A lei de bronze como lei moral
Não poucas vezes a consciência ingenua dos homens é governada por leis de bronze. Leis de bronze são consideradas não somente eternas mas também inflexíveis. Guiados por semelhante crença, eles julgam suficiente a adoção de uma lei qualquer para transformar o mundo ou criar garantias contra as paixões inerentes a vida, sempre avessa a disciplina dos poderes. A experiência ensina que as leis de bronze se assemelham aos postulados
morais, razão pela qual a consideração de que "um país não pode gastar
mais do que arrecada" equivale ao mandamento sagrado "não
matar", "não roubar" ou "não desejar a mulher do
próximo". A violação das regras morais tal como o desrespeito às leis de
bronze implicam em condenação sumária, castigos severos ou ainda o inferno.
O pecado original e a expulsão do paraíso - Michelangello |
O fascínio que certas leis de bronze exercem na cabeça dos
homens e a eficácia que eventualmente podem adquirir na vida social, tampouco resiste ao confronto com o real. Neste sentido, as leis de bronze
quando exibem sua solidez, cumprem funções ideológicas, ou seja, cumprem
funções de legitimação de determinada política ou contribuem com o processo de
dominação em seu conjunto. Mas jamais serão eternas.
A lei da responsabilidade fiscal é de bronze
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) é a principal lei de bronze em
uso na sociedade brasileira. Em consequência, a legitimação político-social
para o processo de destituição da presidente Dilma apareceu inicialmente sob a
forma jurídica de crime de responsabilidade cometido contra a lei fiscal,
obrigação de zelo absoluto de todo governante realmente preocupado com a sorte
republicana. A imprensa e os políticos da ordem insistem que as "pedaladas
fiscais" constituem crime de responsabilidade, a despeito dos pareceres
técnicos em favor da presidente Dilma no senado. A questão não é técnica,
obviamente; de resto, sabemos que política e verdade raramente coincidem. A
oposição tucana apelou à LRF consciente do golpe certeiro contra a legitimidade
da presidente mas também porque inauguraria nova cruzada moral em
favor da valiosa lei de bronze: nenhum governante pode produzir déficits, pois
estes seriam, especialmente em tempos de crise, muito nocivos para o Estado e
para o bem estar social da população.
Em perspectiva histórica, esta cruzada em favor da austeridade e
contra o déficit público atua como espécie de reforma moral em
meio a crise. Era preciso - sabe a classe dominante - manufaturar a opinião
pública favorável as políticas de austeridade iniciadas por Dilma e agora em
fase avançada de consolidação com Temer. Neste tempo turbulento, toda economia
de recursos é necessária, razão pela qual os já minguados programas sociais
antes motivo de orgulho dos petistas representam luxo porque, como acredita o homem
comum, "a vida não esta fácil para ninguém". A maior parte das
pessoas julga que a crise afeta a todos negativamente e nem nos piores
pesadelos podem supor a crise como aquela oportunidade extraordinária para os capitalistas acumular fortunas e/ou criar condições para
conquistar maior riqueza e poder.
Ao povo, a austeridade permanente |
Na exaustão do sistema político emerge a figura e
evidencia-se a função de Temer. Nada mais afeito à crise que um político com o
perfil do golpista. Temer é perfeito porque "chegou lá" pelas mãos
generosas do pragmatismo petista, aquele mesmo pragmatismo considerado até bem
pouco tempo não grave limitação política ou submissão à correlação de forças
supostamente desfavorável para avançar em direção de reformas radicais em favor
do povo mas, ao contrário, um pragmatismo então considerado pedra angular da
astucia e da inteligencia lulista pretensamente capaz de agradar proletários e
burgueses em favor de alguns trocados para as classes subalternas. Ademais,
Temer é a quinta-essência burlesca do bacharel oitocentista, misto de
discurso e gesto antiquado, mas disponível à política de modernização de todas
as frações do capital e disposto a seguir com enorme convicção para o lixo da
história com direito a aposentadoria de presidente sem culpa no cartório. Ele
próprio talvez não saiba, mas ao menos suspeita que ao tocar no teto, tocou
também no fundo.
A república rentista e a lumpemburguesia
A popularidade insistentemente baixa de Temer e a estética retrô que insinua não o torna menos perigoso ou uma ameaça somente evidente após o golpe, quando rompeu com seus companheiros
petistas de aventura. Um homem disposto a tomar qualquer medida contra os
trabalhadores e depois retirar-se à vida privada como ele próprio já anunciou,
é um homem pronto para aceitar qualquer negócio. A propósito, as recentes denuncias
de corrupção contra ele apenas elucidam sua disponibilidade histórica para
aceitar qualquer negócio.
