As forças armadas e o governo
Bolsonaro
“A sedução
da ditadura é um dos malefícios contra o qual nos devemos precaver, opondo-lhe
a clareza do pensar crítico, sob a forma de interpretação logica do curso
histórico. Tal sedução apresenta graus variáveis de em suas manifestações. Vai
desde os casos mais primários, expressos em julgamentos obtusos como estes: “Só
matando esses canalhas é que este país endireita”, “É preciso um pulso de ferro
para botar isto nos eixos” e infinitos outros do mesmo jaez, até as insinuações
mais elaboradas, que se dão conscientemente em forma de doutrinas totalitárias,
passando pelas modalidades intermediárias da prédica jornalística ou
parlamentar de estados de exceção, como recurso extremo para a revisão moral da
máquina administrativa e expurgo dos elementos maculados”
Álvaro
Vieira Pinto, Consciência
e realidade nacional, 1960
O apelo ao caráter institucional
das forças armadas ecoou com ímpeto renovado na semana passada; sua essência
liberal-burguesa é tão indiscutível quanto impotente. Na América Latina,
somente a amnésia histórica, a completa ignorância ou a cínica cumplicidade com
a ordem dominante poderiam afirmar ou defender a institucionalidade das forças
armadas. Afinal, em nosso continente, as ditaduras, o terrorismo de Estado, o
intervencionismo dentro e fora do país foram e seguem sendo precisamente
executados pelas forças armadas e não, necessariamente, sob a proteção das
constituições. Portanto, forças armadas neutras, institucionais ou
despolitizadas não passam de ilusão perigosa e fatal para as classes populares.
No contexto latino-americano, o brado liberal pela institucionalização das
forças armadas revela também enorme ignorância sobre a dominação imperialista, o
meticuloso acompanhamento realizado pelo Instituto de Cooperação e Segurança do
Hemisfério Ocidental (Western Hemisphere Institute for Security Cooperation)
e, em alguns casos, o controle direto que as forças armadas da região sofrem desde
Washington.
A raiz da troca de ministros da
área militar operada por Bolsonaro é considerada por muitos como “crise
militar”. Ciro Gomes, por exemplo, julgou o episódio como um sinal de que “os
militares estão se desencantando com as loucuras que Bolsonaro tem praticado no
Brasil” e, ademais, seria uma indicação de “que eles querem retornar o melhor
respeito que sempre deveriam ter merecido se não fora a aventura, o equívoco,
de terem hoje quase 4 mil militares da ativa dentro do governo”. Para concluir,
afirmou que a troca de vários comandantes com uma canetada só, enviava para “dentro
da tropa... uma mensagem inequívoca de que eles não aceitam - e eles
representam a liderança formal daqueles que estão na ativa - o apelo golpista
dos setores bolsonaristas que querem envolver as forças armadas na politicagem.”
O postulado que nega o
envolvimento “das forças armadas na politicagem” é tão simpático quanto
ingênuo. Afinal, 11 mil militares – da ativa e reserva – em postos de governo
(nos três poderes), assinalam até mesmo para o mais desavisado acadêmico algo que
parece faltar ao candidato presidencial do PDT: realismo elementar. A magnitude
do fenômeno (11 mil militares segundo informação do TCU, outras fontes indicam
6.000), aliado ao protagonismo político das forças armadas nos últimos anos,
não nos subsidiam para afirmar que estamos diante de uma “aventura” da cúpula
militar, mas de algo mais estendido e profundo que o envolvimento na
“politicagem” nacional.
Lula manteve sepulcral silêncio.
Nesse caso, de fato, não é necessário declaração alguma para avaliar o que ele
pensa sobre a situação atual, afinal o ex-presidente foi durante 8 anos o
comandante em chefe das forças armadas. Ninguém poderá livrá-lo da
responsabilidade de não ter durante sua longa presidência (e outros 6 de Dilma),
sequer um esboço de uma nova doutrina militar para o Brasil. As declarações de
Lula sobre os militares se resumem a temas relativos ao orçamento das forças
armadas e ao respeito que ele manteve ao não interferir na sua dinâmica
interna. É preciso dizer mais? Ambos – Lula e Dilma – são responsáveis diretos
pela impunidade que protegeu os crimes de militares durante 21 anos de
ditadura. Nem sequer tocou no nervo da questão a Comissão da Verdade constituída
por Dilma, que, sabidamente, sofreu na carne a prisão e a tortura. Mas também
não podem negar a responsabilidade pela atual hegemonia no interior da caserna.
Na verdade, Lula e Ciro apenas expressam
a visão corrente entre os políticos brasileiros. Expressam também as ilusões inerentes
à esquerda liberal sobre a natureza do Estado e a função das forças armadas. O
primeiro acumula responsabilidade direta sobre a situação atual dos militares,
afinal, todos os generais que brilham no governo Bolsonaro foram promovidos e
tiveram posições de mando em governos petistas. Não há notícia – aberta ou
reservada – de um único documento ou iniciativa presidencial destinada a
enfrentar o decisivo tema da formação de nossos militares e o objetivo
estratégico de uma doutrina militar em tempos de democracia burguesa. Nenhuma
linha! Nenhuma ação! Portanto, a continuidade da formação militar e a doutrina
que a informa durante a ditadura e no período da democracia liberal burguesa é
completa!
Não se trata de um descuido. Tal
ausência é consequência direta da renúncia do petismo em lutar pelo poder,
restringindo-se, miseravelmente, a manter seus governos. De fato, os governos
petistas não produziram qualquer mudança nas estruturas do Estado brasileiro em
favor das classes subalternas; ao contrário, produziram mudanças estruturais
que fortaleceram a classe dominante. Portanto, a ausência de uma única
iniciativa destinada a mudar a formação dos militares brasileiros e o esboço de
uma nova doutrina militar não é um descuido, mas, precisamente
consequência necessária da concepção liberal de política que defendem.
As ilusões liberais hoje
A crise da república burguesa é
visível; no entanto, os políticos vulgares semeiam a ilusão de que a eleição de
um novo presidente com algum compromisso popular e respeitoso da liturgia do
cargo em 2022, poderia colocar as coisas no eixo. É grave engano, mesmo quando bem
intencionado! A crise da república burguesa é produto do avanço do capitalismo
dependente rentístico que não visualiza saída fácil no curto prazo. As dores do
parto inerentes ao surgimento de um novo regime político, em consequência,
serão sentidas durante um tempo considerável entre nós. Não devemos, portanto,
excluir qualquer movimento das forças armadas do quadro geral da crise e da
transformação do regime político agora em curso.
A esquerda liberal ignora a crise do sistema político; considera a eleição de Bolsonaro um ponto fora da curva e jamais o próprio movimento da curva! Ora, o enorme protesto popular de junho de 2013, a virada recessiva imposta por Dilma em janeiro de 2015, sua destituição em agosto de 2016 e a eleição do protofascista em 2018 são considerados acidentes de percurso, mera tentativa de forças aleatórias ou contingentes de subverter a paz da república por fora de seu dinamismo interno. É claro que ocorre precisamente o oposto: nenhum desses eventos podem ser devidamente analisados e compreendidos fora da crise da república burguesa e, no limite, da incompatibilidade entre o sistema político e a dinâmica da acumulação de capital decorrente do capitalismo dependente rentístico. Todos os eventos mais marcantes e muitos outros de “menor” importância, representam precisamente a crise em movimento. Qual crise? A crise da república burguesa apodrecida até sua medula.
