segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A marcha dos democratas

 As manifestações realizadas em várias capitais do país no domingo (21/09) despertaram otimismo e surpresa nas filas da esquerda liberal. O registro otimista fica por conta dos defensores "críticos" do governo Lula e constitui prova incontestável de uma "tese" simples: enquanto o presidente alega que não há correlação de forças suficiente para dar um giro à esquerda no governo petucano (Lula/Alckmin), as manifestações teriam, ao contrário, revelado que, sempre e quando convocado, o povo responderia e tudo poderia ser diferente. Nesse caso, as manifestações "provam" sem contestação que um fósforo num barril de pólvora poderia jogar tudo pelos ares! Ou ainda que água e azeite não se misturam! Não é uma revelação?

A surpresa anuncia que o número de participantes em todo o país - na Avenida Paulista o protesto reuniu segundo o método uspiano 42,4 mil pessoas - abriu as alamedas para a volta da esquerda às ruas. Um novo tempo, uma nova conjuntura. A propósito de números, recordemos que no último 7 de setembro, Malafaia, Tarcísio e a direita reuniram no mesmo local 42,2 mil pessoas, que, segundo a análise da esquerda liberal, revelaria que a ofensiva político-ideológica da direita encontrava seus limites e não mais exibia a vitalidade de outros tempos - quando em fevereiro de 2024 reuniu nada menos que 185 mil segundo o Monitor da USP - marcando, finalmente, inevitável perda de vitalidade e capacidade de mobilização social. Nesse contexto, a manifestação da esquerda liberal alcançou ontem o patamar mais baixo da direita liberal. Na prática, superou-a por 200 participantes.

Entretanto, o que de fato motivou a manifestação de ontem? A resposta é simples: a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Blindagem e o projeto de anistia negociado no interior do covil de ladrões destinado a livrar Bolsonaro e seus comparsas militares da cadeia. A primeira pretende nada menos do que proteger os parlamentares das ações do STF e exigiria autorização do parlamento para que qualquer um de seus membros seja processado não importando a natureza do crime cometido. A anistia costurada nos bastidores é derivada também da ofensiva da direita e está destinada a livrar Bolsonaro e seus militares da cadeia ou pelo menos conquistar a drástica redução de suas penas determinadas pelo STF sob comando de Alexandre de Moraes.

Ninguém pode omitir que, no covil de ladrões, a proposta da PEC da Bandidagem logrou 12 votos do PT (além de 4 abstenções), e contou também com vários votos dos partidos da "base aliada" de Lula, como o PDT, o PSB... De resto, nada surpreendente, a rejeição contou com o voto e militância até mesmo de parlamentares de partidos da direita (Novo e Liberal) que não vacilaram desde o primeiro momento em votar contra a impunidade. O texto aprovado na Câmara em dois turnos contou com 353 votos a favor e apenas 134 contra no primeiro turno e 344 favoráveis e 133 contrários no segundo turno. Uma "lavada" em favor da bandidagem! Já no dia 20 - antes mesmo do protesto de domingo (21 de setembro) - vários deputados comunicaram seu "erro" e, diante das críticas nas redes, anunciaram a boa nova: mudaram sua posição, votarão contra a medida e, portadores de nova consciência, trabalharão para sua derrota. Após as manifestações de ontem, é previsível que o ânimo parlamentar tenha mudado um pouco mais e novos "arrependimentos" apareçam.

O comando da esquerda liberal nas ruas foi e seguirá sendo do PT. O presidente do Partido se limitou a registar que a "posição majoritária do PT" foi de derrotar a PEC embora não tenha passado pela cabeça dos "dirigentes" o tradicional recurso à disciplina partidária com o usual recurso de "fechar questão". Após as manifestações de ontem em SP, Edinho se limitou a registrar seu apoio sem, contudo, convocar seus filiados para a manifestação! Na verdade, a convocatória dos atos de ontem partiu de artistas, organizações populares, Ongs e/ou parlamentares "rebeldes" da base da esquerda liberal e, especialmente, da firme determinação da Globo e CNN em praticar um jornalismo que manufatura a opinião pública contra todos aqueles que pretendem sabotar o estado democrático de direito. Lula, fiel à sua trajetória e seus compromissos com a classe dominante, tampouco convocou o povo e se limitou, post festum, ao registro numa rede digital que estava "ao lado do povo brasileiro. As manifestações de hoje - disse o presidente, NDO - demonstram que a população não quer impunidade, nem anistia. O congresso nacional deve se concentrar em medidas que tragam benefícios para o povo brasileiro". Enfim, o presidente se mantém fiel ao sistema político da república burguesa em sua crise terminal e nem mesmo diante de medidas extremas da direita liberal se atreve a convocação popular. Zero surpresa!