A beligerância de Temer resulta, portanto, em algo mais valioso que sua disposição manifesta para as transações tenebrosas: reside no
"comando" de um governo controlado sem inibições pelos banqueiros com
apoio das demais frações do capital (comerciantes, industriais e
latifundiários). Nas circunstâncias atuais, a única fração de classe capaz de dirigir o país é, de fato, a
fração financeira, pois a regressão da burguesia industrial é enorme e sua consciência de classe em nada se assemelha ao comportamento clássico da burguesia industrial inglesa do século XVIII, quando comandou a revolução industrial em favor dos seus interesses. Diante da lumpemburguesia brasileira,
somente a fração financeira possui clara capacidade de colocar as condições
gerais do funcionamento da economia mundial em seu proveito, dividindo de maneira
desigual o botim. Adeus desenvolvimentismo!
Nunca será ocioso recordar a importância do "ajuste" praticado
por Dilma para sedimentar as condições necessárias ao golpe agora denunciado
pela ex-presidente. Ela estabeleceu o fim de seu mandato ao julgar possível a
manutenção das regras do jogo - super lucros para o capital e passividade dos
sindicatos e dos movimentos sociais - realizando a política da direita em
matéria econômica em "troca" dos minguados programas sociais dos
governos petistas. No fundo não logrou mais do que a digestão moral da pobreza,
porque como agora podemos ver, o efeito dos programas sociais inéditos na
historia do país, se derretem feito gelo ao sol. A força da crise solapou sem
demora esta ilusão. A direita aproveitou o momento e retomou a iniciativa
política no terreno parlamentar, na imprensa e, de maneira surpreendente, nas
ruas. Os trabalhadores e suas organizações apenas despertam da anestesia que supunha possível o fim do abismo social nos marcos do capitalismo. A reforma moral esta em curso e seu nervo mais importante é a LRF cujo objetivo evidente é a perenização do princípio da austeridade
contra o povo. Somente assim podemos entender as leis contra os direitos trabalhistas, o aperto contra os governos
estaduais, o fim do reajuste para o funcionalismo público, etc, etc.
No purgatório é possível pecar
A oposição tucana ao governo dispensaria o suposto descuido de Dilma com
as contas públicas e, de fato, eles se lançariam à luta por sua destituição sob
qualquer argumento. No entanto, foi Dilma quem permitiu a ofensiva quando os
impactos sociais do ajuste praticado pela presidente eleita com discurso de
corte keynesiano afetaram agudamente os mais pobres, negando a promessa da campanha
vitoriosa. O golpe foi fatal contra os trabalhadores e ainda mais corrosivo nas
filas da resistência a estratégia golpista. No entanto, a tragédia se completou
somente quando, em sua defesa, a presidente alegou que jamais
desrespeitou a LRF e que os atos ou decretos emitidos não violavam a lei de
bronze mais valiosa para a burguesia brasileira. Enquanto a escalada
oposicionista argumentava contra o "gasto sem caixa" - como se o orçamento
de um Estado guardasse alguma semelhança com as finanças pessoais - a presidente
alegava que o atraso dos pagamentos pelo Tesouro Nacional aos bancos estatais
que financiaram gastos do governo (Bolsa Família, Plano Safra, etc) não geraram
déficits. Em sua defesa, a presidente repetiu mil vezes que jamais
desrespeitou a LRF e, em consequência, não teria existido crime de
responsabilidade. Assim, ambos, governo e oposição, se digladiavam em combate
de morte pela mesma causa! Enfim, ainda no momento decisivo da
disputa parlamentar, o petismo manteve o pacto com os tucanos na afirmação da
"política fiscal responsável" e a renuncia a toda manifestação de
heresia na condução da política de estado.