Há forças concretas na sociedade
brasileira que não mais acreditam na capacidade de auto regeneração do
sistema político – parlamento, tribunais, executivo, imprensa, governos
estaduais, etc. – razão pela qual conspiram e bradam abertamente pela volta da
ditadura ou de um estado policial de perfil e conteúdo ainda indefinido. No
turbilhão da crise e diante da cumplicidade da esquerda liberal com a podridão
do regime político, amplos setores sociais – especialmente marcante entre os
trabalhadores – apoiam o projeto do protofascista que ocupa a presidência pois
ele ainda simula bastante bem que permanece em “luta contra o sistema”.
A podridão do sistema político
possui expressão cada dia mais clara. Em primeiro lugar o repúdio à política
eleitoral que se expressa na quantidade de votos brancos, nulos e no abstencionismo.
Em segundo, o efeito da crise cíclica mundial que reduz a capacidade do Estado
na periferia capitalista em atender as crescentes demandas populares em defesa
da vida e do trabalho. Em terceiro, a emergência da ultra direita com
capacidade de interferir no processo eleitoral e ambição de construir um
movimento de massas. Finalmente, o desgaste da esquerda liberal em escala
continental com notória incapacidade de oferecer uma alternativa real de poder,
limitando-se, tão somente, ao esforço cada dia mais precário de garantir seus
governos.
As armas da esquerda liberal diante
da crise da república burguesa restringem-se, na prática, à filantropia e à
defesa abstrata da democracia. A primeira – a filantropia – é filha de sua luta
por “justiça social” nos marcos do sistema capitalista. A segunda – a defesa
abstrata da democracia – inscreve-se em sua filiação à democracia como um valor
universal. Portanto, os “erros” ou “vacilações” da esquerda liberal ou suas
ilusões cada dia mais impotentes diante de fatos elementares da luta política
no país, são produto de escolhas estratégicas realizadas nas últimas décadas.
Uma esquerda liberal não é uma esquerda socialista ainda que aqui e acolá
bradem pelo socialismo como “modelo ideal”. A bandeira do socialismo e da revolução
está órfã!
A defesa abstrata da democracia
consagra o atual sistema político e antagoniza a esquerda liberal com setores
importantes das classes subalternas que sofrem com a crescente pobreza, miséria
e violência do sistema em crise. A defesa e implementação de programas sociais
foram também adotadas pela direita – Michel Temer e Bolsonaro seguem pagando o
bolsa família – razão pela qual a filantropia praticada até ontem como prática
da justiça social possível na periferia do sistema, também outorga “rosto
humano” à direita.
A esquerda e os militares
Na verdade, há na atualidade, um
abismo entre a esquerda e os militares. É um abismo construído ao longo de
várias décadas. A situação expressa em larga medida a ingenuidade da esquerda
liberal e sua incapacidade crônica de tocar nos temas relativos ao poder, os
temas inerentes à revolução brasileira. Ora, desde que a “crise” militar
emergiu com a troca de comando nas três armas, promovida pelo protofascista, é
fácil constatar que, no interior da esquerda, tanto a “análise” quanto a
“informação” considerada, decorrem de maneira geral da imprensa burguesa – CNN
e Globonews – e não de protagonistas internos em conflito no interior das
forças armadas. Portanto, é necessário dizer que a esquerda na atualidade
ignora por completo o que de fato ocorre no interior das forças armadas. A existência de uma “ala golpista” e outra
“ala institucional”, longe de constituírem forças reais em conflito no seio das
forças armadas, representa antes mera ideologia que revela a incapacidade da
esquerda diante de um fenômeno da mais alta importância na crise brasileira sob
hegemonia da classe dominante e do governo ultraliberal.
Nem sempre foi assim, é
necessário lembrar. No pré-64, a esquerda tinha considerável influência nas
três armas, razão pela qual milhares de militares foram presos, torturados, exilados,
mortos ou colocados na reserva durante a ditadura. O regime cívico-militar de
1964 logrou cortar essa conexão pela raiz. No entanto, a partir de 1985, com o
fim da ditadura – lá se vão quase 30 anos! – a verdade é que a esquerda devota
das disputas eleitorais sem projeto de poder, jamais deu a devida atenção aos
militares. É fácil perceber que o “tema militar” permaneceu cativo dos
acadêmicos com as limitações típicas da profissão. Mas os acadêmicos não fazem revolução
e a maioria sequer pretende atuar como intelectual público. Há, em
consequência, farta documentão disponível e muitas hipóteses para observação,
mas não articulação real dentro das forças armadas.
A fé na força da democracia
permaneceu sólida no debate público até agosto de 2016, quando a consciência
ingênua representada pelo petismo despertou de sua letargia com a queda de
Dilma. Era tarde, sabemos agora. No entanto, a destituição sem luta de Dilma
não abalou as convicções liberais da esquerda; ao contrário, diante da mudança radical
da conjuntura, a esquerda liberal aferrou-se ainda mais à “defesa da
democracia” centrando sua crítica no caráter golpista da “oposição de direita”
sem sequer dar uma olhadinha para os movimentos no interior da caserna. Os
militares somente “emergiram” na cena política por um tweet do General
Vilas Boas às vésperas de uma decisão do STF sobre os processos contra Lula em
abril de 2018. Não é patético? No entanto, desde o primeiro dia do governo do
protofascista, a “presença” militar era intensa e deveria ter sido motivo para
uma reflexão sobre o fenômeno. A esquerda liberal permanece nesse – como em
outros tantos temas – interditada pela própria responsabilidade na crise atual,
razão pela qual mantém silêncio eloquente nas questões decisivas relativas à
luta pelo poder.
A despeito da ignorância e
cumplicidade da esquerda liberal, a hegemonia atual das forças armadas é clara.
Alinhadas com a política imperialista dos Estados Unidos, seguem alimentando o
anti-comunismo; mantêm-se alerta sobre o inimigo interno derivado da
doutrina de segurança nacional e professam um nacionalismo de direita e
cosmético que reforça o poder tanto dos Estados Unidos quanto das classes
dominantes no país.
Em primeiro lugar, a formação e a
doutrina militar dominantes no país são diretamente informadas em função dos interesses
nacionais dos Estados Unidos. Em consequência, os acordos de cooperação
bilaterais e a formação de quadros não se afastaram jamais dessa linha, após
1985. O fenômeno era bastante claro antes mesmo da existência de Bolsonaro.
Chamei a atenção para o fato ainda em outubro de 2017 ao analisar o
discurso de um até então desconhecido general chamado Hamilton Mourão.
