Nós que nascemos no
aparente, poderíamos suportar o real?
Fernando Pessoa
A aparência é a
essência de nossa época – aparência é a nossa política, aparência a nossa
moral, aparência a nossa religião, aparência a nossa ciência.
Ludwig Feuerbach
“... toda ciência seria
supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem
diretamente...”
Karl Marx
Há algum tempo – não saberia
dizer com precisão quando o fenômeno realmente iniciou – a luta política
assumiu entre nós uma forma “simbólica”, para dizê-lo no jargão acadêmico. O
real importa pouco, mas a disputa pelo “simbólico” ou “imaginário” simula-se
quase redentora! A radical operação é consequência da ofensiva burguesa em
curso responsável por confinar a esquerda à disputa meramente moral, como se
fosse possível transformar a realidade com a simples mudança de mentalidade ou a
disputa de valores. É uma vitória considerável da ideologia das classes
dominantes e um recurso cínico e impotente da esquerda liberal, pois enquanto
essa busca tão somente um lugar confortável no interior da ordem burguesa,
àquela amplia de maneira inédita sua dominação político-ideológica na sociedade
capitalista sem verdadeira contestação. A afirmação de valores supostamente “humanistas”
por parte da esquerda liberal, ao contrário da vã pretensão, apenas valida a
sociedade capitalista no reforço do pluralismo tolerado pela direita liberal
sempre que as condições da crise econômica e do regime político permitem.
A análise sobre recentes
acontecimentos indica que, em larga medida, a esquerda liberal dominante não
cansa de combater inimigos opacos e em não poucos casos, até mesmo inimigos invisíveis
ou fantasmagóricos. A primeira vez que observei o “ato” foi quando alguns
estudantes orientados pela esquerda liberal denunciaram as pichações nos
banheiros de nossa universidade como um atentado à moral, aos bons costumes e,
sobretudo, destinados ao enfrentamento do racismo, do nazismo e do fascismo. Em
minha trajetória política, jamais me ocorreu o uso de pichações no banheiro
para convocar as massas ou mesmo para fazer agitação política... Tampouco ouvi
algum publicitário exitoso, dirigente partidário experiente ou líder sindical
antenado, indicar as paredes dos banheiros como meio para insuflar as massas;
afinal, a despeito do eventual uso diário, a capacidade de difusão de uma
pichação ao lado do vaso sanitário não pode competir remotamente com qualquer grupo
de whatsaap de uma Atlética ou Centro Acadêmico. É ocioso falar do poder de
divulgação do Face, Twitter, Instagram ou canais de Youtube, com milhares de
seguidores... O contraste é demasiado gritante para ser ignorado: enquanto até
mesmo os políticos burgueses lançam mão dos benefícios da big data e o governo
conservador petucano defende uma CPI das “Fake News”, os universitários se
ocupavam das pichações em banheiros?
As pichações anônimas denunciadas
na UFSC – de inequívoco apelo racista – também praticavam apologia ao nazismo.
Não por coincidência, pouco tempo depois, a polícia federal identificava e
prendia quatro estudantes de nossa universidade organizados em uma “célula
nazista”. Em sessão extraordinária realizada em 22 de novembro de 2022, o CUn
reuniu, discutiu o problema e votou por unanimidade o merecido repúdio da
instituição à propaganda da direita liberal. Entretanto, identificado e
repudiado o crime pela instância máxima da universidade, a batalha cessou.
Ao utilizar os banheiros no CSE no final do semestre passado observei que ainda exibem propaganda de todo tipo – racistas e homofóbicas – mas eram especialmente insistentes e agressivas contra os comunistas. Genocidas é o adjetivo mais leve destinado a nós, os vermelhos. É ilustrativo da conduta da esquerda liberal acolher e proteger o “outro”, embora a defesa dos comunas não figure entre suas prioridades. Assim, o repúdio ao racismo e ao nazismo são frequentes enquanto o anticomunismo é simplesmente ignorado como se não existisse. Há, de fato, uma hierarquização moral do protesto, razão pela qual os comunistas não são objeto de solidariedade. Nada no mundo da política ocorre por acaso, motivo suficiente para colocar alguma atenção nesse esquecimento ou omissão deliberada. Ademais, ninguém com os dois pés na rapadura pode ignorar a importância social do anticomunismo em nossa história. A propósito, pesquisa de recente divulgação indica que 31% da população teme a ameaça comunista e outros 13% aceitam a hipótese em parte. A ideologia anticomunista é recurso antigo do liberalismo e notadamente mais eficaz diante da despolitização produzida pela hegemonia liberal no interior da esquerda nas duas últimas décadas.
