A campanha da legalidade ontem e hoje
A campanha da legalidade teve início no dia 25 de agosto de
1961 e foi movimento decisivo para garantir a posse do vice presidente João
Goulart após a renúncia de Janio Quadros e o fracasso de sua tentativa
bonapartista. A burguesia brasileira dava sinais claros que já não podia
governar e o proletariado tampouco estava preparado para a tomada do poder. O
exército – por meio dos ministros militares de então – decidiram que Jango não
deveria retornar ao país – estava em missão oficial na China – e menos ainda
assumir a presidência da república. A firme liderança do governador gaúcho
Leonel Brizola e o apoio do III Exército – fato que demonstraria a clara
divisão ou pelos menos a quebra da hierarquia entre os militares das três armas
– garantiram, finalmente, a posse do vice presidente trabalhista.
Após intensa mobilização das classes populares, a campanha que iniciara como um movimento destinado a garantir a posse de Goulart, rapidamente se converteria num avanço extraordinário da consciência popular e amadurecimento rumo à revolução brasileira. A luta pela legalidade, portanto, constituía um terreno concreto de avanço da consciência popular e de iniciativas políticas que aspiravam à conquista do poder político pela esquerda. Portanto, a defesa da legalidade ocorria no contexto de um acenso do movimento de massas, de derrotas das iniciativas das classes dominantes, de importante divisão no interior das forças armadas e de falta de unidade na burguesia.
Leonel Brizola, governador do Rio Grande no Palácio Piratini |
A resposta burguesa à garantia da legalidade conquistada pela
astúcia das forças populares emergiu com a aprovação do parlamentarismo em 2 de
setembro de 1961, destinada a garantir a democracia, mas sem conceder
capacidade de decisão ao presidente João Goulart e sua aliança de classes sob
condução popular. Não teve vida longa, como sabemos. Em 6 de janeiro de 1963 –
portanto, pouco mais de um ano após sua instauração – o parlamentarismo foi
revogado pelo voto popular. A despeito das moderadas reformas aprovadas sob a
condução do primeiro ministro Tancredo Neves, a verdade é que, impulsionado por
forte movimento de massas e certa lucidez nas vanguardas políticas da época, o
presidente João Goulart defendeu abertamente a necessidade de volta ao
presidencialismo contra o parlamentarismo. Ao parlamento não restava outra
alternativa senão derrotar uma vez mais as iniciativas burguesas apoiadas pelos
setores mais reacionários da classe dominante. Uma vez mais a história ensinava
que somente nos períodos de grande conflito, as classes subalternas podem
superar suas limitações políticas (consciência e organização) em poucos meses, desvencilhando-se
dos obstáculos ideológicos acumulados durante vários anos. O nacionalismo como
força política avançava tanto com Miguel Arraes quanto com Leonel Brizola por
vias distintas; os sindicatos amadureciam em sua capacidade de combate e
protagonismo político. Finalmente, as organizações de vanguarda sentiam o terreno
firme sob seus pés para avançar na luta e na teoria da revolução brasileira.
Em face da amnésia histórica produzida por uma esquerda de
vocação colonizada e cosmopolita hoje, o contraste dos tempos de então com
nossa situação atual não poderia ser mais eloquente. Todos os dias podemos
observar novas investidas do governo encabeçado pelo protofascista contra as
instituições burguesas (parlamento, tribunais, governadores, imprensa, etc).
Toda semana o governo lança declarações destinadas a captar a atenção da
esquerda liberal e marcar a agenda do debate público em seus termos. Todo mês,
o covil de ladrões que atende pelo pomposo nome de parlamento aprova medidas
destinadas a ampliar a exploração da força de trabalho (a MP 1045 foi a última)
e assaltar o estado por meio da política fiscal, monetária e cambial. Crise e
super lucros pintam a conjuntura sobre a qual os trabalhadores atuam sem
diagnóstico e direção política.