As almas resgatadas do Purgatório |
Qualquer keynesiano de mediana formação saberia que a recessão econômica
inaugurada por Dilma (estoque superior a 12 milhões de desempregados) e
aprofundado por Temer, tornaria a situação fiscal ainda pior como os números
agora confirmam. A política sem heresia, sem risco, o apego ao pragmatismo como
ethos político de conciliação de classes, chegava tragicamente ao fim. O
petismo descobriu em meio ao pesadelo que o pragmatismo é terreno pantanoso,
repleto de riscos, ao contrário do que supunha tanto sua base social quanto
seus mais importantes "dirigentes". Ao que tudo indica, a dura lição
não implica em correção de rumos. A lógica do petismo durante toda a crise é
meramente eleitoral e, no limite, apenas pretende disputar com tucanos o
monopólio da representação da classe dominante sem a qual acreditam ser
impossível governar o Brasil. No purgatório, o petismo não promove a necessária
auto-crítica para ganhar direito a nova vida e considera que não pode romper
com as leis mais importantes para a burguesia, mesmo que precisamente esta
fidelidade tenha sido a responsável última por sua desmoralização pública.
A crença comum do petucanismo e a esquerda responsável
Quando FHC apresentou ao parlamento a LRF, deputados e senadores do PT
votaram contra. Corria o ano de 2000 e Palocci, Marina Silva (sim, Marina votou
contra a LRF!), Berzoini, Waldir Pires, Nilmário Miranda e Jaques Wagner
votaram pela rejeição do projeto. Não estavam sozinhos. O ex-candidato
presidencial e peça de reposição burguesa no jogo eleitoral, o pernambucano Eduardo Campos
(PSB), também votou contra, da mesma forma que Aldo Rebelo e Agnelo Queiroz,
ambos do PC do B. O mundo dá voltas para a direita, não?
Algum tempo depois - mais precisamente cinco anos - Palocci (após ocupar o posto de ministro da economia) declarou que "nós, naqueles idos de 2000, não demos apoio à lei.
Foi uma falha da bancada e eu me incluo nessa falha". (FSP 4/5/2007). Na
mesma época, o senador Aloísio Mercadante subiu a tribuna da senado (Agencia
Senado, 4/05/2005) para revelar que o governo Lula era mais zeloso que FHC no
manejo das contas públicas: "é inquestionável que a lei de
responsabilidade fiscal foi muito importante para o país". A conversão
petista ao credo liberal se fazia completa e os erros de juventude estavam, finalmente, superados.
Enfim, o PT e seus principais líderes - Lula a frente, obviamente -
assumiam plenamente a defesa dos postulados essenciais da classe dominante ao
adotar a LRF na vã tentativa de conquistar a confiança das classes dominantes,
esquecendo que estas não necessitam dos partidos políticos e de líderes
populares para manter a situação sob controle. Não devemos, portanto,
subestimar a força das leis de bronze. Ainda quando revelam seu poder
destrutivo, as leis de bronze podem manter o encanto sobre suas vítimas. Não
somente o PT e sua "base aliada" mantém fidelidade ao principio da
austeridade, senão que setores da esquerda "que não se vendeu ou se rendeu" reivindicam a
necessidade de uma "esquerda responsável", cujo lema não
poderia ser mais nocivo: o "Estado deve caber dentro do orçamento".
Não é pequena a conquista ideológica da classe dominante! A consequência
prática do simpático postulado - o Estado deve caber dentro do orçamento - é
que o povo deve viver de maneira permanente na austeridade.
A conversão e a luta contra o pecado |
Ora, a defesa de uma esquerda responsável limitada a manter a ação estatal nos
limites de um orçamento austero rompe com a tradição da economia política pois,
desde o século XVII, a ciência gris ensina que o orçamento é produto da riqueza
social-estatal e não o inverso. A riqueza, conceito tão elementar quanto
esquecido no Brasil, segue crescendo com a mesma força com a qual multiplica a
desigualdade social. A burguesia brasileira - comerciantes, industriais,
banqueiros, latifundiários - professam em uníssono o respeito a austeridade
permanente como se, de fato, a praticassem e, no limite, não pudessem viver sem
ela. No entanto, a historia das crises revela, que a burguesia necessita
tanto da política de austeridade (LRF) quanto da produção de déficits. Na
verdade, a produção do déficit é ingrediente decisivo no processo de acumulação
de capital desde quando a Inglaterra criou um banco a partir da dívida estatal
e produziu o impulso capitalista necessário para se transformar na oficina do
mundo. Não fosse o consenso em economia tão rasteiro entre nós, seria ocioso
recordar questões tao elementares da historia do capitalismo completamente
ignoradas em função do caráter ideológico do "debate" econômico.