Um retrato na parede
Expressão de tempos não tão
distantes, na entrada do Centro Sócio Econômico (CSE) dividem a parede de
maneira quase harmônica dois personagens: Karl Marx e Ludwig Von Mises. A
origem da homenagem a Marx foi o evento anual da WAPE (World Association for Political Economy) que o IELA sediou, com a
presença de muitos intelectuais de vários países do mundo em 2013 (China, Índia,
Canadá, Vietnam, Escócia, México, Alemanha, Estados Unidos, Japão, Brasil,
etc). O registro comemorativo daquele seminário internacional é uma placa com a
célebre sacada de Marx elaborado com o refinado estilo literário do alemão presente
no Manifesto Comunista de 1844 (“tudo que é solido se desmancha no ar”). Algum
tempo depois de nosso evento – numa revanche que me rendeu muito riso e nenhuma
indignação – os liberais de direita solicitaram a diretora do CSE permissão
para a publicação de outra placa em homenagem ao teólogo austríaco Von Mises ao
ladinho do Marx. Na verdade, o ato cômico não me importou, pois, a disputa
“simbólica” se referia a algo concreto: a hegemonia liberal no currículo de
economia era real e desde sempre dominante; portanto, nada mais justo que
figurar na parede o que já estava na cabeça da maioria dos alunos e
professores.
Diante da amnésia social que marca nosso tempo, é preciso recordar que a
disputa ideológica nas universidades já foi muito mais intensa que a agitação
barata em banheiros. A luta ideológica não é simbólica ou imaginária; ao
contrário, historicamente foi responsável, por exemplo, pela mobilização
estudantil à sucessivas reivindicações de reformas curriculares destinadas a
colar sua formação às condições da realidade brasileira, orientada por espírito
crítico e sólida formação científica. Mas à falta de memória atual corresponde
a ausência de um movimento estudantil forte, representativo e real (o mesmo
ocorre com os professore sob circunstâncias particulares). No entanto, a
direita liberal não desistiu da luta ideológica e, em consequência, segue
soberana no comando das ações sem as “mediações” que a esquerda liberal tanto
valoriza como refúgio político.
A campanha contra o IELA
A propósito, lembro de uma época
recente em que nós, os bolivarianos, sofríamos uma campanha cerrada de maneira
bem menos discreta e com meios infinitamente mais potentes do que as pichações
confinadas nos banheiros da UFSC. Os elogios aos estudos latino-americanos
desenvolvidos nas duas últimas décadas no IELA-UFSC não brotavam em paredes
reservadas à meditação solitária determinada por razões fisiológicas; ao
contrário, a direita liberal não vacilava em cuidar de nossa reputação com
insistência e método. Há pouco tempo, o trabalho ideológico da direita liberal
utilizava a Revista Veja na qual a
coluna de Reinaldo Azevedo cumpria função estratégica para combater e
manufaturar a opinião pública contra nosso Instituto. Fundado em 2006, o
IELA-UFSC já nasceu sob intensa campanha contra sua existência.
Em 29 de janeiro de 2009, Reinaldo Azevedo não vacilava nas páginas da
Veja:
Na Universidade Federal de Santa Catarina, existe um troço chamado
Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA)... A principal atividade do IELA
é promover, atenção!, as Jornadas Bolivarianas. Sim, vocês entenderam. Em
abril, acontece a quinta edição. Aí o leitor cético pensa assim: “Ah, Reinaldo,
a UFSC não tem nada a ver com isso”. Tem, sim. Na página oficial da
universidade, as tais jornadas merecem destaque, como vocês poderão ver.
Em 28 de outubro de 2011, o colunista reproduzia carta de um estudante
com a manchete de letras garrafais:
“A Universidade Federal de Santa Catarina é uma das instituições em que
o delírio da extrema esquerda chegou longe. Há lá até uma facção bolivariana,
acreditem!”
