Há perguntas destinadas à celebração da amnésia social e ao mesmo tempo, representam uma espécie ingênua de elogio ao fim da História. Nos anos recentes eu tenho ouvido com frequência inusitada: "por que Santa Catarina é tão reacionária?" Na aparência a pergunta faz sentido pois Bolsonaro levou nada menos de 75,92% dos votos para presidente na eleição passada; não fui conferir, mas creio difícil encontrar votação superior em outro estado em 2018. É possível, portanto, afirmar que os catarinas deram a maior vitória ao protofascista naquelas eleições e repetiram a dose agora (2022) quando confirmaram outro percentual expressivo (62,21%) enquanto a chapa petucana (Lula/Alckmin) amargou modestos 29,54%. É uma porrada, devo reconhecer.
No entanto, após a pergunta-denuncia, o interrogatório segue: "a presença europeia é responsável pelo rechaço à esquerda?". Afinal, "por que os catarinenses são tão reacionários?" É claro que semelhantes elogios eu também ouvi acerca do Brasil e dos brasileiros nos círculos da esquerda liberal, pois basta um revés eleitoral para algum sabichão condenar o caráter dos brasileiros e simplesmente xingar o país. Entretanto, nos últimos anos desenvolvi anticorpos contra a consciência ingênua da esquerda liberal em geral e contra o petismo, em particular. O antídoto esta disponível na praça, não custa caro, mas tem sido ignorado de maneira sistemática: caso você queira saber se os catarinas são mesmo reaças não é necessário recorrer aos estudos sobre o genoma humano pois basta rápida revisão na base de dados dos tribunais eleitorais.
Vou oferecer alguns números para ajudar na reflexão e, de quebra, dar minha contribuição à inesperada defesa da saúde mental dos catarinenses que as circunstâncias políticas me obrigam a fazer.
Em 2002, Lula deu uma surra no José Serra: foram 1.719,739 votos para o ex presidente e meros 707.239 para o tucano. O povo catarinense estava exausto de FHC e sua turma! Garotinho levou 373.683 porque a tradição trabalhista deve entrar no cálculo aqui no sul. Ciro captou 217,596 e até mesmo Zé Maria registrou suculentos 18.578 votos. Faça sua conta e verá que a "esquerda" massacrou a direita! E o senador? O PT elegeu a senadora Ideli Salvati, a lulista mais devota entre todos os petistas que um dia conheci. Vitória petista, portanto.
Em 2006 a situação mudou um pouco mas mesmo assim Lula ganhou 1.108,851 enquanto o tucano Alckmin (sim, ele mesmo!) cravou 1.889,277 votos. Você certamente não vai lembrar mas Heloisa Helena do PSOL registrou 220,431 votos e Cristovam Buarque 109.876. Faça sua conta e verá que a vitória tucana não pode ser considerada um feito digno de maestria.
Com Dilma o humor dos catarinas mudou um pouco mas não a ponto de deixar o petismo na mão. Naquela eleição o José Serra venceu com 1.658,161 votos e dona Dilma encostou com 1.402,566. Mas Marina - a terceira via da época - ganhou expressivos 507,017 e Plinio mordeu 44,610 votos. Faça sua conta e verá que a esquerda liberal venceu o atual office-boy dos Estados Unidos com certa folga. Vitória da esquerda liberal!
Na reeleição da presidente em 2014 a petista venceu por 51,64% a 48,36% o então senador mineiro, líder dos tucanos enraivecidos; ou seja, uma eleição pau a pau com vitória petista.
