlocução” de ambos com Mangabeira tem origem na perspectiva liberal e anti-marxista que professa. Ademais, resulta da natureza especifica do ambiente intelectual das universidades estadunidenses como instituições ultra conservadoras. Gustavo Castañon dá mostras de ignorar ambas. No entanto, até mesmo Mangabeira Unger considera que “a alta cultura acadêmica” dos EUA é cativa de tendências que impedem a renovação política e cultural que ele demanda para a esquerda no interior da potência imperialista (Esta tudo contadinho no livro de Mangabeira, O que a esquerda deve propor).

Eu entendo a posição de Gustavo Castañon como clara manifestação de colonialismo pois, como com frequência ocorre, ao defender Mangabeira, disse menos do professor de Harvard e mais de si próprio. Antecipo que não se trata de defeito estritamente pessoal porque parte importante dos professores – cativos nos marcos do academicismo miserável que domina a cena no interior das universidades brasileiras – ignora os grandes pensadores brasileiros enquanto festeja acadêmicos dos países imperialistas, simples aves de arribação que vez ou outra aterrizam no solo pátrio.
De minha parte, não concedo valor algum ao fato de Mangabeira ser membro vitalício da Academia Americana de Artes e Ciências. A lição me foi ensinada por Lima Barreto – que jamais pertenceu a academia brasileira de letras – e por Manoel Bonfim, quem recusou pertencer à ela a despeito dos convites insistentes de Machado de Assis. Mas há razão adicional nos meus reparos: conheço bastante bem o funcionamento das honrarias distribuídas no Império como mecanismo de cooptação. Dos membros das academias estadunidenses, prefiro Noam Chomsky, para recordar apenas um exemplo notável lá considerado um... “dissidente”.

De resto, nunca sabemos quem é Mangabeira. No passado emergiu como ministro de Lula de maneira figurativa; noutra tentativa, reapareceu no ministério de Dilma sem deixar saudade alguma. Há poucos meses, feito ave fênix, deu o ar da graça como presidente do fantasmagórico Conselho de Desenvolvimento da Economia e do Conhecimento do governador de extração bolsonarista... Wilson Witzel!!!

Nos tempos em que Brizola era a liderança do PDT, Mangabeira nunca passou da insignificância política. O PDT, naqueles anos, ainda exibia uma quantidade importante de intelectuais entre os quais recordo com admiração Theotonio dos Santos, Vania Bambirra, Edmundo Moniz, Abdias Nascimento, entre tantos outros. Que baita contraste! Esse abismo histórico é expressão da ruptura de Ciro com a tradição trabalhista e com a incapacidade do partido de Brizola em criar e/ou atrair a intelectualidade crítica no país, razão pela qual Mangabeira aparece não poucas vezes no papel surpreendente de guru do candidato do PDT.



Mas vamos ao essencial. Qual a natureza da renúncia a tradição intelectual do trabalhismo e a precoce adoção da linha scholar de Harvard?

O eclipse do intelectual orgânico
Nas últimas décadas a esquerda brasileira sofreu grave regressão intelectual. Não se trata de um acidente, descuido ou falta de talento entre nós; a regressão intelectual que sofremos é resultado do conflito que marca nossa sociedade. A conciliação de classes produzida pelo petismo – com apoio sistemático de Ciro Gomes – esterilizou a crítica no interior dos partidos políticos ou, simplesmente, a confinou no reduzido espaço de formulações de políticas públicas como se fosse possível sair desse vale de lágrimas sem tocar nas bases da dominação burguesa. Em meu livro (O colapso do figurino francês. Crítica às ciências sociais no Brasil), denominei o fenômeno de “digestão moral da pobreza” pois quaisquer dos programas sociais do petismo era incapaz de atacar na raiz a miséria de nosso povo. A filantropia petista, apresentada como único horizonte político possível nos marcos do capitalismo dependente, era expressão necessária daquela aliança de classe. A redução da política à moral produzida pela direita com o lavajatismo – razão pela qual a corrupção aprece como o principal problema nacional – encontrou no liberalismo de esquerda sua versão católica, onde o “combate à injustiça social” ganhou prioridade por meio dos programas sociais do petismo.

