Leo Huberman era leitura obrigatória para minha
geração e hoje não passa de autor desconhecido para a juventude com algum grama
de rebeldia e compromisso político com o socialismo. Naquele tempo, quem não
lia História da riqueza do homem ou História da riqueza dos Estados Unidos não
participava da discussão nem tampouco tinha direito a opinar sobre o
imperialismo ianque. Entretanto, há pouco (2017) descobri mais um valioso livro
do autor que nos ajudou a analisar os Estados Unidos: Nós, o povo. A epopeia norte-americana. Uma potência imperialista
nunca possui - por definição - um desenvolvimento endógeno e, em consequência,
necessita sugar do mundo tudo que o processo de acumulação exige. Nesse livro,
Leo exibe a verdade elementar de todo império de maneira clara e fica fácil perceber
que os Estados Unidos necessitam da imigração permanente para fazer funcionar a
máquina imperialista de produção de riqueza.
A propósito da convenção do Partido Democrata
dos Estados Unidos concluída na quinta-feira, 22 de agosto, eu recordei o livro
de Huberman, no momento em que os democratas consagraram Kamala Harris como
candidata presidencial. Na prática, foi uma repetição da convenção que escolheu
Barak Obama porque também há 16 anos, a orientação da convenção e do partido foi
a reivindicação do "povo" (american
people). Nada de identitarismo! Os discursos de Michele, Obama e
Kamala foram a negação completa do beco identitário que alimentou Bernie
Sanders quando o senador pelo pequeno estado de Vermont enfrentou Hillary Clinton
e amargou uma derrota da qual jamais se recuperou. Um veranico, nada mais.
Entretanto, se não funcionou nas primárias democratas, a reivindicação
identitária representa um produto ideológico de exportação capaz de render
aliados para a potência capitalista e, de fato, foi terrivelmente fecundo para
a América Latina, um continente estratégico para a dominação imperialista.
Em seu discurso final, Kamala anunciou de forma
inequívoca "o privilégio e orgulho de ser americana". Noutro trecho,
recordando sua atividade como juíza, repetiu que em toda sua carreira "eu
só tive um cliente, o povo"; depois, marcou novamente que "os
americanos, sem distinção de gênero, raça e língua" são uma potência,
para, em consequência, declarar a origem de pai e mãe nascidos em outros
continentes como motivo para afirmar sua opção de alma; Kamala, de pai
jamaicano e mãe indiana e Barak Obama, de pai queniano e mãe americana,
representam em larga medida as origens do povo estadunidense: a força da
imigração que segue sendo uma potência para a riqueza do império e turbina seu
expansionismo no mundo. Ambos, cuja nomeação pelo Partido Democrata dista 16
anos, repetem a afirmação de algo essencial na sociedade gringa: a importância
estratégica da imigração e o valor supremo do nacionalismo. Ninguém -
rigorosamente ninguém - chegará à Casa Branca, se não for nacionalista de
profunda convicção, embora americano de primeira geração. Entretanto, o nacionalismo gringo é invisível
aos olhos latino-americanos porque a indústria cultural e a ideologia “from the
United States” rechaça o nacionalismo de todos os demais povos como doença muito
semelhante à lepra.
A convenção democrata relegou a reinvindicação
identitária para a esquina. Na prática, good bye indentitarismo!! A notícia ainda não chegou aqui
entre outras razões porque o sistema de corrupção e cooptação via fundos
medidos em milhares de dólares da Open Society, Fundação Ford, Fundação
Rockefeller, Embaixada, sindicatos filiados a FLCIO e do próprio Partido
Democrata - além é claro, do Departamento de Estado e das empresas
multinacionais - segue jorrando. Não são cifras bilionárias mas para as
condições de um país apoiado na superexploração da força de trabalho, bastam
algumas centenas de dólares ou alguns poucos milhões para reunir um batalhão
importante nas universidades, nos partidos, nos sindicatos e nos chamados
"movimento sociais".