(https://www.blogger.com/blog/post/edit/preview/5379235758065943839/8811799758467681714).
Ora, Mourão expressou claramente
o pensamento na cúpula militar e a doutrina que informa as forças armadas. Num
“mundo em convulsão”, diz o general, não resta ao Brasil senão filiação ao
“bloco americano”. A rigor, não existe um “bloco americano”, mas a tradicional dominação
imperialista dos Estados Unidos no mundo, especialmente forte na América
Latina. A doutrina Monroe de 1824 é concepção ideológica a que os militares
brasileiros estão aferrados; é a doutrina vigente no âmago das forças armadas
nos últimos 60 anos!! É claro que a esquerda liberal não pode acusar essa
característica decisiva da formação militar porque ela própria tampouco se
filia a uma orientação anti-imperialista.
Registre-se, tomado como mera
agitação ideológica, o brado da direita na última disputa presidencial
afirmando que o Brasil jamais se “transformaria numa Venezuela” oculta, de
fato, profundo sentido histórico. Monroe e Bolivar lutam na cena histórica como
antagonistas há quase dois séculos!! Para o primeiro, a “América para os
americanos” enquanto, para o segundo, a necessária afirmação da “Pátria
Grande”. Vasconcelos (que não é um marxista) em 1934 escreveu Bolivarismo e
monroísmo, um livro aqui desconhecido, que elucida bem os dilemas da
América Latina diante da política pan-americanista praticada pelo imperialismo
estadunidense. Os militares brasileiros – formados na doutrina emanada dos
Estados Unidos – não vacilam nas questões centrais e seguem os ventos do norte.
Não foi por acaso, portanto, que nas
eleições de 2018 a direita denunciava a “transformação do Brasil numa
Venezuela”. A propaganda ideológica mais do que exorcizar o dilema histórico
entre monroismo e bolivarismo, ataca algo mais imediato e visível: o fantasma
de Bolívar na versão bolivariana já corria a América Latina desde a aparição de
Hugo Chávez na Venezuela no 4 de fevereiro de 1992 e, com mais força, quando o
tenente coronel tomou posse da presidência do país vizinho em 2 de fevereiro de
1999. Mourão em pessoa observou a ameaça bolivariana em seus inícios na
condição de adido militar do Brasil em Caracas entre 2002 e 2004, nomeado no
primeiro governo Lula.
A constituição bolivariana do Brasil
No entanto, mais que um
bolivarianismo destinado a impedir a diluição do Brasil numa hipotética e
caricata “Pátria Grande!”, o bordão anti-bolivariano pretende esterilizar seu
conteúdo anti-imperialista e anti-capitalista, além de ter como alvo a esterilização
de algo valioso em qualquer doutrina militar: a força decisiva do nacionalismo
revolucionário revitalizado na pátria de Bolivar.
Ademais, como tenho recordado com
insistência há anos, a concepção bolivariana está inscrita em nossa
constituição! Ora, basta ler os princípios fundamentais da Constituição de
1988, em seu parágrafo único para entender que “A república Federativa do
Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da
América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
O alinhamento automático praticado por Bolsonaro ou mesmo a política de
Lula/Dilma em boicotar de maneira consciente as iniciativas materiais
destinadas a dar corpo ao princípio constitucional – Telesur, Banco do Sur, Empresas
GraNacionais, etc – revelam de maneira clara o quanto a esquerda liberal abriu
caminho para o avanço da direita e a exata medida em que ambas, cada qual à sua
maneira, “violam” a constituição.
É claro que o anti-nacionalismo na
esquerda liberal apareceu por outros caminhos, não tão grotescos quando aquele
que a direita agita, mas igualmente eficazes; no Brasil, a crítica e rechaço do
nacionalismo como força revolucionária emergiram a partir da crítica
sociológica uspiana ao “populismo”. Era artigo em oferta desde 1978 quando Francisco
Weffort – que, sem cerimônia alguma, saltou diretamente da secretaria geral do
PT para o Ministério da Cultura de FHC – lançou uma coletânea de ensaios
miseráveis de coloração “marxista” destinados a exorcizar o nacionalismo como
força política indispensável na América Latina. A hegemonia intelectual no
interior do petismo foi um meio eficaz de esterilizar na esquerda liberal o
nacionalismo como força, na toada do desencontro histórico entre marxismo e
nacionalismo. Ao longo do tempo a esquerda liberal sob condução do PT foi cada
dia mais hostil ao nacionalismo.
Quando Lula chega ao governo em
2002 o bolivarianismo já está em plena ebulição no continente e, portanto, já
era assunto de atenção minuciosa nos Estados Unidos. Ademais, após o fracasso
do golpe contra Hugo Chávez em abril daquele ano, o imperialismo entendeu que
nascia numa área estratégica para afirmação de sua hegemonia mundial, um adversário
novo e com imenso poder.
Ninguém menos do que o general
James T. Hill, chefe do Comando Sul dos Estados Unidos, sintetizou em 24 de
março de 2004, qual era a natureza da ameaça concreta contra os interesses da
potência imperialista na América Latina: o populismo radical. “O
populismo – disse o general – não é uma ameaça. Não obstante, a ameaça emerge
quando o líder se radicaliza...”. Ademais, certeiro no alvo, o general Hill
afirmou nessa reunião do congresso nos EUA que “alguns líderes da região estão se
aproveitando das profundas frustrações derivadas do fracasso das reformas
democráticas em fazer chegar os bens e serviços prometidos. Utilizando estas
frustrações, que se combinam com as frustrações causadas pela desigualdade
econômica e social, estes líderes são ao mesmo tempo capazes de reforçar suas
posições radicais inflamando o sentimento anti-estadunidense”.
A ofensiva bolivariana não se
limitaria a Venezuela e durante uma década inspirou de maneira decisiva a caserna e os partidos em vários países latino-americanos. Em 2003, por exemplo, o tenente-coronel Lucio Gutierrez foi eleito presidente do Equador a partir de grandes mobilizações das massas, especialmente indígenas, e a quebra da hierarquia militar; da mesma forma, em 2000 o tenente-coronel Ollanta Humala se levantaria em armas no sul do Peru contra Alberto Fujimori, iniciando trajetória que o levaria a presidência peruana em junho de 2011, após amargar exilio. A falta de talento político de Lucio Gutierrez e a adoção de uma linha conciliatória de Ollanta não pode ocultar o fato de que a influência de Hugo Chávez era tão decisiva quanto indesejável para o imperialismo. Em setembro
de 2009, o presidente equatoriano Rafael Correa não renovou o acordo militar
com os Estados Unidos e a base de Manta voltou ao controle nacional revelando
que a “ameaça populista” tocava também nas questões de ordem militar de
interesse estratégico para a potência imperialista. A resposta estadunidense
foi, como se sabe, óbvia: assinou novo acordo militar com a Colômbia em 3 de
novembro – um mês após perder a base de Manta - aumentando o contingente militar
no país vizinho dominado há décadas por um regime de terrorismo de estado.