Ora, os programas sociais orientados pela filantropia confinaram a dialética decisiva de luta dentro e contra a ordem, nos estreitos limites do estado burguês. Essa é a razão pela qual Lula e Dilma jamais ousaram superar a orientação da coesão burguesa formada em 1994 sob comando do capital financeiro. O Banco Mundial indicava o cercadinho: políticas compensatórias (focadas ou universais), nada mais!

Nas últimas eleições a burguesia rompeu o pacto e mandou às favas as virtudes republicanas cultivadas pelo liberalismo de esquerda. O proto fascista Bolsonaro se tornou presidente e avançou na guerra de classes contra nosso povo ampliando a superexploração da força de trabalho paralelo ao intenso assalto ao estado com todo tipo de políticas (fiscal, tributária, cambiária, monetária, etc).

O petismo se limitou tão somente a denúncia do “golpe” como algo ilegítimo, hostil a liturgia de uma república séria. Ciro, alinhado com o discurso petista, indica em seu livro a miragem de uma “democracia golpeada”. No fundo, o discurso político petista afirma ainda hoje que tudo caminhava muito bem e, produto da maldade humana, entramos no pesadelo atual. É incrível que esse conto de fadas ainda tenha espaço entre nós quando não passa de impostura política e manifestação da consciência ingênua que teremos que varrer de maneira definitiva. Ora, o programa e a política do liberalismo de esquerda fracassou historicamente, fato que o petismo não pode admitir e, Ciro, na vã ilusão de situar-se à esquerda do colapso petista, na condição de um herdeiro que espera a morte do pai para botar a mão no espólio, não rompe senão de maneira muito cerimoniosa; em consequência, confina a crítica ao terreno moral e à “falta de visão” do PT, especialmente de Lula!

Nos marcos da conciliação de classe – sem protagonismo popular, pois Lula ou Dilma, ao contrário da tradição nacional reformista do pré-64, jamais convocaram nosso povo para à luta – o espaço da crítica desapareceu ou terminou apenas tolerada no pluralismo estéril dos meios de comunicação monopolizados pela Globo ou, agora, pela CNN.

A ruptura do petismo com a tradição nacional reformista do trabalhismo consiste essencialmente na ausência do protagonismo popular na disputa de massas. A despeito da conciliação de classes, é preciso reconhecer que o nacionalismo reformista impulsionado por Jango fomentava o radicalismo das classes populares em vigorosas ações tanto no parlamento quanto nas greves, nas ocupações e nos comícios. O radicalismo petista – aquele que emergiu do protesto operário contra a ditadura – ao contrário, sempre esteve limitado a luta por melhores salários. Jamais avançou, por exemplo, para a redução da jornada de trabalho. Esse vício de origem orientou mais tarde, já sob a defesa de uma razão de estado, portanto, burguesa, o comportamento de Dilma e Lula (também de Ciro!), diante da ofensiva da direita. O traço mais marcante do longo processo de destituição da presidente Dilma consiste na ausência da luta de massas. A própria Dilma, nem mesmo na hora da forca, participou de um comício sequer na tal “resistência ao golpismo”. Tragédia ou farsa? Ora, as tragédias possuem a virtude de ensinar, mas tudo indica que seguimos prisioneiros do roteiro da farsa. Nesse contexto, a crítica de Ciro omite esse dado essencial e, de fato, sugere que ele no comando das ações teria emparedado os corruptos, dado um chega pra lá na avenida paulista e organizado a orquestra com outra partitura. De resto, Ciro limita-se a afirmar que o Ceará deu 2/3 dos votos contra a destituição (na real deu apenas metade dos votos) revelando a essência daquela batalha: o terreno parlamentar.

Em perspectiva histórica é fácil perceber que os partidos políticos limaram as condições necessárias para o necessário cultivo da crítica, razão pela qual os intelectuais se tornaram figuras indesejáveis em plenárias, diretórios e/ou conselhos. No lugar do intelectual orgânico emergiu o acadêmico iniciado no manejo das políticas públicas. Em plena democracia, o intelectual crítico era rechaçado na exata medida na qual o acadêmico papagaio de pirata emergia com as enfadonhas soluções de bolso de colete.