Teoria e práxis do rombo fiscal
A história do capitalismo contemporâneo evidencia o caráter ideológico
da lei de bronze pois tanto o principio da austeridade quanto
a produção do deficit depende sempre de interesses concretos.
Enfim, a lei deixa de funcionar quando a conveniência burguesa determina; em consequência, as classes
dominantes, quando necessário, desprezaram sutil e completamente as leis de
bronze com o conhecido recurso do assalto ao estado. Assim, os déficits
supostamente indesejáveis se tornam inevitáveis e a defesa aberta da LRF vai
pra segundo plano em função das exigências da conjuntura. A dívida do estado é,
finalmente, o grande negócio para os capitalistas, razão pela qual seu
pagamento religioso é também considerado uma lei de bronze: dívidas devem ser
honradas em qualquer situação. O pagamento da dívida requer superávits fiscais e comerciais permanentes e, em consequência, a austeridade se transforma em imperativo
político-moral.
Os banqueiros - não simples ladrões - assaltam o Banco Central |
Os capitalistas aceitam a erupção dos déficits quando a quebradeira de
empresas (geralmente monopólios) exige a intervenção do Estado tal como ocorreu
em 2007 e 2008 nos Estados Unidos. O governo republicano de George Bush não
vacilou em utilizar recursos públicos para salvar a General Motors, o sistema
bancário, as seguradoras que estavam em completa bancarrota pela ação de seus
executivos. A extensão do fenômeno indica quebra sistêmica, jamais produto da ação
"irresponsável de um executivo"; ao contrário, ainda que muitos deles
foram processados individualmente, ficou claro que a administração temerária
dos grandes monopólios era, na verdade, um modelo exigido pelas regras do jogo.
O Estado então aprofundou o déficit para salvar os monopólios sem vacilação
alguma e naquele tempo ninguém - na imprensa ou nas organizações patronais -
lembrou da doutrina das contas públicas superavitárias.
O Brasil não foge a regra, mas tem lá sua particularidade. O quadro
abaixo mostra a evolução do superávit primário, do gasto financeiro e do
resultado nominal até 2015 segundo os dados do Banco Central.
Ano
primário
gasto financeiro resultado nominal
2003
|
55,6
|
-144,6
|
-89,0
|
2004
|
72,2
|
-128,5
|
-56,3
|
2005
|
81,3
|
-158,1
|
-76,8
|
2006
|
75,9
|
-161,9
|
-86,0
|
2007
|
88,1
|
-162,5
|
-74,5
|
2008
|
103,6
|
-165,5
|
-61,9
|
2009
|
64,8
|
-171,0
|
-106,2
|
2010
|
101,7
|
-195,4
|
-93,7
|
2011
|
128,7
|
-236,7
|
-108,0
|
2012
|
105,0
|
-213,9
|
-108,9
|
2013
|
91,3
|
-248,9
|
-157,5
|
2014
|
-32,5
|
-311,4
|
-343,9
|
2015 -111,2 -501,8 -613,0
Até 2013 os sucessivos governos do PT acumularam suculentos superávits
fiscais (superavit primário). O gasto social era controlado com mão de ferro, a
despeito da propaganda governamental sobre os programas sociais e a ideológica
emergência de uma nova classe média num país subdesenvolvido.
Em 2014 apareceu o primeiro déficit em mais de uma década; ainda assim,
cifra modesta: apenas R$ 32,5 bilhões. Na verdade, ao contrário do que afirma a
oposição tucana, o minúsculo déficit não era sequer capaz de fomentar ações do
governo para enfrentar um ano eleitoral, no qual, como manda o comportamento
republicano vigente, o governo colocaria a máquina a funcionar em favor de seus
candidatos. O reduzido déficit, no entanto, não pode ocultar tema relevante:
neste ano, ocorreu fantástico crescimento do pagamento de juros, pois enquanto
2013 a orgia financeira consumia 157 bilhões, em 2014 exigiu
adicionais 343,9 bilhões!! Esta rápida evolução dos gastos com o
rentismo financeiro deve-se em primeiro lugar a decisão de Dilma em aplicar a
ortodoxia neoliberal na condução da política econômica. Os banqueiros
pressionaram como alegam petistas? Claro que sim! Mas quando foi diferente? Os
banqueiros pressionam há séculos os governos e aproveitam toda crise para
assaltar o Estado via dívida pública e empréstimos externos.