Em 26 de março de 2014, Reinaldo separava novamente o joio do
trigo: a maconha na UFSC não era bom sinal, mas havia coisa muita pior:
De toda sorte, consomem-se drogas mais pesadas na Universidade Federal
de Santa Catarina. Que eu saiba, é a única do país que conta com um núcleo
bolivariano: o “Jornadas Bolivarianas”, que tem o “Instituto de Estudos
Latino-Americanos”. No mês que vem, eles vão até fazer um seminário. Convenham:
até que a maconha, nesse contexto, é inofensiva, né? Já o bolivarianismo, não.
Este mata mesmo, como prova a Venezuela.
Na mesma linha, Felipe Moura
Brasil, outro jornalista devoto do liberalismo e anti-comunista convicto
repetia que
A UFSC é aquela universidade onde há “Jornadas Bolivarianas”, nas quais
é ensinada uma droga muito mais pesada que a maconha, como já comentou Reinaldo
Azevedo. La se reclama das balas de borracha da política contra aqueles que
infringem a lei, enquanto se faz propaganda da ditadura assassina que manda
chumbo grosso em manifestantes que exigem democracia.
O cerco ao IELA-UFSC permaneceu por
anos como pauta permanente na principal revista do jornalismo brasileiro com
óbvia repercussão em dezenas de blogs, comentaristas de rádio e TV, com direito
a discursos parlamentares pelo país afora. Até mesmo no episódio em que a
polícia buscava consumidores ou supostos traficantes na UFSC, o problema de
fundo deveria ser o... IELA
Após a “batalha do bosque”
ocorrida em 25 de março de 2014 no CFH – recebi a visita de uma jovem
jornalista da afamada revista semanal (porta voz mais importante da direita)
pronta para me espetar com perguntas previamente elaboradas em conjunto com seu
editor e o núcleo duro da publicação. O alvo era claro: o “caos” na UFSC tinha
certamente um mentor intelectual, alguém por trás dos panos com astúcia e
financiamento externo capaz de conspirar contra a paz de nossas inocentes
universidades. A aprendiz de jornalista buscava provas porque já tinha firmes
convicções anti-bolivarianas.
A campanha da Revista Veja contra
o IELA gerou repúdio irrestrito entre nós ao ponto de todos seus membros
recomendarem não receber a jornalista com o “sólido argumento” de que aqui, na
UFSC, somente o diretor do CTC teria concedido a entrevista; ao contrário das
previsões sombrias, a entrevista foi ótima e lamento não ter solicitado
permissão para gravá-la. As perguntas concluíram abruptamente quando a repórter indagou sobre as razões das Jornadas
Bolivarianas e da presença inusitada e suspeita da concepção bolivariana
presente em nossa universidade, especialmente grave quando considerados os perigos
decorrentes do conceito de “Pátria Grande”, que, aos seus olhos, antecipavam o
fim ou a diluição de nossa integridade territorial e nosso futuro como nação.
Não tive outro recurso senão ler com parcimônia e lentamente – para espanto da
jovem e desavisada jornalista – o primeiro capítulo de nossa constituição,
especialmente importante e claro no parágrafo único, aquele que estabelece os
princípios fundamentais da Constituição de 1988
“A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política,
social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma
comunidade latino-americana de nações”.
A surpresa da “foca” não poderia
ter sido maior diante da inesperada revelação do conteúdo bolivariano da
Constituição de 1988; contrariada, sem esconder a enorme decepção, ela
agradeceu, encerrou melancolicamente a entrevista e saiu afirmando a publicação
da matéria na nova edição. No fim de semana, num caixa de supermercado, vi a
nova edição da Revista Veja; folhei ali mesmo e constatei que nada havia sido
publicado. Na segunda feira, a primeira hora, liguei para a jornalista e
perguntei, curioso, sobre a sorte da entrevista: “professor, sabe como é, a
situação no país é muito volátil e tudo é muito rápido... a agenda mudou,
emergiram outras urgências e o editor decidiu se dedicar a outro tema”. Claro,
“entendo perfeitamente”, respondi, quase as gargalhadas. Um foca é um foca! Um
foca servil será sempre um jornalista servil.