O político vulgar sorriu satisfeito nesse novo cenário, pois detesta a corrosão crítica de seus planos róseos na mesma medida em que o conhecido faro certeiro do acadêmico mirou na possibilidade de chegar a presidente do Banco Central ou no ministério de relações exteriores pela via fácil. Uma aliança aparentemente perfeita! No entanto, a erupção da crise impede o êxito da operação que até ontem funcionava com certa eficácia; agora, no turbilhão da crise mundial capitalista com profundo efeito na periferia capitalista, o espaço para o bom mocismo no debate de ideias também reduziu, embora a antiga boçalidade permaneça intacta.

Profeta Baruc | Enciclopédia Itaú Cultural
Baruc, um dos 12 profetas de Aleijadinho
Na crise que sofremos, a contribuição efetiva dos acadêmicos seria quase nula, não fosse o efeito ideológico – e necessariamente passageiro – que pode produzir. Ainda assim, as ideologias possuem um combate duro com a realidade que está longe de solução favorável à classe dominante. É hora, defendo, de um novo radicalismo de esquerda. 

É fácil observar que a valorização dos acadêmicos – expresso no elogio à Mangabeira – não é fenômeno exclusivo do PDT pois basta conferir o “êxito” editorial de Jessé Souza, Marcos Nobre, Boaventura de Souza Santos, e claro, os “internacionais” tal como Steven Levitsky, Thimoty Snider, Ha-Joon Chang... Portanto, a incredulidade de G Castanón diante de minha qualificação a Mangabeira tem explicação. A defesa do professor de Harvard esboçada por GC não é menos que um traço colonial típico do academicismo dominante.

A leitura dos livros recentes de Mangabeira em nada pode nos ajudar a pensar o Brasil, exceto pela utilidade não seguir um só de seus conselhos ou recomendações!! Aquele que julgar meu juízo preconceituoso, apressado ou injusto, sugiro a leitura de A alternativa transformadora (1990), O que a esquerda deve propor (2008) e, caso mantenha obstinação, o lamentável Depois do colonialismo mental (2018). É elucidativo de nossa miséria intelectual o fato desse último livro ser prefaciado pelo... músico Caetano Veloso!

Voltemos ao livro de Ciro Gomes, razão desse artigo. Minha crítica ao seu conteúdo pode ser resumida em 4 pontos, todos eles já apresentados no Duplo Expresso.

1.  Ausência da análise crítica sobre o Plano Real
Quando Ciro foi nomeado ministro da fazenda por Itamar Franco em setembro de 1994, o rentismo já comandava a cena sob o bordão do controle inflacionário. Ciro, sem tocar nos pilares do Plano Real – portanto, operando nos estreitos marcos da lógica rentista – reduziu drasticamente a tarifa de importação para mais de 445 produtos, medida que aprofundou a desnacionalização da economia com o objetivo de combater a pressão da inflação com oferta de produtos importados. E os juros? Nenhuma medida!  FHC estava no comando do ministério desde maio de 1993 e abandonou o posto em 30 de março de 1994 quando Ricúpero tomou o timão. Em 6 de setembro Ciro foi chamado às pressas após o diplomata revelar as virtudes da mentira que todo republicano liberal um dia exibe, mesmo por descuido. Ciro permaneceu ministro meros 116 dias e, na verdade, foi descartado rapidamente por FHC e seus coleguinhas de berço tucano.

No seu livro, Ciro não somente sonega análise crítica de sua atuação à época  como evita reflexão necessária em torno das concepções teóricas que sustentam o Plano Real. Ora, o debate sério sobre a crise brasileira atual é inexplicável sem a revisão sobre as bases teóricas e políticas do Plano Real. Ciro, obviamente, jamais figurou entre os formuladores do Plano Real, aparecendo como mero operador por curto espaço de tempo. O Plano Real, como sabemos, foi criado/hegemonizado pelos economistas da PUC-Rio (Gustavo Franco, Pérsio Arida, André Lara Resende, Pedro Malan, Edmar Bacha e também por Clovis Carvalho, José Serra, e outros menos importantes).