O nacionalismo, portanto, não
pode ser ignorado num sistema de estados nacionais. O mundo capitalista
funciona sob o impulso da lei do valor em escala mundial, porém, num sistema de
estados-nação, o capital opera, necessariamente, violando as fronteiras estatais
em favor dos capitais com maior composição orgânica. No entanto, na mesma
medida em que enfrenta o estado e produz a abertura de mercados, os capitais também
lançam mão do protecionismo para o mesmo fim: alcançar o monopólio e vencer a
concorrência capitalista.
No Brasil, especialmente após a
emergência do capitalismo dependente rentístico, o nacionalismo assumiu
a forma cosmética, meramente alegórica nas forças armadas. É o que podemos
constatar com clareza no governo de Bolsonaro. Não se trata de um nacionalismo
ao estilo de Velasco Alvarado no Peru ou Omar Torrijos no Panamá (ambos
militares). O nacionalismo dos militares brasileiros que poderia ter evoluído
no sentido revolucionário foi exterminado com o golpe militar de 1964. O
“nacionalismo” dos militares pós 1964 jamais deixou de aprofundar a dependência
e o subdesenvolvimento e manteve estreita conexão com os interesses dos Estados
Unidos na América Latina.
A ditadura do grande capital
O Marechal Castelo Branco
anunciou logo no início de seu mandato a necessidade de substituir as
fronteiras físicas ou geográficas pelas “fronteiras ideológicas”, caminho pelo
qual deu por encerrada a “política externa independente” de Jânio Quadros e
João Goulart, na mesma medida em que abria as portas para a diplomacia da
“interdependência continental” cuja formulação era de responsabilidade do
general Golbery, um militar diplomado por Fort Benning, a terrível Escola das
Américas, onde tantos ditadores latino-americanos foram formados.
Marini indicou com precisão que a
ditadura pretendia “criar uma simbiose entre os interesses da grande indústria
e os sonhos hegemônicos da elite militar, que encontraria uma expressão ainda
mais evidente nos vínculos estabelecidos no nível da produção bélica.” (Subdesenvolvimento
e Revolução). Várias iniciativas avançaram nessa direção em aliança por
meio da Comissão Militar Mista Brasil-Estados Unidos e do Grupo Permanente de
Mobilização Industrial, que reunia as mais importantes empresas do país “com a
assessoria direta de membros das forças armadas”. A própria Confederação
Nacional da Industria era presidida por ninguém menos que o general Edmundo
Macedo Soares e Silva!
É, portanto, fácil estabelecer o
contraste entre o II PND de Ernesto Geisel (1974-1979), caracterizado por forte
intervenção estatal em associação com o capital estrangeiro, com o programa
econômico ultraliberal de Bolsonaro apoiado com entusiasmo por Mourão. Na
década de setenta, o “nacionalismo” dos militares flertava com ações que, em
aparência, descartavam o liberalismo como doutrina, razão pela qual não poucos
analistas caracterizam a ditadura como nacionalista e inclusive
desenvolvimentista, a despeito da crescente internacionalização do ciclo do
capital no país, da dívida externa e da superexploração da força de trabalho. De
igual modo, a formulação da política externa daquele período sob o bordão do
“pragmatismo responsável” indicava aliança estratégica com os Estados Unidos, com
pequena margem de manobra que pode ser vista no acordo nuclear Brasil-Alemanha.
No entanto, o resultado da
estratégia desenvolvimentista dos militares – e da burguesia brasileira –
fortaleceu todas as frações do capital nacional e estrangeiro. A primeira
manifestação liberal da burguesia na sua ofensiva contra o estado ocorreu
precisamente em 1977 quando os empresários publicaram o manifesto contra o “gigantismo
estatal” e se declararam em favor da democracia. Ora, de olho em Washington, a
burguesia entendeu tanto a crise do milagre econômico já evidente em 1975,
quanto a nova política externa do imperialismo impulsionada por Carter (“a
defesa dos direitos humanos”) naquele ano. Os militares resistiram, mas
operaram sob estrito controle a “transição lenta, gradual e segura” que garantia
completa impunidade para os crimes cometidos durante a ditadura. As condições
nacionais são determinantes para entender as razões pelas quais muitos
desenvolvimentistas guardavam certo orgulho da obra econômica da ditadura
embora fizessem restrições humanitárias à “sistemática violação dos direitos
humanos”. A conveniência liberal desconectava o resultado econômico – intensa
acumulação de capital – com as enormes restrições da liberdade política – indispensáveis
para manter a superexploração da força de trabalho – que levou a esquerda para
o exílio, cadeia ou morte nos porões da ditadura, além é claro, do controle
sobre os sindicatos.
O contraste com a Argentina é
sempre útil para perceber o quanto as condições nacionais são decisivas. É
comum ouvir de economistas e sociólogos progressistas que o “modelo econômico
dos militares” não produziu na Argentina os mesmos resultados verificados no
Brasil. A “regressão econômica” de Martinez de Hoz contrastava, segundo a visão
desenvolvimentista, com os arrojados planos industriais impulsionados por
Delfim Neto durante a ditadura. Aqui, se evidencia o quanto a esquerda liberal
se nutre de certo “orgulho burguês” emanado do desenvolvimento capitalista
produzido pela ditadura (1964-1985) embora condene a repressão inerente a seu
regime.
A digressão anterior é necessária
para evitar um vício recorrente, ou seja, tratar os militares, a evolução de
sua doutrina, a hegemonia política no interior do alto comando ou na tropa,
fora da correlação de forças e do processo de acumulação de capital. Nesse
contexto, os militares expressam mudanças no sistema político, mas
não as produzem, não são sua causa original. É até constrangedor recordar
aqui essas verdades elementares para chegar a algumas conclusões diante dos
episódios recentes.
A hegemonia ultra liberal se
consolidou nas forças armadas a par e passo com as transformações ocorridas
após 1994 no desenvolvimento capitalista no Brasil. Portanto, constitui grave
erro supor que os militares foram responsáveis por levar o sistema político
para a direita. É claro que as decisões da cúpula militar estão baseadas no
fato de que possuem o monopólio da violência por parte do Estado e, em sentido
estrito, podem decidir a correlação de forças numa ou noutra direção segundo as
exigências da luta entre as classes. A burguesia decidiu a ruptura com o
governo de João Goulart e, em consequência, logrou o apoio das forças armadas. Relembre-se
o atinado estudo de René Armand Dreifuss (1964: a conquista do Estado)
para quem o golpe foi, antes de tudo, um golpe de classe, um golpe burguês!
Tal constatação não isenta a responsabilidade histórica das forças armadas e
menos ainda implica a absolvição de todos seus crimes, mas dirige a reflexão
para o caminho correto. A hegemonia social se impõe, finalmente, também nas
forças armadas. É uma dura lição histórica que parece esquecida na atualidade
quando nos deparamos com a necessidade de analisar o papel dos militares na
política brasileira.