No IELA, desde sempre nos orientamos pelo jargão popular segundo o qual “bom cabrito não berra” e, portanto, jamais denunciamos a campanha midiática contra o bolivarianismo do Instituto. Ao contrário, a cada peça publicitária contra o esforço intelectual produzido aqui, simplesmente dobrávamos a aposta. Um personagem de Cervantes tão ignorado quanto incompreendido na ciência política, orientava nossos passos: se os cães ladram, é porque a caravana passa.
A consciência ingênua que informa
a esquerda liberal cuja maior expressão é indiscutivelmente Lula, somente
percebeu a consistência ideológica da campanha da direita quando, numa disputa
presidencial, a direita ultraliberal indicou o futuro venezuelano como a
ante-sala do caos definitivo do país, além de exemplo da irracionalidade humana
da qual todo eleitor supostamente deveria fugir. O brado da direita era claro:
“O Brasil não será uma Venezuela”! A despeito da agressividade, a campanha
dirigida contra nós do IELA não sensibilizou ninguém; entretanto, mais tarde, a
esquerda liberal percebeu o problema a partir do viés eleitoral porque na
prática, é cativa da concepção
parlamentar de política; ou seja, o que não tem expressão eleitoral, não
existe! Na eleição presidencial de 2014 a “ameaça bolivariana” era ingrediente
decisivo na propaganda da direita contra a esquerda liberal ao apontar a
Venezuela como expressão de nosso futuro e inevitável fracasso, caso Haddad
vencesse a disputa presidencial.
A despeito de tropeços, a
campanha ideológica da direita seguiu
seu ritmo normal mas ganhou contornos mais graves aqui na UFSC. Nas edições das
Jornadas Bolivarianas de 2015, 2016 e
2017 a direita liberal não vacilou em intervir diretamente em nossos eventos. Nas
três edições – uma realizada no auditório do CSE e as demais na reitoria – a direita
ultraliberal invadiu nossos eventos em protesto contra a existência do IELA e a
presença de convidados comprometidos com “terrorismo” e “assassinatos em massa”
em seus países, especialmente na Venezuela. Em uma das invasões, a “terrorista”
em questão era uma perigosa ex-ministra da educação da Venezuela responsável –
segundo a UNESCO – de erradicar o analfabetismo no país de Bolívar. Os atos da
direita liberal eram devidamente filmados por seus militantes – entre os quais duas
estudantes de pós-graduação do curso de Direito – e poucos minutos depois se
proliferavam nas redes digitais na conhecida operação inaugurada por Edward
Bernays em 1933 destinada a organizar o caos.
Nos atos da direita liberal
contra o IELA não faltavam elogios a todos nós e, especialmente salientes, era
o adjetivo de... “genocidas”. A divulgação das imagens obedecia à lógica do
“cancelamento”, mais tarde utilizada em larga medida pela esquerda liberal
identitária. A ação da direita não era episódica; ao contrário, foi cumulativa
e, portanto, sistemática. A interrupção da prática ocorreu quando de maneira
preventiva reuni-me com o reitor às vésperas das Jornadas em 2018 advertindo pessoalmente que se os liberais de
direita invadissem novamente nosso evento – posto que a reitoria após
reiterados pedidos respondia afirmando seu zelo apenas pelo patrimônio material
– nós mesmos cuidaríamos da segurança do evento à maneira bolivariana. Foi o
suficiente para conquistar a paz.
No entanto, a despeito de nossa firme
disposição, a verdade é que a pressão da direita liberal contra os bolivarianos
e seu “estranho” Instituto diminuiu também por razões político-ideológicas. A ofensiva ultraliberal arrefeceu aqui na UFSC por causa elementar: é
sempre mais fácil adorar Von Mises e Hayeck em abstrato do que justificá-los a
luz da ação de Michel Temer, Henrique Meireles e Pedro Parente. Da mesma forma,
é melhor indicar o paraíso liberal no livro-texto dos teólogos do que sustentar
as “virtudes” de um governo ultraliberal de Bolsonaro e Mourão. O liberalismo
tem certo poder de sedução quando discutido em abstrato... O aprofundamento da
linha liberal a partir do governo Temer foi gradualmente tirando o encanto do
apelo ideológico do liberalismo.