Embora membro do PSDB à época, Ciro nunca foi tucano de alta plumagem. Não lhe faltavam desejo ou devoção, mas o tucanato era, como sabemos, um clube seleto, cujo epicentro sempre se localizou em SP até seu colapso recente. No entanto, posto que Ciro sempre reivindica o Plano como “conquista importante”, tornou-se indispensável que dedicasse um capítulo àquele genial golpe de mestre dos banqueiros em nome da estabilização monetária e do relativo controle da inflação. Não por acaso, após o “êxito” do Plano, os professores e acadêmicos da PUC idealizadores do programa de estabilidade monetária se transformaram em... banqueiros!!!

Testemunha ocular do crime, Ciro deixa não somente uma insuficiência analítica qualquer, mas um enorme rombo teórico-político no seu livro quando “aborda” sua passagem no ministério da fazenda. É, portanto, superficial. Limita-se, a apresentar o cenário econômico da época em estilo quase jornalístico e se inscreve como herdeiro da luta contra a inflação. Pouco, muito pouco!

Ora, a mera denúncia do “vício do rentismo” ou do “populismo cambial” não encontram no livro uma explicação lógica! Esta ausência é decisiva – não para um inventário da trajetória do autor – mas é importante para entender as amarras do presente: de onde nasceu o rentismo, cujo epicentro é o assalto ao estado permanente produzido pelo crescimento exponencial da dívida pública interna? Eu não sou desenvolvimentista, mas Ciro, sim. Nesse terreno, ele precisa render contas do passado, explicando agora, com riqueza de detalhes, como o capital financeiro e a valorização fictícia do capital adotado por comerciantes, industriais, latifundiários, setores minúsculos das classes médias proprietárias e, sobretudo, as multinacionais, consolidaram a coesão burguesa que domina o Estado. É claro que Ciro não tinha à época de sua condição de ministro da fazenda as condições políticas e teóricas necessárias para enfrentar os tucanos de alta plumagem; mas agora, como candidato presidencial, após tantos anos, é absolutamente indispensável que o faça se quiser credibilidade e não somente ocupar o espaço vago pelo fracasso histórico do petismo em franca decomposição aos olhos do trabalhadores.

É indiscutível que, lentamente, Ciro foi abandonando os erros de juventude. Basta lembrar que na condição de ministro, ele defendeu a privatização da Telebrás, baixou as tarifas de importação de centenas de produtos, não tomou medida alguma para baixar os juros e regular o sistema bancário, promoveu a intervenção no Banerj e no Banespa – em linha com a posterior privatização dos bancos estaduais, inclusive o BEC efetivada na gestão de Tasso Gerissati, eleito com apoio de Ciro –  entre outras medidas. No entanto, não é possível que em seu livro os parcos parágrafos destinados à análise da política econômica tucana, não exista relação entre o baixo dinamismo da economia após 1980 e o golpe de mestre que representou o Plano Real para o aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento em nome do combate à inflação! Por isso afirmei – e repito aqui – o livro não possui diagnóstico da crise atual e nem mesmo uma avalição crítica dos 116 dias nos quais permaneceu no ministério da fazenda no governo de Itamar Franco. Na verdade, a evolução posterior de Ciro não o exime de responsabilidade e uma revisão dos fundamentos que colocaram o país na grave crise que sofremos. É uma questão de honestidade política e intelectual reconhece-lo!!
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2.       2.  Ausência da crítica ao sistema petucano
Na ruptura com o PSDB, Ciro não abandonou o sistema petucano; ao contrário, não somente sua adesão ao petismo, mas sobretudo sua disciplina à Lula – ainda hoje reivindicada por ele próprio como inequívoca tolerância em relação ao PT em todas as entrevistas que concede! – constitui um depoimento histórico de continuidade da adesão à economia política que informa o capitalismo dependente rentístico da qual ele foi cúmplice como ministro da fazenda.

Naqueles “anos dourados” iniciados no primeiro governo Lula (2002) tudo corria bastante bem para a burguesia. O sistema petucano – a alternância entre petistas e tucanos na administração da ordem burguesa – comandava a política nacional enquanto o país mergulhava silenciosamente na mais profunda dependência e no subdesenvolvimento. Na verdade, todos e cada um dos males que Ciro pretende solucionar com seu programa resultam precisamente do desenvolvimento dos pressupostos que ampararam a criação do Plano Real.

