domingo, 25 de julho de 2021

Quando as estátuas se movem


O encanto e a perplexidade no contato com a cultura e a política no México, creio, é comum a todo aquele que visita o país latino-americano do norte. No meu caso, a perplexidade era maior que o encanto pois em contraste com nossa tradição política orientada meticulosamente pela ideologia dominante - a ideologia da classe dominante - lá não é possível participar da política sem conhecimento da História. Portanto, meu espanto tinha raízes que desconhecia: a ignorância acumulada sobre a história nacional brasileira. No México, de estações do metrô a ruas e bairros - sem falar em cidades - quase tudo leva nome de rebeldes e revolucionários. Uma das principais avenidas do país se chama Revolución. A estação de metrô na linha que com frequência utilizava, Zapata. Outra mais adiante, División del Norte, homenagem a Pancho Vila. Por toda parte é possível ver monumentos e museus, sem falar no muralismo de Diego Rivera, Siqueiros, Orozco onde arte, revolução e História estão em perfeita comunhão.

Alguns anos após minha vida no México, fui assaltado pela mesma angustia quando voltando de um sebo descobri numa avenida de Caracas uma estátua em homenagem a Abreu e Lima. Na terra do general Ezequiel Zamora e de Simón Rodrigues eu me descobria novamente ignorante sobre a história das lutas no Brasil. A súbita desconfiança de que Abreu e Lima era português se desfez na volta ao hotel onde todas as noites, eu jantava com uma dupla que exibe paciência infinita numa conversa: Aldo Rebelo e Eduardo Suplicy. Os três participávamos de um evento organizado pela oposição venezuelana sobre a dívida externa e Hugo Chávez ainda não tinha emergido das entranhas das forças armadas para liderar um golpe inicialmente fracassado contra o governo constitucional de Carlos Andrés Perez. Então eu perguntei aos meus camaradas de mesa sobre Abreu e Lima. Aldo - meu contemporâneo de movimento estudantil - com aquela paciência atávica que até hoje o caracteriza, me deu uma breve e fecunda aula sobre a Revolução Pernambucana, Padre Roma e o general Abreu e Lima. De volta ao Brasil minha pesquisa sobre nosso general bolivariano iniciou com a leitura de um livro sobre o socialismo.

Quando fui viver na Argentina eu não mais ignorava a história nacional da Pátria Grande mas ainda assim o contraste é enorme com nossa tradição: no país vizinho, a referência histórica nas disputas políticas emergem a todo momento, razão pela qual após qualquer conversa a necessidade de correr para uma livraria ou biblioteca é imediata. Política é história!!  

No México, na política burguesa, Zapata e outros personagens históricos da Revolução Mexicana eram mencionados com frequência na boca de políticos vulgares e da esquerda parlamentar. Era menção quase alegórica, até o momento em que Zapata, Villa, Cárdenas deixaram de ser estátuas. No dia 1 de janeiro de 1994, por exemplo, explodiu em Chiapas a rebelião zapatista encabeçada pelo EZLN e, nesse caso, eu já tinha lido e tido aulas com Antonio García de León (Resistencia y utopia) de tal maneira que o espanto estava acompanhado com certo conhecimento da realidade indígena do país e do estado do sul. A partir daquela data, na política mexicana, Zapata deixou de ser uma estátua e produziu um movimento de massas cujo epicentro indicaria pouco tempo depois, o fim de um regime de partido de estado que durou 72 anos! 

Na Venezuela, também Bolívar era, além de estátua, menção cotidiana nos discursos de políticos vulgares pronunciados em salões burgueses até que numa bela manhã de 4 de fevereiro de 1992 o continente despertou com um movimento criado no interior das forças armadas (Movimento Bolivariano Revolucionário 200) cujo objetivo era nada menos do que a destituição pela força do governo constitucional de Carlos Andrés Perez. Então, como num passe de mágica, nunca mais um copeiano ou adeco - os dois partidos que dominavam a cena por décadas num regime completamente apodrecido - mencionaram novamente o nome do Libertador de maneira impune pois também o general Bolívar - assim como Zapata no México - tinha deixado de ser estátua para se converter no germe da Revolução Democrática Bolivariana.  

A reflexão anterior surgiu a propósito da queima de uma estátua em São Paulo no fim de semana. No Brasil, a política se faz sem o recurso à nossa rica historia nacional. Na prática, se faz ignorando a história nacional. Por isso, talvez, é mais fácil queimar estatuas do que faze-las caminhar.  




22 comentários:

  1. Parabéns. Também achei absurdo a queima de estátuas sem o compromisso histórico que a levou até lá. O quão seria rico se, ao invés dos pneus, fossem os professores a contar para quem nunca soube quem foi a figura desse bandeirante paulista.

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  2. Boa percepção, mas acho que você tem acúmulo e força pra escrever mais e melhor sobre esse assunto! Inclusive faço a provocação de falar, aqui ou em outro espaço sobre o muralismo e sobre monumentos destruídos!

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  3. Preciso! Muito obrigada professor Nildo Ouriques!

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  4. É disso q o Povo precisa, alguém que espalhe o conhecimento/obrigada, Nildo Ouriques!!!

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  5. Eu apoio duas atitudes [pois não são contraditórias entre si] que vivem em tensão dialética dentro de mim: a atitude iconoclasta de destruição dos "ídolos" e das "imagens"; das estátuas e monumentos de símbolos do Poder do passado e/ou [como historiador] sua retirada para um museu de novo tipo - que ainda há de ser construído! As duas atitudes são válidas. O ato da "queima" do Borba Gato foi extremamente simbólico e ultra-poderoso,(gostaria que o Nildo tivesse se debruçado mais sobre isso] num país - que ainda não é uma nação - COM 500 ANOS [200 de independência ano que vem] DE INIQUIDADES CONTRA SEU PRÓPRIO POVO!

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  6. De tal maneira que é assim, mas o que foi pra ser o que é?

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  7. A verdadeira consciência está na História, a explicação de nosso comportamento, a forma de acumular riquezas, a nossa segurança institucional.

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  8. Ao que se prestava Borba Gato, para merecer estátua pública? Por favor Nildo Ouriques, narre sobre a história em que esse sujeito se incluí!

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  9. Não existe história no Brasil! Ou melhor, no Brasil se eleva ao extremo a máxima que a história é contada pelos vencedores, que no nosso caso são os integrantes do topo da pirâmide. Esses nem se dão ao trabalho de fingir que havia outras formas de pensar que não a deles próprios.

    O que você recomenda de leitura?

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    1. Vendo esse vídeo penso que a política de não existir história é de origem portuguesa:

      https://youtu.be/QlPK_ked2HE

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  10. Exatamente! Quando morei na Argentina levava um tapa na cara por dia por não conhecer a história do meu país.

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