Não obstante, a campanha contra
as universidades públicas seguiu seu curso normal e creio que nem mesmo o
suicídio de Cao ocorrido naquele triste 2 outubro de 2017 logrou estancar a
ofensiva burguesa. O governo do protofascista Bolsonaro tentou o “Future-se”
mas, sem recursos para cooptar uma parte dos universitários, assistiu impotente
à derrota do projeto pela força combinada do protesto estudantil, do rechaço da
burocracia universitária e de parte importante de professores e técnicos. Assim,
durante seu mandato atuou na regra básica: congelar e contingenciar recursos
orçamentários. De resto, limitou-se a recusar o primeiro da lista nas eleições
para reitor e nomear, aqui e ali, reitores de sua conveniência.
A universidade, ao contrário do
que supõe a consciência ingênua, encontra-se em situação difícil. O fracasso completo
do projeto da “universidade inclusiva” (Haddad e Janine Ribeiro) e a
impossibilidade real cada dia mais evidente de avançar para um novo impulso
industrializante, redefiniu drasticamente a função social da universidade no
terreno da ciência e da tecnologia. O academicismo dominante no seu interior opera
fortalecendo a consciência ingênua e paralisando a necessária transição para a
consciência crítica; por isso, o academicismo representa tão somente uma
espécie de autolegitimação de nossa existência sem validação social. É verdade
que em algumas áreas existem projetos vinculados às empresas (estatais e
multinacionais) além de extensões realizadas junto aos chamados “movimento
sociais”. A despeito de eventuais méritos, semelhantes iniciativas são completamente
insuficientes para justificar a existência das universidades. A percepção dessa
inutilidade social aparece entre nós
pelo reclamo permanente contra a austeridade orçamentária particularmente aguda
desde janeiro de 2015 quando Dilma – empunhando o bordão de seu segundo
mandato, a “Pátria Educadora” – cortou quase 10 bilhões do orçamento na
educação; após o empurrão da ex-presidente, o bonde da austeridade não parou
mais. Nesse ano, a “reconstituição do orçamento” realizado pelo governo é
efetivamente simbólica. Em abril,
Lula anunciou míseros 2,44 bilhões aos famintos reitores, montante que, quando
dividido, é notoriamente incapaz de resolver a grave crise de investimento e
custeio que se acumula durante décadas entre nós e, ademais, totalmente insuficiente
diante das exigências sociais de um país dependente e subdesenvolvido com
enorme dependência científica e tecnológica. Na verdade, além da propaganda
oficial, as universidades seguem submetidas a mais completa austeridade. A
diferença agora é que nem mesmo um modesto “protesto simbólico” há entre nós.
Aos que recusam meu diagnóstico, busquem informações sobre a última “disputa”
pela presidência da Andifes.
Nessas circunstâncias – sem o
projeto da universidade necessária e
com financiamento escasso – podemos compreender o insistente recurso aos
inimigos invisíveis como mera expressão da ideologia da esquerda liberal
destinado a justificar nossa existência que, tal como afirmou Florestan
Fernandes, somente pode tirar os recursos da miséria do povo. Na solidão
política ou sob hegemonia do liberalismo de esquerda, o professor, aluno ou
técnico, busca justificar sua existência sem conexão real com a gravíssima e
histórica condição de dependência. A vitória eleitoral da esquerda liberal nas
eleições presidenciais e a firme decisão do governo petucano (Lula/Alckmin) em
seguir com a econômica política do
rentismo agora dirigido pelo uspiano Haddad, indica que as tensões
inerentes da economia e do regime político em frangalhos, tende a fomentar ações da direita também contra a existência das
universidades públicas. É difícil não reconhecer que seremos um alvo fácil a
despeito do otimismo interessado daqueles grupos que em nosso meio se julgam
suficientemente produtivos ou úteis para escapar dos cortes e sobreviver, mesmo
com o eventual fim do sistema universitário atual.