A receita de Kamala, portanto, é a repetição da
fórmula vitoriosa de Barak Obama. O primeiro negro na presidência dos EUA
jamais flertou com o identitarismo desde seu primeiro mandato como senador; ao
contrário, para chegar ao senado, derrotou sem piedade um antigo líder negro identitário.
Na disputa presidencial, afirmava sem vacilação ou concessão o valor supremo de
ser americano. Venceu duas
presidenciais e ensinou a lição com tanta eficácia que obrigou os democratas a
reescrever o programa do partido. Há coisas que não se dizem, se fazem, ensina
uma antiga lição revisionista.
Nos Estados Unidos, a força da ideologia nas
condições de um país imperialista, consiste em afirmar o desafio de todo
imigrante: tornar-se americano!
No discurso democrata, é preciso agregar o horizonte da classe média, pois sem
ela não se alcança a promessa do nível de consumo típico da sociedade opulenta.
Aos deserdados, especialmente a pequena população negra (12,4% no Censo de
2021), restou a marginalidade e a invenção do identitarismo como forma específica de integração à
ordem burguesa. Na medida em que a potência industrial estadunidense foi
diminuindo por várias razões que aqui não posso enumerar, o Partido Democrata
valorizou a agenda identitária, mas amargou derrotas eleitorais sucessivas para
os republicanos, embora pudesse garantir alguns deputados e senadores para
fazer maioria no Congresso.
Em resumo, o identitarismo é mais do que nunca
apenas um produto ideológico de exportação da potência imperialista que, entre
nós, garante fidelidades políticas e nos divide profundamente. Não mais o povo
brasileiro (Darcy Ribeiro) mas o "povo negro" (Abdias do Nascimento).
Não mais a saga brasileira de João Ubaldo Ribeiro, mas a "diáspora
africana" de Djamila. Não mais o povo
novo, mas a valorização fictícia dos "ancestrais". No conjunto da
obra, a reivindicação identitária não passa, nas condições nacionais, de um
meio de mobilidade social num país marcado pela superexploração da força de
trabalho. Entretanto, como em toda mobilidade social, a fórmula funciona para
poucos e, num país dependente e subdesenvolvido, para pouquíssimos. Com uma boa
dose de cinismo e outra de malabarismo acadêmico (anti-intelectual), pode
simular alguma virtude política por um tempo, mas tem fôlego curto.
No Brasil, a boa nova democrata foi transmitida
ao vivo pela CNN em inglês (em trechos pela filial em português), mas ainda não
alcançou a militância virtual dominante na esquerda liberal, especialmente aquela
apegada à concepção parlamentar de política. Por aqui, a reivindicação
identitária ainda fomenta fidelidade eleitoral porque o mercado de trabalho é
uma vala interminável do sofrimento de milhões de brasileiros. Não obstante,
está com os dias contados. Ademais, a força da direita ultra liberal conta com
o identitarismo para seguir na toada da moral conservadora que simplesmente não
pode ser vencida pelos apelos "tolerantes" da moral
"progressista". Nada há de conservador no DNA brasileiro! Basta alguns
átomos de lucidez para "valorizar a família, a moral, deus e os bons
costumes" nessa selva terrível reservada aos trabalhadores. As
instituições de uma miragem do estado de bem estar social se degradam sob o comando
da esquerda liberal - Lula e seu governo petucano - razão suficiente para explicar o recurso de muitos trabalhadores aos deuses e à família. Elementar!
As razões da crise identitária são inequívocas, embora ainda dissimuladas. Ao contrário de alguns anos atrás, já é possível ver as fissuras no interior desse mangue identitário e de maneira mais clara muita gente balbuciando nas redes digitais reparos aqui e ali ao identitarismo. No Rio, uma candidata a vereadora do PSOL afirma que "não basta ser mulher" é preciso ser "combativa". Logo ouviremos "não basta ser negro" e "não basta ser gay"... É um reconhecimento ainda molecular do fracasso de uma política que alimentou o liberalismo de esquerda como se a agenda identitária fosse uma espécie de antessala da consciência crítica e não a cristalização da consciência ingênua em favor da classe dominante.