A situação já insustentável piorou ainda mais em 2015 com a política
ultra neoliberal aplicada por Dilma. O déficit primário, ou seja, o
gasto do governo sem a contabilização dos juros, alcançou 111,2 bilhões;
mas o déficit nominal, aquela cifra que contabiliza o pagamento de
juros, registrou importante acréscimo: saltou para 613 bilhões (501,8 bilhões com o pagamento de juros), quase o dobro
do ano anterior.
Neste contexto podemos entender o giro a direita operado por Dilma
quando, de maneira surpreendente para seus desavisados eleitores,
adotou sem vacilação o programa defendido por Aécio Neves. Nenhuma surpresa, antecipo, pois a
causa fundamental do giro à direita estava escrito nas estrelas. Numa economia
dependente, comandada pelo rentismo, somente um estadista poderia convocar o
povo e mudar o rumo da economia e do Estado. Dilma e a cúpula petista - Lula à
frente, sempre - decidiram praticar a política do adversário derrotado com a
certeza de que não poderiam deixar a burguesia sob hegemonia tucana. Ao adotar o
programa liberal, Dilma julgou que mataria dois coelhos com uma cajadada:
segundo seus cálculos, a direita estaria com ela na medida de seus interesses e
a esquerda julgaria que tudo poderia ser pior com Aécio, aceitando, assim, a
dura realidade. Não se deve esquecer a pressão quase pública de Lula para levar
Meireles ao comando da economia, indicando a "necessidade" da rápida atuação para o insaciável apetite rentista. Enfim, é legitimo considerar que Lula queria mais
rapidez no ajuste e todos podem recordar seu breve ativismo no meio sindical ao afirmar que a questão decisiva não era o pântano moral da cúpula petista mas a crise econômica.
A súbita guinada à direita não decorria, portanto, somente da suposta astucia e descarado oportunismo político da direção petista. Era, na verdade, uma imposição das
condições concretas, das exigências da república rentista e especialmente da
fração financeira da burguesia diante da minima ameaça de interrupção do fluxo
financeiro a seu favor em caso de inadimplência do Estado. A redução da
capacidade de pagamento permitiu a cena necessária para a mudança de rumo, o
fim da breve e precária primavera keynesiana (nova matriz econômica) e a fatal imposição da
volta à ortodoxia como se, de fato, os políticos tivessem finalmente recuperado a lucidez que as finanças reclamam.
A crise escancarou outro ritmo. A burguesia queria um ajuste rápido e
profundo, sem a parcimônia petista que faria tudo exatamente igual, porém, de
maneira "negociada". É claro que o ajuste praticado por Dilma foi
violentíssimo! Milhões de desempregados em poucos meses, acelerado processo de
decadência e desnacionalização industrial, agravamento da questão fiscal pela
recessão, desvalorização da moeda e certa inflação para corroer o poder de
compra dos salários. A crise financeira do Estado -
diretamente proporcional a força da política de juros praticada pelo governo
via Banco Central - era de fato inocultável, mas Dilma não somente vetou a
auditoria da dívida como insistiu na natureza fiscal de um
problema sob o qual já não tinha controle.
Na cabeça dos keynesianos a política econômica deveria defender a
industria nacional, mas eles parecem ignorar os efeitos destrutivos do Plano Real
sobre a burguesia industrial. De fato, a
participação da industria de transformação no PIB era em 2004 de quase 18% e declinou em 2015 para 9%. Tal como no poema de Drummond, "burguesia
industrial já não há". E agora José?
Não é a força da burguesia mas precisamente seu raquitismo industrial a origem do protagonismo da FIESP na Avenida Paulista nas
manifestações de massa contra um governo acuado moralmente e decidido a
recompor o pacto de classe sem ativismo sindical e popular. Os economistas
keynesianos estavam roucos de tanto gritar desde a UNICAMP por "outra
política econômica" centrada no "fortalecimento do emprego e renda", mas sofriam a mesma solidão do planalto: quais forças
sociais os apoiavam? A falta de realismo apareceu na tentativa tao desesperada quanto ingenua do "compromisso pelo desenvolvimento" no qual a CUT, Força Sindical, UGT, CTB, NCST e CSB pelos trabalhadores e a CNI, Anfavea, Abimaq, Abit entre outras entidades patronais defendiam o "melhor dos mundos possíveis" onde - alimentados por imensa ilusão de classe - supunham garantir o desenvolvimento do país. Era beco sem saída, a vida comprovou. Não é fácil tentar pacto com a lumpemburguesia.