É preciso dizê-lo de maneira
clara: não temos fascismo no Brasil! O grau de liberdade que de fato
desfrutamos é imenso a despeito da renúncia voluntária à ação política de
natureza crítica. Nossos sindicatos não estão sob intervenção; realizam
congressos e deflagram greves. Os partidos de esquerda não estão proscritos:
lançam candidatos à presidência e elegem deputados à luz do dia. As editoras
não são empasteladas, estão todas abertas e os jornais das organizações de
esquerda são regularmente publicados. A liberdade para movimentos sociais é
igualmente ampla nos limites do direito burguês. A corte suprema funciona como
sempre funcionou, tal como o congresso nacional. A imprensa burguesa-livre pode
ser acessada sob a proteção da livre escolha. Enfim, todos os cânones do liberalismo
são respeitados pela classe dominante a despeito dos conflitos com o governo do
protofascista Bolsonaro. Qual a razão então para a invocação do fantasma do
fascismo? Ora, ocorre que a evocação
fantasmagórica do fascismo é um instrumento valioso para justificar a
paralisia política e a submissão intelectual e política ao governo petucano
diante das classes dominantes. É uma paralisia intelectual profunda, jamais
vista em nosso país, inexistente durante a ditadura! É também uma covardia
político-intelectual sem precedentes em nossa história e, ademais, um cimento
seguro para que a classe dominante possa – quando e se necessário – lançar mão
de uma modalidade qualquer de terrorismo de Estado para assegurar seus
privilégios de classe e seu domínio político completo sem oposição ou
resistência necessária. É uma servidão voluntária fora do contexto medieval do
século XVI!!!
A despeito da derrota eleitoral
da direita liberal, o inimigo aparente
segue aqui distribuindo as cartas comodamente porque é importante para o
sustento da esquerda liberal limitada à enfadonha repetição da digestão moral
da pobreza no terceiro mandato de Lula sob a “novidade” de sua versão petucana Lula/Alckmin.
Portanto, o miserável artifício
do inimigo aparente cumpre uma função
ideológica para o liberalismo de esquerda e o apoio a um governo que nos
assuntos fundamentais do Estado, da economia, da consciência de classe e da
disputa cultural, se comporta como se estivéssemos condenados a viver na margem,
figurando tão somente como o testemunho impotente sob a bandeira do pluralismo.
Eis a razão pela qual a defesa
das ações afirmativas opera objetivamente como renúncia à busca do acesso
universal à universidade, ou seja, o fim
do vestibular; o “combate” às pichações contra o “fascismo” é útil para
justificar a renúncia real da disputa ideológica a partir de interesses de
classe; a defesa das políticas de permanência ignora o desespero originado no
desemprego elevado e nos baixíssimos salários impostos a massa dos
trabalhadores, nossos potenciais alunos;
da mesma forma, a defesa abstrata da universidade se cala diante da grave
evasão escolar cuja origem é atribuída ao mundo pós pandêmico e às “tendências
mundiais”; o elogio ao reajuste das bolsas de pós-graduação ignora a maior
crise de legitimidade e da quase nula função social da universidade nas
condições do capitalismo dependente rentístico. A despeito de suas limitações,
essa linha orientada pelo menor esforço seguirá existindo porque é peça
fundamental no sustento do atual governo e jamais o caminho para superar
nossas graves limitações e impasses. Portanto, não estamos diante de políticas
transitórias, necessárias para a conquista de outra universidade – ilustrada,
com força científica, atenta à realidade brasileira e aos ares do mundo – mas
tão somente de políticas ùteis à defesa eleitoral do governo petucano.
Ademais, constitui grave erro
afirmar os limites político-ideológicos dominantes a partir do surrado
argumento da “adversa correlação de forças” quando temos combates urgentes ao
alcance de nossas mãos! Entretanto, enquanto o inimigo aparente comandar cada
passo, cada minuto da existência da maioria dos professores, alunos e técnicos,
nada será possível até que os fatos ou as tragédias (como o suicídio de Cancelier,
o nosso Cao) nos atropelem novamente. Não seria exagero prever que, diante da
eventual emergência do inimigo real – resultado necessário da ofensiva político-ideológica
da classe dominante contra todos nós – o grau de resistência seria nulo.
Afinal, o progressismo que informa a esquerda liberal já teria sido domesticado
em plena liberdade para a mais completa servidão como destino.
Revisão: Junia Zaidan
[i] Professor
do departamento de economia e relações internacionais da UFSC e presidente do
Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA-UFSC)