A miséria do sistema petucano foi, portanto, compartilhada por Ciro durante longo tempo; também ele, à sua maneira, tocou a manivela daquele sistema que jamais deixou de aprofundar a dependência do país. Ciro permaneceu muito tempo com o petismo; demasiado tempo, eu diria. A ruptura ocorreu somente nas últimas eleições presidenciais quando o fracasso histórico do PT e do sistema petucano era mais do que evidente embora ainda não sancionado pelas urnas.

O fracasso histórico do PT não se origina na sua inocultável crise moral e ética. Esta, grave em si mesma, é produto de algo que Ciro evita tocar: o petismo foi a mais importante tentativa de mudar o Brasil nos marcos da ordem burguesa. Ora, diante da coesão burguesa dirigida pela fração financeira consolidada no Plano Real, o petismo não criou um polo oposto de caráter proletário ou popular necessário para sustentar um pacto à moda antiga, aquele típico do nacionalismo reformista de Getúlio e Jango. Não! Ao contrário, a miséria petista não nasce do roubo nas estatais ou nos modestos programas sociais que praticou na forma de uma inaceitável digestão moral da pobreza, mas precisamente da incapacidade de “distribuir renda” onde comanda a superexploração da força de trabalho, de ampliar a cidadania quando o estado declara a guerra de classes, de lutar pela soberania nacional quando a regra é o aprofundamento da dependência. Ciro mantém silêncio sepulcral sobre tudo isso e, mesmo num sentido genérico, não há no livro um programa capaz de avançar em relação as promessas do petismo.

Portanto, a dialética da luta dentro da ordem e contra a ordem é decisiva para todo aquele que pretenda mudar algo no país. A tragédia da esquerda brasileira consiste na verdade elementar representada pela linha de atuação do proto fascista Bolsonaro que, desde as últimas eleições, ataca sistematicamente os limites da ordem para a expansão da acumulação de caráter rentística, enquanto a esquerda, em nome da democracia em abstrato, se resume à defesa das instituições apodrecidas que não mais possuem a confiança das maiorias. Em todo seu livro Ciro não consegue sequer observar esse grave problema e a razão é simples: ele julga possível, com o exemplo de sua trajetória, duas moléculas de lucidez e algumas páginas de programa político, restaurar as virtudes republicanas do sistema político brasileiro que apodrece a cada dia diante dos olhos atônitos dos trabalhadores.
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3.       3. Ciro opera um giro à direita no trabalhismo
Em 1985 o mineiro Theotonio dos Santos publicou O caminho brasileiro para o socialismo (1987). Expressão de uma importante trajetória da esquerda revolucionária brasileira, Theotonio foi o primeiro candidato a governador em Minas pelo PDT de Brizola em 1982. No primeiro governo do gaúcho no Rio, assumiu uma diretoria na FESP e, naquele ano, publicou seu livro como espécie de justificativa teórica de sua adesão ao PDT. O livro pretendia ampliar o horizonte da tradição trabalhista no socialismo, afirmar sua vigência histórica e, finalmente, atualiza-lo no contexto da transição da ditadura para a democracia burguesa. Na verdade, Theotonio não era andorinha solitária. No mesmo ano, Edmundo Moniz – secretario de cultura do governo fluminense encabeçado por Brizola – publicou A originalidade das revoluções, onde declarava que “O PDT, liderado por Leonel Brizola, tem condições essenciais para tornar-se a grande vanguarda socialista do povo brasileiro”. A despeito do irrealismo da proposta, essas são postulações do passado? Acaso perderam vigência em meio a maior crise que o Brasil vive desde 1964? Ora, os militantes jovens do PDT necessitam saber que no seu partido existiam potentes intelectuais ao lado de Brizola, todos com larga tradição revolucionária, onde destacavam Darcy Ribeiro, Abdias Nascimento, Edmundo Moniz, Vania Bambirra, Theotonio dos Santos, Rose Mari Muraro, entre outros.