Até aqui os números poderiam pintar nós, os catarinas, como uma espécie de socialdemocratas do sul desenvolvido, um estado "equilibrado", capaz de manter certa racionalidade eleitoral mesmo diante de tantas turbulências políticas. No jargão da esquerda liberal eu poderia afirmar que Santa Catarina é, a despeito da forte presença da pequena burguesia proprietária e assalariada, um estado progressista pois os resultados eleitorais autorizam a feliz conclusão. Eis a razão de meu espanto diante da pergunta que acusa uma doença grave no DNA dos catarinas em que não faltam argumentos sugerindo ou mesmo acusando uma certa falta de brasilidade no estado onde nasci... Muitos italianos, alemães, polacos, entende? Pouca empatia com o povo brasileiro. As perguntas sugerem falta de apreço pelo Brasil ou também desprezo pelo sentimento nacional numa hora sabidamente difícil.
Em defesa dos catarinas devo dizer que, de fato, algo importante mudou "aqui": as transformações do capitalismo no país e a enorme crise ética, programática e política do petismo. Agora, no segundo turno, o ex-marxista Décio Lima vai disputar com um bolsonarista tão direitista quanto tosco. Este, no entanto, tem como "virtude" a defesa do profascista na CPI da Covid naquele covil de ladrões que atende pelo pomposo nome de "congresso nacional". Mas o senador Jorginho tampouco é um acidente de percurso pois conta com apoio de ilustres nomes da república. É preciso compreender que a sofisticação intelectual ou o tal espirito republicano não é precisamente uma propriedade importante para o povo na hora do voto. Para qualquer povo...
Na verdade, a insistente e inusitada pergunta com a qual me deparo nessa conjuntura pretende tão somente ocultar a gradual, lenta e inexorável decadência política e ideológica do PT como se a mudança do comportamento eleitoral dos catarinas não fosse consequência necessária da mudança no discurso e prática petista (em especial, de Lula) após 14 anos de governo! Portanto, não foram somente os catarinas que mudaram, mas a corrosão da credibilidade política do PT que levou os votos outrora progressista para as garras da direita na atual conjuntura. Ademais, a fotografia dessa radical mudança não é privilégio catarinense pois também pode ser vista de maneira eloquente no Rio de Janeiro que elegeu duas vezes Brizola antes de vigaristas, ladrões, arrivistas e fascistóides de todo tipo ocuparem o Palácio Guanabara no antigo "tambor do Brasil" e terminarem seus dias num presídio em Bangu. E o que dizer de São Paulo, o coração proletário do país que conta com uma classe operária (em termos relativos) inexistente em meu estado? Por que, afinal, no coração proletário do país a classe operária conferiu vitórias sucessivas às classes dominantes e vida longa ao tucanato?
A pergunta-acusação opera, portanto, uma inversão importante: quem esta no banco dos réus? Os catarinenses que deram a maior vitória nacional ao protofascista em 2018 ou o petismo que, de renuncia em renuncia, deixou a todos nós sem alternativa eleitoral consistente? Não sou avalista da momentânea preferência eleitoral de meus conterrâneos, razão pela qual votarei nulo para presidente e governador! Aqueles que tomam a conjuntura eleitoral como algo sólido, permanente, devem lembrar que o atual governador, o "comandante" Moysés, eleito na conjuntura de 2018 com apoio do protofascista, agora sequer foi para o segundo turno.
O poder de Bolsonaro em eleger seus candidatos não é eterno nem o Brasil vai acabar a despeito do resultado eleitoral que se avizinha. Em larga medida o futuro dependerá menos do voto e muito mais da urgente e necessária renovação da práxis política do que restou da esquerda no Brasil. Numa eleição em que o socialismo não figura no horizonte sequer como propaganda e a Revolução Brasileira foi proscrita pela decisão consciente da esquerda liberal interessada em gerir o sistema de maneira mais "democrática" para a burguesia, a vitória ideológica da classe dominante esta assegurada antes do pronunciamento oficial do Tribunal Eleitoral. No entanto, nem mesmo a mais potente ideologia é capaz de superar as enormes e gritantes contradições e antagonismos de classe que, na prática, não fazem menos do que evidenciar a necessidade de um novo radicalismo de esquerda capaz de enfrentar o protofascista e bate-lo, de maneira definitiva, quando a maré virar. Para além do voto.