O caminho de Guermantes - Proust |
Um golpe de classe?
A burguesia brasileira - sempre dirigida pelo capital financeiro - não
vacilou diante da oportunidade. Uma vez instalado o governo Temer colocou
Henrique Meirelles e Ilan Goldfajn, dois falcões da rapina financeira, no
comando dos postos mais importantes da republica. Com velocidade invejável, os
dois trataram de convencer a opinião pública que o rombo das contas públicas
era muito pior do que mentiam os petistas. Na mesma escala em que incluíam no
cálculo todo tipo de dívidas com o claro objetivo de inflacionar a conta final,
estavam conscientes que a profundidade do ajuste seria proporcional ao volume do déficit. A mágica cifra de 170 bilhões de reais recompunha parcialmente a
necessidade de seguir financiando o rombo na exata medida em que alimentava
ainda mais o rentismo e, de quebra, permitia ligeira margem de manobra para o
governo gastar por conta alguns bilhões para as necessidades da "base
aliada" num ano de eleições municipais.
Os dias atuais revelam, portanto, o crescimento do déficit e a austeridade
caminhando juntas. Déficits para financiar frações do capital e austeridade
sobre o povo. A ideologia do sacrifício, tal como no cristianismo dominante,
acompanha a ideologia da austeridade como se após este período de ajuste - duro, porém necessário - todos seriamos agraciados com uma política de renda e emprego novamente. No entanto, as classes dominantes não escondem o jogo e o governo
anuncia que o vale de lágrimas não será passageiro: nada de frouxidão ou
excessos nos próximos 20 anos!
Keynes na periferia
Com a LRF o liberalismo de direita julgou que tinha assegurado um
valioso instrumento contra os governantes, especialmente importante contra o
"populismo", considerado inclinação natural dos latino-americanos a
irresponsabilidade nos assuntos de Estado. No entanto, o sono tranquilho durou
pouco porque as exigências da vida são mais fortes.
Em 2007/2008, a crise abalou os países centrais, com epicentro nos Estados Unidos e exigiu que o Estado - sim, aquele mesmo ogro
filantrópico da consagrada expressão de Octavio Paz - abandonasse
a antiga ladainha da "não intervenção na economia" e aos olhos atônitos
do discípulo liberal concedesse aparente razão ao keynesiano intervencionista.
Nos Estados Unidos os déficits são permanentes ainda que em 2015 tenha sido o mais baixo em 8 anos, segundo dados do
Departamento do Tesouro. A cifra tocou os 439 bilhões de dólares, quantia 9%
inferior a 2014. As fontes indicam que é o mais baixo desde
2007, quando a crise eclodiu com força nos países centrais. Ninguém com duas moléculas de realismo defendeu nos Estados Unidos um "orçamento equilibrado" e o fim do "déficit" para arrumar a economia. Lá, a teoria é outra. Existe, obviamente a ideologia do combate aos
déficits mas foi esclarecedor observar como Bush, um republicano avesso aos
subsídios keynesianos, tirou o cheque e cobriu rombos bilionários dos grandes
monopólios em 2007 e 2008 quando a General Motors, os bancos e as seguradores
foram a bancarrota após a orgia da liberalização... É grande a diferença entre a burguesia dos países centrais e a lumpemburguesia dos países latino-americanos!
Num breve texto de 1925 (Am I a liberal?), Keynes declarou a impossibilidade
de assumir o Labour Party na Inglaterra porque este representava uma classe
antagônica à sua origem social. Esperto, na mesma medida em que evitou o
trabalhismo britânico, Keynes simulou distancia do conservadorismo e
adiantou-se na defesa do que chamou "Justiça e o bom senso". Neste
contexto, alegou que "... the class war will find me on the side of the
educated bourgeoisie" (a luta de classes me encontrará sempre ao lado da
burguesia educada), bordão abre-alas para certo ativismo keynesiano de corte
progressista.
Agora, os keynesianos - Luiz Gonzaga Belluzzo talvez seja o mais visível deles - se dizem "heterodoxos" e de certa
maneira a auto-definição serve como caminho fácil para ocultar - por
conveniência ou ignorância - as raízes ortodoxas de seu mestre mais famoso. Tal
comportamento evita o tema da conversão, tao decisivo na fé quanto na ciência.