Em consequência, a agenda das
"opressões" já não possui o antigo poder de sedução não somente por
força da oposição da ultradireita, mas sobretudo pelo raquitismo do governo
petucano e sua completa adesão ao programa ultraliberal mais do que visível no
terceiro mandato de Lula. É óbvio que o distanciamento ainda tímido em relação
ao identitarismo por parte de autodeclarados socialistas e comunistas ao
simular o "desencanto" e, em outros casos, até mesmo enorme
"surpresa" com a orientação "neoliberal" do governo
Lula/Alckmin apenas começaram. De resto, os desavisados e oportunistas que
apostaram suas fichas na defesa de Lula "contra o fascismo" (no
primeiro ou no segundo turno da última disputa presidencial), agora reconhecem
não somente o caráter filantrópico e impotente das políticas públicas mas o
fomento do capitalismo dependente rentístico nas questões estratégicas de
Estado por um governo supostamente eleito
para fazer exatamente o contrário!
Ocorre que a crise terminal do identitarismo
entre nós é medida - como quase tudo aqui - como expressão do resultado das
urnas. O voto é o critério miseravelmente definitivo. Não importa que algumas
"conquistas eleitorais" ocorram mesmo se a correlação de forças se apresente
cada dia mais favorável à direita e o horizonte se revele terrível; mas se
alguns mandatos garantem o espaço cinicamente chamado de
"resistência", o identitarismo se justifica e ainda navega na
tormenta como se não tivéssemos outra opção. A consciência e organização dos
trabalhadores diminui - não importa - se um lugar no parlamento estiver
assegurado. Ademais, a caça de "likes" e "views" com o
consequente fomento das "tretas" eletrônicas ainda justificam o
"debate" sobre as questões identitárias, mas não passam de reforço
consciente ou não da ideologia burguesa importada dos EUA.
Como anunciei há meses, a vitória eleitoral e
ideológica da direita nas eleições municipais esta assegurada. Em quantidade de
votos, tudo indica que sairá muito fortalecida e, talvez, com alguma folga; mas
a vitória ideológica está igualmente garantida não somente porque não existe
candidatura de esquerda com firmeza política e ideológica em nenhuma capital
importante do país, mas porque o deboche
e escracho contra o processo eleitoral, é eficaz para desacreditar as eleições ao mesmo
tempo em que seus protagonistas lutam pelo voto!! O exemplo mais claro é um tal Pablo
Marçal em São Paulo, a despeito de seu êxito ou fracasso eleitoral no próxima dia
6 de outubro. Portanto, a atuação de Marçal assinalada como "bizarra"
ou mesmo "criminosa" pela esquerda liberal, não passa de uma
declaração de impotência diante da ofensiva burguesa em curso desde 2018. Nesse
contexto, a reivindicação de um "debate sério" sobre políticas
públicas no processo eleitoral destinadas à melhoria do transporte, da saúde,
da educação, da cultura, etc., é declaração de impotência e falta de leitura
crítica do processo político em seu conjunto. Ora, quem pode realizar tantas
promessas de melhoria senão apenas e exclusivamente aqueles municípios
financiadas pelos royalties do petróleo? Ademais, no contexto do capitalismo
dependente rentístico, quais as alternativas reais de uma gestão democrática da
ordem burguesa em escala municipal? De resto, grande parte do "debate
público" ocorre nas redes digitais, um suculento negócio que alterou
radicalmente as normas legais de uma eleição considerada até ontem como
expressão da democracia liberal.
Voltemos à convenção do Partido Democrata.