Acaso, a notável expansão da
fronteira agrícola ainda em curso no Brasil – que confere a renda da terra e
aos latifundiários enorme poder econômico e político – seria possível sem o
papel ativo dos militares? Jamais! Basta recordar o protagonismo dos militares
na expansão da fronteira agrícola representado pela incorporação da Amazônia no
circuito do capital, manifesto na apologia da Transmazônica, orgulho do regime
militar. Não somente o capital agrário, mas também comercial, industrial e,
sobretudo bancário, tinham interesse imediato naquela estratégica iniciativa. A
posse da terra, com documentos, era fundamental para conseguir empréstimos
bancários e garantir, em caso de não pagamento, a propriedade como mercadoria sujeita
a compra e venda.
A subordinação do exército ao
poder civil não pode supor o congelamento da vida política no âmbito da
corporação. Exército e política sempre marcharam juntos em qualquer país da
América Latina!!! Portanto, a esquerda liberal não pode pretender a
neutralidade das forças armadas; menos ainda supor que elas devem se submeter à
Constituição como garantia da vida democrático-burguesa!
A força do presidencialismo
Nas condições concretas do país,
o presidencialismo é o único poder capaz de disciplinar as forças armadas. A
renúncia do poder presidencial pela esquerda liberal – nos marcos do finado sistema
petucano – em nome de um parlamentarismo corrupto e nocivo praticado pelo
“presidencialismo de coalizão”, é responsável direta pela situação atual. No
entanto, a história da América Latina – e do Brasil – ensina de maneira clara
que o presidencialismo somente se sustenta com apoio na mobilização das
massas de maneira permanente em direção a um objetivo estratégico de conquista
do poder político. A conquista do poder político jamais figurou no
horizonte do nacional-reformismo de João Goulart, razão pela qual aquele
notável movimento de massas sucumbiu diante da ofensiva da direita, consumada no
golpe de 64 e na ditadura que se seguiu. Na Venezuela, ao contrário, o golpe
cívico-militar de Hugo Chávez contra o governo constitucional de Carlos Andrés
Perez tinha como objetivo a conquista do poder político. Após seu fracasso, o
MBR-200 não retrocedeu; ao contrário, avançou no conceito da Revolução
Democrática Bolivariana rumo ao poder, trilhando um caminho repleto de
acidentes no interior de uma estratégia política que, finalmente, venceu com a
eleição de Hugo Chávez.
A esquerda liberal se nutre da sociologia da ordem produzida no ambiente universitário e, em consequência, apenas assinala miseravelmente as limitações reais ou imaginárias da ação do caudilho, sem observar a função notável da liderança oriunda do movimento revolucionário. “Nossa realidade vital é grandiosa e nossa realidade pensada é mendiga”, dizia Jorge Luis Borges em janeiro de 1926. No Brasil, ainda não superamos essa sentença.
A ausência de uma política
anti-imperialista nos partidos políticos da esquerda, em organizações sociais e
também na intelectualidade, somente reforça o curso livre para o nacionalismo
cosmético e funcional a Washington que ali se verifica. Nesse contexto, a
eleição de Bolsonaro representa antes que o início de novo ciclo
nacionalista, o resultado necessário da crise do sistema político
brasileiro e da fase rentística do desenvolvimento capitalista. A virada
ultraliberal que os militares assumem como horizonte político não ocorreu de
maneira súbita! Apenas apareceu de maneira súbita e na única linguagem
que a esquerda liberal pode entender: a interferência no processo eleitoral.
De fato, a presença de 11 mil
militares – dos quais 4 mil da ativa – ocupando funções de governo nos três
poderes da república burguesa, merece análise e atenção. Um conjunto de estudos
de extração acadêmica que apenas começam a ser divulgados indicam que essa
hegemonia foi lentamente construída no interior das forças armadas na última
década ou pouco antes. No entanto, não devemos afastar a análise de suas ações
descoladas da dominação burguesa nas condições da crise que sofremos. Assim
como as forças armadas apoiaram a ditadura do grande capital e dela se
beneficiaram dirigindo ou influenciando grandes projetos, igualmente atendem à
demanda atual submetendo-se e dirigindo a agenda ultraliberal conduzida pela
coesão burguesa sob a batuta de Paulo Guedes.
Portanto, a presença avassaladora
dos militares em funções de governo, longe de representar apenas uma política da
“boquinha” para complementação salarial numa típica operação de defesa coorporativa
diante dos baixos salários, indica que a nova hegemonia burguesa inerente ao
desenvolvimento capitalista rentístico foi também construída ao longo de muitos
anos no seu interior. A hipótese de Manuel Domingos Neto segundo a qual os
militares se caracterizam na atualidade por uma posição coorporativa e que a oficialidade
estaria orientada por uma “meritocracia de caserna” que tampouco o distinguiria
de uma carreira de juiz ou procurador não consegue explicar o fenômeno. O
estudioso alega também que os militares estão governados por uma “mentalidade
neocolonial”, que somente pode ser explicada na trama da dominação imperialista
estadunidense particularmente intensa no Brasil.
Afinal, após 1994, com a
afirmação da hegemonia da fração financeira na coesão burguesa que dirige o
país, o desenvolvimentismo foi batido historicamente, a despeito de pequenas
iniciativas que, por sua natureza, antes de negar o avanço de rentismo, marcam
precisamente sua força. O breve fortalecimento da indústria naval nos marcos da
política petroleira do governo Lula, por exemplo, é uma clara indicação dessa
debilidade tal como a lei da partilha que abriu a exploração do pré-sal aos
capitais estrangeiros por iniciativa da presidente Dilma. Nenhuma dessas
iniciativas poderia, portanto, criar uma “ala nacionalista” ou “legalista” no
comando militar. A propósito, é significativo que num assunto tão estratégico
como o controle nacional sobre o petróleo, os militares não se manifestaram
diante do entreguismo praticado no governo de Dilma.
Portanto, o
desinibido entreguismo de parte dos militares na atualidade e seu alinhamento
automático como peça do domínio imperialista no Brasil é decorrência direta do
entreguismo da burguesia brasileira e também um resultado da impotência dos
governos progressistas em superar os marcos estritos do subdesenvolvimento e da
dependência. Bolsonaro, nesse sentido, antes que precursor de uma nova
orientação para os militares é simples produto daquela concepção encubada no
interior das forças armadas durante longos anos sem que o “poder civil” tivesse
algo a dizer de maneira clara na mudança da doutrina militar que agora muitos
contemplam com surpresa e irritação. O caráter tosco de suas declarações e não
poucas vezes ofensivo para o espírito republicano que os políticos vulgares
cultivam com particular zelo, não pode ocultar a comunhão que mantém com o “espírito”
dominante na caserna nos pontos estratégicos da política, que executa com êxito
até agora, especialmente aqueles relativos ao avanço da agenda econômica e na
formação, ainda incipiente, de um movimento de massas de corte conservador ou
mesmo fascista.