A hegemonia liberal na esquerda – cuja liderança ainda é dominada pelo PT – segue atuando exclusivamente na “defesa das instituições e da democracia”, no contexto de uma república burguesa que apodrece aos olhos do trabalhador comum, desprovido de um sindicato combativo, organização política e consciência crítica. Afogado na luta diária pela sobrevivência, os trabalhadores responsáveis pela produção da riqueza apenas ensaiam movimentos em defesa de suas condições mínimas. A taxa que combina desocupados e desalentados (pessoas que desistiram de procurar trabalho) – segundo informação do DIEESE – passou de 16,0%, no primeiro trimestre de 2020, para 19,5%, no mesmo período de 2021. E o dado mais preocupante – também segundo a fonte – é que, entre os chefes de família, essa mesma taxa combinada de desocupação com desalento correspondeu a 11,2%, em 2020, e a 13,4%, em 2021, o que indica maior número de famílias em situação de vulnerabilidade
Flavio Cannalonga. Bom Jesus da Lapa, 1998 |
A lógica das situações extremas se apresenta de maneira cada
vez mais nítida. Entretanto, as convicções republicanas da esquerda liberal não
sofrem abalo. O imenso oportunismo político, o apego ao cretinismo parlamentar
e um profundo compromisso com a classe dominante, mantêm a esquerda liberal
aferrada na ideologia segundo a qual o regime político atual pode recuperar
vitalidade se bem conduzido por um novo pacto de classes comandado por algum
político vulgar existente em suas fileiras. A massa dos trabalhadores – um
verdadeiro exército de desesperados – assiste a tudo sem manifestar rebeldia,
mas tampouco qualquer acordo com o roteiro da crise que a condena
irremediavelmente ao abismo social.
A classe dominante – uma inédita coesão burguesa – logrou
cenário perfeito para a dominação política. De um lado, um presidente
protofascista que não vacila em avançar em todas as medidas de política
econômica que rende lucros extraordinários e maior poder político a todas as
suas frações. De outro, uma oposição de profunda inspiração liberal que se
esforça para ganhar sua confiança e, em seus sonhos dourados, conseguir uma
fissura entre banqueiros, latifundiários, grandes comerciantes, industriais
decadentes e pequena burguesia empobrecida que pudesse garantir algum poder de
negociação para seu programa igualmente liberal.
A “defesa da democracia” encurrala a oposição dominada pela
esquerda liberal nos labirintos de uma crise em que ela não entende e para a
qual tampouco ensaia saída satisfatória. Incapaz de observar a dialética da
luta nos marcos da ordem burguesa, mas contra a ordem burguesa – postulado
básico para justificar sua existência num país subdesenvolvido e dependente – a
esquerda liberal aposta todas as suas fichas no calendário eleitoral, convencendo-se
de que pode bater o protofascista em meio à grande crise econômica, política e
social. Engana-se no elementar pois desconhece a lógica de situações extremas
que nos governa desde janeiro de 2015, quando a guerra de classes foi desatada
pela burguesia ainda durante o governo de Dilma Rousseff e a desconfiança
pública sobre o sistema político, os partidos, as eleições, os tribunais, a
imprensa, etc, cresceram lenta e inexoravelmente. Não se trata, obviamente, de
renunciar as disputas eleitorais. A questão é mais simples: sem um novo
radicalismo político programático que toque nas bases da dominação burguesa
responsável pela miséria e exploração da maioria do povo brasileiro, não haverá
terreno para a esquerda conquistar o apoio das maiorias.
Em 1961 a defesa da legalidade rendeu o avanço da
consciência política e jornadas de luta vitoriosas para as classes populares;
em 2021 a defesa abstrata da democracia torna a esquerda liberal objeto
de desconfiança e repúdio de milhões de trabalhadores que não podem sequer
alimentar esperança em dias melhores no interior de um sistema político
apodrecido. Em 1961, a campanha da legalidade garantiu a posse de um
presidente reformista e permitiu avançar ainda mais nas reformas de base –
universitária, urbana, agrária, lei de remessas de lucros, etc – ao passo que,
em 2021, a defesa da democracia não faz nada mais que garantir o desbotado ritual
burguês de uma república apodrecida em seus cimentos. Em 1961, o movimento
pela legalidade permitiu e foi também resultado da consciência nacionalista
no interior das forças armadas enquanto a defesa abstrata da democracia em 2021
meramente consolida no interior do alto
comando maior fidelidade contra o regime atual considerado indesejável e
ineficiente por completo.
Ontem – em 1961 - a defesa da legalidade permitiu
maior consciência, força no movimento de massas e jornadas de luta com grandes
vitórias para os trabalhadores; hoje, a defesa abstrata de democracia
apenas fortalece um sistema político que mesmo funcional aos interesses da
coesão burguesa, tem seus dias contatos pelo interesse burguês.
Ontem – em 1961 – a campanha da legalidade movia a
consciência e transformava a práxis de milhões de trabalhadores a despeito das
ilusões que a liderança do processo também alimentou no reformismo nacionalista
do governo de João Goulart. Na atualidade, a defesa abstrata de democracia
escraviza a consciência de milhões nos marcos de um regime burguês totalmente
hostil a vida dos trabalhadores.
Numa época em que os trabalhadores perderam muito – vida
material, consciência e organização política – urge a perda das ilusões. Ainda
que sob condições adversas, a perda das ilusões pode ser na atualidade a única
conquista capaz de garantir aos trabalhadores algum futuro para a revolução brasileira
e a luta pelo socialismo no Brasil.