Nos EUA, a convenção democrata recordou
Huberman: o povo estadunidense se
faz com "gente de fora". Não apenas os pais do Obama e Kamala, mas
milhões de trabalhadores que fugindo do subdesenvolvimento e das guerras
promovidas pelo imperialismo criam, com seu trabalho, submetido à alta taxa de
exploração, a riqueza capitalista em favor dos monopólios. A contrapartida é a
promessa de um green card e
o reconhecimento de cidadania para todos aqueles que sabem por sofrimento que
ninguém nasce americano,
mas se torna americano.
Logo, o sistema ideológico e a força das instituições (polícia, universidades,
sistema de saúde etc.) os tornará cativos do nacionalismo estadunidense a ponto
de recusar sua própria origem. Portanto, nada de apreço pela
"diáspora" pois o elogio desmedido às origens é um bloqueio objetivo
ao combustível da potência imperialista: o nacionalismo! Lá, como aqui, o
lamento extemporâneo à diáspora e aos ancestrais, é artigo pra acadêmicos...
Obama declarou na convenção que os EUA não
deveriam ser a polícia do mundo, mas Kamala não pode cultivar as bondades reservadas aos ex-presidentes e, de maneira lógica, anunciou que seu país possui a força armada
"mais forte e letal" destinadas a enfrentar as ameaças desse mundo incerto. Em
política externa, o acordo entre republicanos e democratas é mais do que visível
pois ninguém brinca de ser imperialista no sistema capitalista.
O Partido Democrata está mudando de pele para
ficar com a mesma função no sistema político estadunidense. O discurso de
Kamala afirmou que o interesse americano está "acima dos partidos"
não somente para captar os republicanos descontentes com o domínio de Trump no tradicional
adversário dos democratas, mas sobretudo para angariar a simpatia de milhões
que desacreditam abertamente na "democracia americana". Ao espetar Trump,
acusando-o de estar mais preocupado com sua riqueza e seus amigos do que com o
povo americano, Kamala seguiu a orientação de Obama para quem o republicano
"está focado no seu próprio interesse". O recado serve para Trump,
mas também para os antigos interesses
especiais (trabalhadores, latinos e negros), que, excluídos na
administração Clinton, ganharam posteriormente espaço renovado via
identitarismo. Porém, agora, precisam ser devidamente arquivados. Portanto, os
temas dominantes na convenção do Partido e no discurso de Kamala foram a saúde
pública, a escola, os baixos salários, o respeito aos direitos humanos -
incluindo, os imigrantes que devem receber um tratamento "humano". O
escritor mexicano Carlos Montemayor - autor de Guerra en el paraíso -, elucidou de maneira lapidar o segredo da
xenofobia de Trump quando escreveu há muitos anos: nos Estados Unidos, a
economia capitalista "necessita nosso trabalho, mas não nos querem!"
Eis o núcleo racional da xenofobia que não se pode encontrar em questões
culturais ou num racismo abstrato mas na economia política!
A troca de Biden por Kamala não assegura a vitória dos democratas, a despeito do entusiasmo da convenção embalada nas pesquisas de opinião iniciais e dos recordes de arrecadação de fundos milionários dos Super PACs. Entretanto, a redefinição programática do Partido Democrata já ocorreu na prática. O identitarismo se manterá um mero produto de exportação da indústria cultural estadunidense, com capacidade de cooptação por algum tempo de certos setores marginais no Brasil (e América Latina) em favor do imperialismo, mas seu poder de iludir já é uma peça de museu. A notícia chegará aqui com algum atraso não por força da enorme ignorância sobre as acirradas disputas eleitorais no interior da potência imperialista, mas em função dos limites ideológicos e políticos da esquerda liberal que aqui habita. Até lá, os reparos ao identitarismo e à sua cumplicidade objetiva com a opressão e exploração de milhões de trabalhadores na periferia capitalista se manifestará a conta-gotas. Mas sua queda no Brasil, sob outras circunstâncias e diante de outras exigências, é também inevitável.
Revisão: Junia Zaidan