No entanto,
a esquerda liberal permanece cativa das pesquisas eleitorais como se no cenário
elaborado pelo cretinismo parlamentar, a derrota eventual de Bolsonaro nas
eleições de 2022 fosse capaz de interromper o dinamismo da crise conduzida pela
burguesia. É até constrangedor observar que na análise dominante no
interior da esquerda liberal a hipótese de que “setores” da burguesia estariam
arrependidos de ter apoiado Bolsonaro contra Haddad nas últimas eleições,
figura como ciência certa e, em consequência, eles estariam dispostos à defesa
da democracia contra as aventuras golpistas do protofascista.
De fato, o
núcleo racional da análise da esquerda liberal assinala que a demissão dos
generais Edson Leal Pujol do Exército, Ilques Barbosa da Marinha e Antonio
Carlos Bermudez da Aeronáutica, mais Fernando Azevedo e Silva, ministro da
Defesa (com o secretário geral), o chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o
brigadeiro Raul Botelho é resultado da recusa dos demitidos em avançar na
aventura golpista e representa a preservação da autonomia castrense em relação
aos planos políticos do presidente.
As forças
armadas estariam, portanto, negando-se a cumprir um papel político e, no embalo
do bordão liberal, afirmando as forças armadas como instituição de Estado e não
de governo. O mundo dos progressistas não é belo?
Porém, nesse
caso, faltaria explicar por que os milhares de militares não desembarcaram do
governo, entregaram seus apartamentos funcionais, suas funções gratificadas e
rumaram para a caserna de maneira disciplinada... Afinal, por que romperam com
a hierarquia e permaneceram fieis ao governo dando as costas a seus
comandantes?
No terreno da
especulação, há bons indicativos para afirmar que a hegemonia entreguista no
interior das forças armadas aproveitou a oportunidade para disciplinar ainda
mais a tropa, revelando que a decisão de seguir até o fim e fundo com o
presidente não admite vacilação. Nesse caso, Bolsonaro antes de sofrer uma
perda e ver seu domínio desafiado, teria afirmado ainda mais sua autoridade
diante da lista de generais e promoções vindouras.
Finalmente, é
fácil observar que os líderes da oposição liberal se limitaram a afirmar que a
crise é grave porque a demissão de 4 ministros militares não tinha precedentes
na história da república burguesa. Ou seja, ao invés de uma efetiva análise, a
contribuição analítica da esquerda liberal repete apenas a manchete do jornalão
burguês.
A estação
final do progressismo
A destituição de Dilma é a face
nacional da impotência do progressismo latino-americano em superar as mazelas
próprias do subdesenvolvimento e da dependência. De fato, há muitos anos, as
forças progressistas sofrem reveses e se revelam incapazes de manter governos
na exata medida em que não possuem um projeto de poder. A destituição de Dilma
não representa um raio em céu azul. Antes do Brasil – onde tudo ocorreu no
pleno funcionamento das instituições democráticas – Hugo Chávez na Venezuela
(2002), Jean Bertrand Aristid no Haiti (2004), Manuel Zelaya em Honduras (2009)
e Fernando Lugo no Paraguai (2012) eram exemplos aqui considerados exóticos até
que a conveniência da esquerda liberal necessitou inscrever a destituição de
Dilma no rol dos “golpes”. Em todos esses eventos os militares jogaram um papel
relevante, impossível de ser ignorado.
É claro que a esquerda liberal
não tirou lição alguma de cada um desses episódios. Mas a solução de Hugo
Chávez não foi ignorada pela doutrina militar dos Estados Unidos e menos ainda passou
despercebida para os militares brasileiros. A despeito da origem e sentido do
bolivarianismo encabeçado por Hugo Chávez – de clara orientação anti-capitalista
e anti-imperialista – o Departamento de Estado captou a ameaça e reforçou
aspectos ignorados ou de impossível solução nas condições venezuelanas. Os
militares brasileiros também, sempre com a orientação dos EUA. No entanto, a
revisão crítica da política externa brasileira assinala claramente, como
observou com exatidão e alegria o ex chanceler mexicano Jorge G. Castañeda, como
Lula atuou na toada de uma “esquerda racional” enquanto Chávez tocava o tambor
de uma “esquerda irracional”. A razão pela qual Lula manteve distância objetiva
e calculada dos projetos estratégicos originados na Venezuela sob condução de
Hugo Chávez, era produto não somente de eventuais ilusões próprias da esquerda
liberal, mas, sobretudo, dessa determinação estrutural da orientação de Washington
incorporada pelos militares brasileiros.
Não resta dúvida de que a emergência
do bolivarianismo anti-imperialista e anti-capitalista alinhou ainda mais os
militares brasileiros com a política estabelecida pelos Estados Unidos e o
“bloco americano”. A política externa da Revolução Bolivariana praticou uma
política energética que foi tão importante quanto eficaz para conquistar
aliados e diminuir a força da política imperialista dos Estados Unidos e da
França no Caribe e na América Central. Ninguém poderá explicar as razões pelas
quais Zelaya, um fazendeiro eleito por partido conservador em Honduras em
janeiro de 2006, encabeça um movimento em direção a ALBA (Alternativa
Bolivariana das Américas) sem estabelecer essa conexão decisiva. O
bolivarianismo no Brasil foi apresentado como algo distante, ilusório quando
não caricato pela esquerda liberal. A propósito, basta conferir as dezenas de
declarações de Lula, apresentando-se como um conselheiro lúcido e ponderado ao
homem que emergiu como um raio diante da noite “neoliberal” que tanto afeta os
petistas...
A política “altiva e ativa” do
governo Lula navegou orientada pela política externa de Clinton e do principal
intelectual do governo democrata, Anthony Lake, o chamado “intervencionismo
humanitário”. De fato, como documentou Ricardo Seitenfus exaustivamente, desde
1994 – já sob a Doutrina Clinton – a ONU adota a Resolução 940 (com a oposição
do Brasil!) prevendo a criação de um contingente militar multinacional para
intervir no Haiti. Celso Amorim, na época, votou contra a intervenção. No
entanto, mais tarde, durante o governo de Lula, a pedido de Jacques Chirac e
ninguém menos que George W. Bush, o Brasil assume o comando da Minustah sob a
liderança do chanceler. Ainda segundo Seitenfus, “hesitantes no início, os
militares brasileiros foram convencidos de participar na medida em que todos os
equipamentos, os sistemas de comunicação e transporte e o material a ser
utilizados seriam nacionais. É a primeira vez em sua história que uma
importante força militar é enviada ao exterior nestas condições. Para os
estrategistas, a operação se transformou num desafio na preparação dos homens, na
capacidade de comunicação e de transporte bem como um teste de confiança na
indústria brasileira de armamentos.”.