O então governador do Rio de Janeiro não poupava críticas às “perdas internacionais” e tampouco vacilava na defesa do “socialismo moreno”. Em dezembro de 2003 o PDT rompeu com o governo Lula. Porém, após a morte de Brizola – ocorrida em junho de 2004 – o PDT só não permaneceu errante porque atuou com um verdadeiro puxadinho do PT, ocupando ministérios secundários, até que a destituição da Dilma inaugurou novas exigências. Ciro, ao contrário de Brizola, manifesta simpatia pela social-democracia de maneira superficial apenas como meio para não tratar o espinhoso tema do capitalismo dependente periférico, ainda mais terrível em sua fase rentistica, realidade que dilui todo e qualquer sonho rosado de redimir da miséria 90% da população sem tocar nas bases do poder e da propriedade da coesão burguesa. Portanto, o livro de Ciro transita exclusivamente no terreno das possibilidades eleitorais sem anunciar ou pelo menos estabelecer uma ruptura real com o sistema político que apodrece diante dos olhos atônitos dos trabalhadores. Em resumo, trata-se de um “neodesenvolvimentismo” sem as contribuições do estruturalismo cepalino (CEPAL) e na ausência completa de uma análise crítica do capitalismo dependente rentístico a que estamos submetidos.

Ademais, o passado de Brizola, sua atuação nos governos do Rio de Janeiro e também a filiação à socialdemocracia europeia, indicavam inclinação anti-imperialista, sempre temperada com amplas relações com as lideranças progressistas e revolucionárias da América Latina como no caso da Nicarágua, para lembrar apenas um exemplo. No Parque Anchieta, no Rio, o CIEP leva o nome de General Augusto César Sandino...

Ciro, na prática, operou profunda ruptura com o melhor do trabalhismo. No entanto, segue prestando homenagem retórica as figuras mais importantes daquela tradição (Getúlio, Pasqualini, Jango, Brizola...). É fácil constatar essa ruptura em seu livro. Darei apenas dois exemplos mas o leitor poderá encontrar vários!

O primeiro exemplo da radical ruptura com o antigo ideário do PDT  – é até certo ponto surpreendente!! – Ciro oferece no livro ao afirmar que se filia à tradição trabalhista a partir do resumo feito por Mangabeira Unger quando este assinou sua refiliação ao PDT em novembro de 2015. Ora, resulta que o “resumo” da longa tradição trabalhista feito por Mangabeira aparece num discurso de 13 minutos e 45 segundos que, na prática, antes de atualização é, sem dúvida, um abandono completo dos postulados que animaram o trabalhismo histórico. A “distinção histórica” do PDT não encontra amparo na “combinação dos 5 compromissos” indicados naquele discurso pífio do professor de Harvard que Ciro apenas transcreve em seu livro como se representasse um novo horizonte histórico capaz de enfrentar a jaula de aço da dominação burguesa no Brasil.

O segundo exemplo da ruptura com a tradição trabalhista aparece no confinamento do nacionalismo à luta contra o “colonialismo mental” como se os grilhões que atam a nação ao capitalismo dependente rentístico não tivesse vínculo com as “perdas internacionais” insistentemente denunciadas por Brizola – ou seja, bases materiais, cuja expressão máxima são as empresas multinacionais e as remessas de lucros – e resultasse apenas do comportamento intelectual mimético das elites locais em relação ao pensamento criado nas metrópoles. Ciro repete que o “colonialismo mental nos condena ao subdesenvolvimento” enquanto Mangabeira define o colonialismo mental como aquela “disposição de interpretar nossa experiência e nossos futuros  possíveis pelos olhos de ideias trazidas de outros países – os países de referência...”.  

Ora, a expansão imperialista dos EUA prima pela ausência no livro de Mangabeira e, com essa pequena omissão, emerge a figura dos “países de referência”. Não é um orwellianismo genial? Ademais, os Estados Unidos aparecem – não numa, mas em várias oportunidades – como um espelho para o Brasil! Impossível não perceber que os efeitos perversos da praga do colonialismo mental afetaram até a medula o próprio autor que não cansa de observar o Brasil pelas lentes da história estadunidense. Pior mesmo é constatar que Mangabeira utiliza conceitos e expressões caras ao pensamento crítico para esteriliza-las em seu sentido original. A troca desigual, por exemplo – tão decisiva para entender a dependência e as “perdas internacionais” anunciadas com insistência por Brizola –, aparece agora na anedótica “sentimentalização das trocas desiguais”, fruto de uma leitura culturalista superficial do homem brasileiro que, segundo o professor de Harvard, oscilaria entre a patifaria do brasileiro (inclinado à cooptação, aos panos quentes, ao meio termo, etc...) e a capacidade “empreendedora” que, finalmente, poderia nos levar a condição de uma potência econômica sem paralelo na história mundial!! De resto, Mangabeira não cansa de buscar nas imaginárias semelhanças entre o Brasil e os Estados Unidos (“o país com que mais nos parecemos”) receitas para nosso presente, escavando na história do país imperialista não a maneira de Howard Zinn, mas de um interprete rebaixado de Alexander Hamilton e das correntes nacionalistas de direita que abundam no Império.