Enfim, Keynes nem sempre foi um keynesiano, tal como o reconhecemos agora. Ao
keynesianismo brasileiro lhe falta dentes para morder e, de fato, eles
assumiram há tempos a ideia ortodoxa segundo a qual os "fundamentos da
economia" devem ser sólidos e não convém brincar com política fiscal
(déficits fiscais). Por esta razão toleraram durante uma década a LRF pois,
apesar dela, conseguiam vender suas ilusões por meio de governos petistas com
reduzidos programas sociais e a feliz suposição de uma "nova matriz
econômica". O pacto de classe funcionou e os programas sociais permitiram aos "heterodoxos" fazer de conta que os custos do processo não dependiam da superexploração dos trabalhadores sem a qual nada funciona.
Durante todos estes anos, os keynesianos silenciaram sobre a guerra de classes, ao contrário de seu mestre mais ilustre. O famoso tripé - política monetária austera, cambio flutuante e taxa de juros elevada - considerada expressão da racionalidade científica representa, na verdade, os interesses das distintas frações de classe racionalizadas pelo economista. A ideologia dos economistas não raro é produto de deficiências teóricas graves mas é decisivo entender o limite do keynesianismo nacional também como manifestação da ausente base material, ou seja, a inexistência de uma burguesia industrial ascendente. Temos exatamente o oposto! Aquela tirada de Keynes segundo a qual "a luta de classes me encontrará sempre ao lado da burguesia educada" é até simpática em termos literários mas rigorosamente falsa no solo histórico latino-americano. Aqui, uma burguesia educada - que, de fato, tampouco existiu nos países centrais! - seria um luxo não fosse apenas um desejo irrealizável do bom mocismo político brasileiro e seu corolário, a colaboração de classes em prejuízo dos trabalhadores. André Singer, ex-porta voz de Lula, manifestou como ninguém a "descoberta" nas vésperas da votação contra a presidente: segundo o professor da USP era muito significativo que a luta de classes tivesse voltado à cena "trazida pela direita e pelo capital". Arrematou atônito: "Isso é surpreendente. Por que essa ofensiva diante de um projeto, de um governo que o tempo todo tentou conciliar, desde 2003 até agora, e jamais apostou na ruptura e no enfrentamento?"
Durante todos estes anos, os keynesianos silenciaram sobre a guerra de classes, ao contrário de seu mestre mais ilustre. O famoso tripé - política monetária austera, cambio flutuante e taxa de juros elevada - considerada expressão da racionalidade científica representa, na verdade, os interesses das distintas frações de classe racionalizadas pelo economista. A ideologia dos economistas não raro é produto de deficiências teóricas graves mas é decisivo entender o limite do keynesianismo nacional também como manifestação da ausente base material, ou seja, a inexistência de uma burguesia industrial ascendente. Temos exatamente o oposto! Aquela tirada de Keynes segundo a qual "a luta de classes me encontrará sempre ao lado da burguesia educada" é até simpática em termos literários mas rigorosamente falsa no solo histórico latino-americano. Aqui, uma burguesia educada - que, de fato, tampouco existiu nos países centrais! - seria um luxo não fosse apenas um desejo irrealizável do bom mocismo político brasileiro e seu corolário, a colaboração de classes em prejuízo dos trabalhadores. André Singer, ex-porta voz de Lula, manifestou como ninguém a "descoberta" nas vésperas da votação contra a presidente: segundo o professor da USP era muito significativo que a luta de classes tivesse voltado à cena "trazida pela direita e pelo capital". Arrematou atônito: "Isso é surpreendente. Por que essa ofensiva diante de um projeto, de um governo que o tempo todo tentou conciliar, desde 2003 até agora, e jamais apostou na ruptura e no enfrentamento?"
Nas condições do capitalismo dependente latino-americano, a crise evidenciou a margem de manobra reduzida para os pactos róseos que a maior parte do sindicalismo e dos economistas heterodoxos defenderam. A realidade atropelou todas as ilusões. Não sabemos por quanto tempo estas mesmas ilusões podem ainda comandar as esperanças ingenuas dos homens. Não oculto certo otimismo neste difícil momento pois, diante da ofensiva do capital, os trabalhadores podem entender que nada devem esperar da lumpemburguesia brasileira e, em consequência, nada tem a perder. Exceto, é claro, aqueles velhos grilhões que os mantém atados ao sistema que os explora e oprime.
PS:
agradeço a Mauricio Mulinari os dados da tabela e também as permanentes
conversas que temos mantido nos últimos anos.