Não era apenas uma boa
oportunidade para as forças armadas. Em 2008 o jornalão burguês Valor
publicava o entusiasmo da Coteminas e da OAS com as possibilidades abertas a
partir da intervenção no Haiti. A empresa do vice-presidente de Lula, José
Alencar, pretendia acesso preferencial para produzir têxtil destinado ao
mercado estadunidense no marco dos tratados de livre comércio vigentes no
Caribe, enquanto a OAS acabava de vencer uma licitação para a pavimentação de
uma rodovia. (Valor, 15/08/2008). No entanto, as promessas de grandes
negócios no Haiti jamais se confirmaram para a burguesia brasileira, tal como
confidenciou um diplomata brasileiro à Miguel Borba Sá (IRI/PUC-Rio): “... a
gente faz o trabalho sujo aqui e as nossas empresas nem entram, continuam sendo
as empresas norte-americanas, canadenses e americanas comandando tudo aqui” (Brasil
de Fato, 15/10/2019). Nada de novo no front, pois o manual
imperialista ensina como deve ser a associação entre multinacionais e
militares, tal como documento fartamente Amy e David Goodman (Corrupção à
americana) na ação de “reconstrução do Iraque” que destinou todos os
grandes projetos para empresas estadunidenses, excluindo sem cerimônia seus
sócios na invasão em nome da democracia e dos mercados.
Finalmente, é mais uma demonstração clara de que as possibilidades de um projeto subimperialista anunciado por Marini para uma fase específica da acumulação de capital sucumbiu para sempre no desenvolvimento capitalista no Brasil sob as novas condições da economia mundial.
O projeto burguês fracassou, mas
a experiência foi valiosa para a cúpula das forças armadas brasileiras. Em 2010
ninguém menos do que o próprio general Heleno resumiu o saldo: “como exercício
militar a Minustah é excelente. No entanto, como Operação de Paz, ela não tem
mais sentido”. Mais tarde, no governo corrupto e liberal de Michel Temer, seria
o Rio de Janeiro – sob comando do general Braga Neto – a experimentar a
intervenção militar em tempos de paz no interior do país. A crítica da esquerda
liberal à intervenção no Rio de Janeiro raramente foi observada como um
subproduto da diplomacia orientado pelo “Princípio da Não indiferença”
praticado pelos governos de Lula e Dilma e implementado por Marco Aurelio
Garcia e Celso Amorim. Uma vez mais o protagonismo dos militares era ignorado
pela esquerda liberal ocupada com a denúncia do “golpe” contra Dilma.
Ora, tanto o general Augusto Heleno quanto Santos Cruz são nomes diretamente ligados ao intervencionismo no Haiti decidido por Lula, Amorim e Marco Aurélio Garcia. O general Heleno foi o primeiro comandante das tropas e Santos Cruz assumiu em setembro de 2006 após o suicídio do general Urano Bacellar ocorrido em 7 de janeiro daquele ano... O giro à direita da diplomacia brasileira é indiscutível e deve ser explicado. A tirada literária de Chico Buarque – “o Brasil não fala fino com os Estados Unidos nem grosso com a Bolívia” – é boa pra conversa de boteco, mas totalmente falsa para entender a trama da subserviência da diplomacia da esquerda liberal – implementada por Amorim e Marco Aurelio Garcia – à política externa dos Estados Unidos. Não por acaso, em 2009 a imprensa liberal nos EUA considerava Amorim o “melhor ministro de relações exteriores do mundo” (the world’s best foreign minister), um contrapeso considerado importante contra a ameaça representada por Hugo Chávez. Ora, o conceito de “potência regional” que Washington sempre reservou para o Brasil encontrou no bolivarianismo sua negação completa pois o nacionalismo cubano e venezuelano, de raízes anti-imperialista e anti capitalista, esterilizava na raiz a ilusão da classe dominante brasileira e seus políticos vulgares. Por outro lado, as transformações do capitalismo no país anulariam para sempre as possibilidades da expansão das “multinacionais brasileiras” acomodadas na divisão internacional do trabalho nas fases que não disputam a liderança científica, tecnológica e produtiva de ponta dos países centrais.
Na verdade, ao incorporar o
“Princípio da Não Indiferença”, a política externa do PT renunciava o princípio
da autodeterminação dos povos, uma virada indispensável para assumir o
“novo humanismo militar” dos Estados Unidos elaborado no governo democrata de
Bill Clinton e, no caso haitiano, respeitado minuciosamente pelo republicano
George Bush. Ora, foram Chirac e Bush quem convocaram Lula para a tarefa suja
no Haiti. No Brasil, a esquerda liberal apresentou o intervencionismo
imperialista estadunidense e francês como virtude e – pasmem! – também como
expressão de um novo protagonismo do Brasil no mundo que poderia, como
recomenda a subserviência, abrir as portas para eventual assento permanente no
Conselho de Segurança da ONU. Mais miserável, ingênua e servil não poderia ser
essa diplomacia!
Cuba e Venezuela atuaram na
direção aposta. Cuba jamais deixou de prestar a ajuda humanitária que pratica
no mundo desde o início da Revolução com a presença dos médicos cubanos e
sempre fez defesa enfática do direito à autodeterminação. A Venezuela sob a
condução de Hugo Chávez também se opôs ao “intervencionismo humanitário”, mas
ofereceu por meio da PetroCaribe energia aos haitianos. Ambos, Cuba e
Venezuela, possuem política externa anti-imperialista, conhecem a ação
agressiva dos Estados Unidos há décadas e sabem o caráter nocivo da investida,
sobretudo entre os militares. No Brasil, na ausência de uma doutrina militar
própria, a alta cúpula militar ficou totalmente exposta à doutrina emanada dos
Estados Unidos! Portanto, é impossível entender a situação atual descolada
das mudanças ocorridas nas últimas duas décadas.
O nacionalismo de Bolsonaro – que
o levou a bater continência para a bandeira dos Estados Unidos – mais que
arroubo colonial, expressa claramente a concepção arraigada na alta
oficialidade e na formação dos militares brasileiros. Tal situação não
sanciona, obviamente, a existência de um “partido militar”. A degradação das
instituições nacionais na esteira da podridão da república burguesa conferiu,
por algum tempo, certa credibilidade às forças armadas diante de sucessivos
escândalos de corrupção de distintos governos. No entanto, nem mesmo as forças
armadas podem fugir da podridão burguesa cada dia mais visível aos olhos do
povo, ainda que negligenciada pela esquerda liberal. Ademais, o protagonismo de
milhares de militares em cargos do governo tende a dissipar a consciência
ingênua que supõe a imunidade do militar diante da corrupção.
Em todos os países
latino-americanos onde as forças armadas assumiram protagonismo tal como
verificamos agora no Brasil, a conexão entre capital e estado rendeu enorme
corrupção que terminaram também por arrastar as forças armadas para o centro da
crise da republica burguesa. Portanto, na exata medida em que é crescente na
caserna a mentalidade empresarial, não será surpresa quando os “escândalos”
emergiram na primeira página de um jornalão burguês. É mera questão de tempo e
tampouco será um assunto inédito, pois informação relativamente recente indica
que “... com dados fornecidos pelo STM (Superior Tribunal Militar) a pedido do
UOL mostra que, entre 2010 e 2017, 132 militares das Forças Armadas foram
condenados pela Justiça Militar pelos crimes de corrupção passiva, corrupção
ativa ou peculato, o equivalente a 0,04% do contingente total das Forças
Armadas, estimado em 334 mil pessoas. Outros 299 militares ainda aguardam
julgamento. Nesse período, pelo menos 12 oficiais foram expulsos e perderam
seus postos e patentes por crimes ligados a desvios de recursos públicos das
Forças Armadas.”