4.       4. O que fazer com a burguesia no projeto nacional?
Ciro Gomes postula que para viabilizar o projeto nacional será necessário construir nova burguesia.
A tematização da burguesia brasileira no processo de transformação do país rendeu importante debate no interior da esquerda brasileira. Afinal, no caminho da Revolução Brasileira, qual o papel da burguesia? Em termos pedestres as correntes se dividiam entre aqueles que conferiam um papel nacionalista à burguesia – razão pela qual esta poderia se aliar ao proletariado no enfrentamento ao imperialismo – e aqueles que afirmavam sua natureza cipaya (entreguista) motivo pela qual a burguesia não vacilaria em se aliar ao imperialismo, trair a nação e sacrificar o proletariado na luta política.
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FHC e José Serra em polêmica clássica contra Ruy Mauro Marini – outro mineiro que a despeito de jamais se filiar ao PDT de Brizola também trabalhou na FESP sob direção de Theotonio dos Santos – sempre reservaram um papel ativo à burguesia como consequência necessária da concepção segundo a qual o caráter associado do desenvolvimento capitalista dependente no país exigia uma aliança entre as classes populares e a burguesia, especialmente com o capital industrial nacional.

Ruy Mauro Marini, ao contrário, matou a charada revelando a natureza apologética dos estudos de FHC e Serra que, sem inibição, reservavam à burguesia nacional um papel progressista e importante em qualquer projeto desenvolvimentista que, finalmente, levaram a cabo com a vitória eleitoral em 1994. Em consequência, Marini postulou em sentido contrário ao afirmar que na luta pela Revolução Brasileira os trabalhadores não poderiam contar jamais com possibilidade da burguesia ou ainda setores dela apoiar um projeto de “desenvolvimento soberano e igualitário”. As leis que regem o desenvolvimento capitalista periférico – a superexploração da força de trabalho e a transferência de riqueza para o mercado mundial – impediria estruturalmente tal possibilidade. Portanto, sintetizou nossas opções: subdesenvolvimento ou revolução!

No projeto nacional apresentado por Ciro, emerge uma tese surpreendente, com a confessa e “instigante influência intelectual” de Mangabeira. O candidato do PDT alega que será necessário criar uma nova burguesia! Em suas próprias palavras: “Tenho defendido a importância de construirmos, no Brasil, uma nova burguesia que democratize a formação de capital e oxigene a burguesia tradicional que se acomodou, em grande parte, nos ganhos fáceis do rentismo.” Com mais precisão, Ciro informa: “Como já expus aqui, essa nova burguesia seria formada pela parcela bem-sucedida dos estudantes inovadores e emergentes empreendedores. Apesar de várias medidas de apoio e fomento do Estado que já foram esboçadas aqui, a chave básica para empoderar essa classe emergente é a restauração da normalidade das condições de crédito, ausentes no Brasil há quase 40 anos.”

De fato, não deixa de ser uma questão verdadeiramente instigante pois até agora o drama da esquerda consistia em eliminar a burguesia, jamais construir outra burguesia. A despeito da originalidade, a vida tampouco seria fácil nesse mundo encantado pois restaria um desafio nada trivial: afinal, o que fazer com a “antiga burguesia”, aquela que se acostumou com os lucros fáceis do rentismo? Finalmente, como inocular no DNA da “nova burguesia” um anticorpo capaz de impedir o novo empreendedorismo de sucumbir – tal   qual sua alma gêmea – à antiga tentação do lucro fácil? Não há respostas no livro...

O papel aceita tudo, escreve Ciro. Tem razão; a vida, ao contrário, tem muitas exigências. No livro de Ciro Gomes a nova burguesia nasceria do caráter empreendedor de nosso povo sob a roupagem de um “produtivismo includente” derivado da “economia do conhecimento” anunciada por Mangabeira em quase todos seus livros, mas especialmente no último. Segundo Mangabeira, tudo se resume a iniciar o longo caminho, sem precedente claro no mundo, nem mesmo nos Estados Unidos ou na China, rumo a forma inclusiva da economia do conhecimento, organizada para a “inovação perpétua” (p. 64, de Após o colonialismo...). Mangabeira, assim como Ciro, eludem o fundamental: o capitalismo que sofremos não se assemelha em nada com aquele no qual viveu Adam Smith, repleto de pequenos e médios empresários mas, precisamente, no seu contrário, ou seja, o mundo capitalista que governa nossas vidas e orienta a ação dos estados é ordenado pelos monopólios. Num país periférico, dependente – após as mudanças estruturais implementadas pela economia política do Plano Real – em sua fase rentística, cuja característica histórica é a monopolização “precoce” do chamado mercado interno, a receita de Mangabeira/Ciro não passa de ideologia. Ora, o lucro extraordinário numa economia capitalista é um suposto da concorrência entre os grandes capitalistas e constitui o motor do avança tecnológico. Um estudante de segundo ano de economia já sabe que nesse contexto, as chances de um “pequeno negócio” orientado pelos “novos empreendedores” não pode se constitui como uma “nova classe emergente” mesmo com o Estado regulando crédito e garantindo demanda.

Engana-se aquele que supõem ingenuidade de Ciro/Mangabeira o projeto de criar uma nova burguesia. Na verdade, essa surpreendente formulação é puramente ideológica, cujo destino esta orientado pela ocultação de algo essencial: nas condições concretas do Brasil, como enfrentar as multinacionais?

As multinacionais num país periférico não somente monopolizam rapidamente o mercado interno mas sobretudo transferem dólares para as matrizes sob múltiplas formas (sub e super faturamento, pagamentos de royalties, remessas de lucros, etc) que sangram o balanço de pagamento de maneira permanente. Jango impôs a lei de remesses de lucros. Brizola denunciou as “perdas internacionais”. E Ciro? Ciro sacraliza o domínio do capital estrangeiro no seu livro: “Não devemos praticar nem a abertura indiscriminada nem o fechamento indiscriminado. O que um país deve procurar é encontrar o ponto ótimo, cambial e alfandegário, no qual ele possa exportar todo excedente do que produz de forma competitiva para pagar com esses dólares a importação dos bens em que ele é mais improdutivo e as remessas de lucros que as multinacionais efetuam para suas sedes.”


Epílogo: neo-desenvolvimentismo ou nacionalismo revolucionário?

O nacionalismo esta em disputa na sociedade brasileira. De um lado, um proto-fascista exibe a miséria do nacionalismo de direita cuja expressão maior pode ser observada nas propostas de Morão (https://nildouriques.blogspot.com/2017/10/o-general-no-pendulo-de-washington.html) como militar entreguista e pró imperialista e, também, num presidente da republica que bate continência para a bandeira estadunidense. No lado "oposto", a esquerda liberal revela sua timidez e ignorância diante da necessidade de afirmar o nacionalismo como a arma eficaz na retenção do excedente econômico produzido aqui sob o chicote da superexploração. As propostas contidas no livro de Ciro caminham no interior do circulo de ferro do subdesenvolvimento e da dependência sem jamais confrontar seus limites. Nesse aparente lusco-fusco, emergiu a necessidade de um nacionalismo revolucionário que ainda não encontrou sua tradução política e partidária. No entanto, o ritmo das transformações em curso mais cedo do que tarde exigirá sua emergência plena, não tenho dúvidas. 

Creio que é suficiente. O projeto nacional apresentado por Ciro é incapaz de figurar como alternativa à ordem dominante. Não descarto a possibilidade de ele vencer uma eleição presidencial; no entanto, nesse caso, estaríamos diante de uma repetição trágica do sistema político brasileiro em crise terminal.  O Brasil já caminha numa lógica das situações extremas e, nestas circunstâncias, a tentativa de conciliar o irreconciliável não fará menos que alimentar a força da classe dominante contra a maioria do nosso povo. O pensamento crítico latino-americano já elucidou há muito nossas opções: ou perpetuamos o subdesenvolvimento ou abrimos as portas da revolução brasileira.