Não devemos julgar o todo pela
parte, mas tampouco ignorar a dinâmica em curso. A corrupção no interior das
forças armadas é produto da adesão dos militares ao ciclo da acumulação de
capital e seu aburguesamento político-ideológico. Tal processo, nocivo em si
mesmo, já está produzindo uma clara contradição entre a oficialidade e a
maioria absoluta dos militares. Nesse contexto, a “não politização” ou o
simples e ingênuo “apelo à institucionalidade” das forças armadas joga águas no
moinho da oficialidade sem compromisso com a segunda emancipação que teremos
que realizar. A reforma da previdência já afastou uma camada expressiva de
oficiais da vida simples e austera do soldado, sempre submetido às degradantes
condições de vida de nosso povo. Ora, o nacionalismo cosmético e burguês que
é hegemônico atualmente já está, portanto, em contradição objetiva com o
potencial do nacionalismo revolucionário que sempre existiu sob variadas
versões nas forças armadas em todos os países latino-americanos. Não há
razão alguma para supor que a lei da gravidade não funciona no Brasil...
Portanto, é trágico que a
esquerda liberal siga pregando contra a “politização dos militares e a
militarização da política”, fortalecendo assim a ideologia da neutralidade das
forças armadas e ignorando a profunda crise da república burguesa.
O efeito combinado da crise
cíclica do capital com a pandemia adquire, na periferia do sistema, um grau de
“irracionalidade” que não se verifica nos países centrais, especialmente nos
Estados Unidos. Não obstante, não devemos ignorar a lenta mudança que Bolsonaro
opera em relação à política sanitária não depende da suposta resistência de
comandantes das forças armadas a ideologia negacionista que a direita agita
para ocupar a atenção do público com banalidades, mas, ao contrário, como já
alertei em fevereiro desse ano noutro artigo, (https://www.blogger.com/blog/post/edit/preview/5379235758065943839/6697254699755595129),
a eventual adesão dos militares à vacinação em massa é uma exigência do
capital, tal como podemos observar nos Estados Unidos. A decisão pela vacinação
não depende de uma decisão que está sob comando dos militares – uma espécie de
partido militar – e muito menos poderá ser gerada no interior da caserna. É uma
decisão dos capitalistas que, tal como ocorre nos EUA, necessitam da vacinação
em massa para tentar superação da crise.
Não existe, em consequência, um
“partido militar” operando no Brasil acima das contradições e dos antagonismos
de classe. É claro que existe há muito tempo uma importante articulação na
caserna e nenhuma mudança no seu interior – tal como a troca de comando por
Bolsonaro – ocorre por acaso. Afinal, a sólida hegemonia pró-estadunidense que
agora se manifesta sem pejo somente foi possível porque toda a cadeia de
comando e os instrumentos de formação da carreira militar estavam sob controle
estrito dos oficiais de alta patente e de Washington.
O que fazer?
A esquerda liberal de extração
parlamentar poderia atuar em consequência. A primeira “medida” poderia ser a
supressão do artigo 142 da Constituição de 1988. Ora, as forças armadas não
podem figurar como a garantia dos poderes constitucionais, mas é precisamente o
que reza a Constituição. Até mesmo a constituição deixa claro quem é que manda
numa república burguesa num país periférico e dependente, configurando uma
democracia restringida que nem mesmo a esquerda liberal pode ignorar. O próprio
proto fascista Bolsonaro expressa de maneira recorrente o postulado para
irritação dos políticos vulgares defensores da democracia em abstrato. O
postulado constitucional é produto da ideologia de segurança nacional cujo
núcleo racional é manter uma clausura pétrea contra o inimigo interno, ou seja,
o despertar político de nosso povo, seu amadurecimento político e a plena
consciência de avançar na direção da Revolução Brasileira na medida em que sua
luta nos marcos do regime burguês se revela insuficiente.
Por isso mesmo, é absolutamente
indispensável que as forças interessadas numa república com soberania popular e
sem a tutela militar garantidora da ordem burguesa, inaugurem com força o
debate público sobre uma nova doutrina militar. Há dois princípios
basilares que ordenariam essa nova doutrina militar: o anti-imperialismo
para enfrentar a potência imperialista dominante e uma concepção
anticapitalista para superar a dependência. Não alimento esperanças que a
esquerda liberal avance nessa direção e, na verdade, acredito que guardará
imenso silêncio sobre o papel dos militares no país. Portanto, cabe a nós, a
esquerda socialista, avançar nesse debate sem demora.
Finalmente, num país periférico e
dependente, não deveria restar dúvida alguma sobre a força do nacionalismo
revolucionário como parte do programa e da consciência crítica necessária
para superar tanto o cosmopolitismo alienante da esquerda liberal (na prática a
serviço das potências imperialistas) e o nacionalismo burguês e cosmético do
protofascista Bolsonaro que somente simula a defesa do país enquanto pratica o
maior entreguismo de nossa história recente. Uma esquerda cosmopolita – num
mundo onde não existe uma internacional comunista e nem mesmo um movimento
comunista internacional – é uma esquerda fadada ao fracasso. A esquerda,
portanto, deve reivindicar, estudar e explicitar o nacionalismo revolucionário
sem confundi-lo com utopias autárquicas próprias do (neo)desenvolvimentismo historicamente
superadas que apenas reproduzem o “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. O
Brasil, a propósito, é a prova mais eloquente desse fracasso histórico!
O nacionalismo burguês também fortaleceu
ilusões nos últimos tempos sob o manto de “um projeto nacional” (Ciro) ou de
“reconstrução nacional” (Lula) que são, ambos, não somente incapazes de
oferecer uma alternativa, mas, ao contrário, agravariam a crise brasileira sem
abrir as portas para uma saída popular e menos ainda revolucionária.
Nesse contexto, a defesa da
soberania sem a ruptura com a ordem burguesa é brado destinado a jogar águas no
moinho da direita, caminho ilusório que termina por fortalecer as ilusões de um
Brasil potência no interior da ordem capitalista. Ora, nenhum país superou a
condição de periferia no interior do sistema e mesmo a China com a Revolução
de 1949 ainda navega em águas turbulentas para disputar com os Estados
Unidos em escala global.
Os militares estão ultra
politizados no Brasil. O fenômeno evoluiu nas costas da esquerda liberal,
somente possível porque essa abandonou a diferenciação elementar entre governo
e poder nos marcos da crença ingênua da democracia como valor universal. Ademais,
os militares assumiram um claro papel político no atual governo que é, de fato,
irreversível. Não voltarão à caserna como pretende o espírito republicano da
esquerda liberal. Ainda assim, se por circunstâncias da correlação de forças no
contexto de uma crise profunda da república burguesa, tiverem que diminuir seu
protagonismo, a “volta à caserna” é hipótese descartada. O gênio saiu da
garrafa. A contrário do conto alemão, não há possibilidade de um final feliz
para todos.