Nas filas da esquerda liberal, entretanto, as ilusões reforçaram a consciência ingênua, especialmente entre seus "radicais" ou os chamados "críticos" do governo petucano. As ilusões não são propriamente ingênuas, pois exalam propósito: pretendem êxito as eleições parlamentares do próximo ano. Na prática, embora "críticos", estão todos filiadas ao "conceito" de Lula e da cúpula partidária petista que é preciso fazer maioria no congresso porque, como sabemos, a força que impede as reformas sociais destinadas a favorecer o povo encontram na câmara e no senado, sólida maioria contrária. Assim, reza o conto de fadas, o governo até pretende atender ao povo e avançar para reformas estruturais, mas não pode fazê-lo porque colheria derrotas e, no limite, estaria ameaçado de destituição. Nessa linha, o presidente não é um representante das classes dominantes, mas um refém da maioria parlamentar de "direita" que, na prática, impede conquistas sociais que o regime liberal burguês deveria oferecer ao povo. 

A natureza ultraliberal do governo petucano não entra em questão. Na realidade, os "críticos" de esquerda ainda acreditam que, de fato, o governo está em disputa ou, pior ainda, que a mobilização das ruas permitiria disputar a orientação do governo mesmo contra a convicção e compromisso liberais de Lula e Alckmin. Em consequência, agregaram à marcha dos democratas, outras bandeiras como, por exemplo, o fim da escala 6 x 1, a exigência da isenção de IR para quem ganha até 5 mil reais, a redução da taxa de juros, a tributação de lucros, dividentos, heranças e propriedade, entre outras medidas. Além, é claro, da reeleição de Lula em 2026, sem a qual o mundo desabaria. A motivação essencial dos atos de ontem foi, sem dúvida alguma, o protesto contra a PEC da Bandidagem e da Anistia a Bolsonaro. Portanto, o conflito permanece cativo da oposição entre o STF e o covil de ladrões que atende pelo generoso nome de Congresso Nacional. A despeito do otimismo e da alegria de seus principais personagens encantados e surpreendidos com a própria presença nas ruas, a esquerda liberal não conseguiu e não conseguirá criar um movimento de massas sem a ruptura com o atual governo. Ora, o governo, por sua parte, nem mesmo em pesadelo pretende romper com a orientação "neoliberal" da política econômica, o apego ao conceito de segurança hemisférica dos Estados Unidos que orienta a política externa aqui e menos ainda a ruptura ou a busca de uma fissura na coesão burguesa que mantém a hegemonia rentística do desenvolvimento capitalista no Brasil.

O governo petucano apenas reproduz as forças inerentes ao desenvolvimento capitalista rentístico preservando as formas democráticas de uma república burguesa que é incapaz de praticar as reformas no sistema político (financiamento dos partidos, independência e harmonia entre os poderes, eleições razoavelmente limpas e democráticas, liberdade de expressão cativa dos monopólios de comunicação, etc). Nessa linha, simulando a defesa da soberania, é beneficiado pela ofensiva da direita ultra liberal encabeçada pelo protofascista Bolsonaro cuja atuação acentua a corrupção parlamentar, degrada a sacrossanta liturgia inerente ao espirito republicano em crise terminal, exibe a vassalagem ao imperialismo estadunidense como virtude patriótica e não vacila em romper com as formas tradicionais de representação. O "fôlego" da estratégia da esquerda liberal consiste, portanto, em evitar as formas mais bárbaras anunciadas pela direita liberal como se fosse possível reconstituir as virtudes da república burguesa e de sua prática parlamentar corrupta. Conclusão: quando exibe "vitalidade" nas ruas não faz menos que preservar o sistema político, a reprodução ampliada da dependência e a miséria e exploração de nosso povo sem tocar nos nervos da dominação burguesa e sem abrir um novo horizonte para as lutas das maiorias oprimidas e exploradas.

A questão democrática é antigo problema para a esquerda. O extrato liberal amplamente dominante em suas filas jamais tocou no nervo da dominação burguesa e se limita a preservação do regime liberal burguês. Na verdade, nas condições do capitalismo dependente - e com mais razão na sua fase rentística - a eventual vitalidade da esquerda liberal implicaria colocar em xeque o regime político com todas as reivindicações da classe trabalhadora, que, sabemos, não podem ser atendidas nos marcos da periferia capitalista latino-americana. Eis a dialética da revolução na ordem e contra a ordem burguesa emanada das grandes lutas históricas da década de sessenta do século passado, esquecida pela rendição ideológica e o oportunismo político inerentes à concepção parlamentar de política da esquerda liberal e a redução do conflito de classes ao moralismo filantrópico, incapaz sequer de mitigar os efeitos mais perversos e desumanos a que está submetida a imensa maioria dos trabalhadores. 

Finalmente, uma palavra sobre o delírio provocado pela volta da esquerda liberal às ruas. Em plena campanha para seu regresso ao parlamento, José Dirceu interpretou as manifestações de ontem como expressão da "rebelião da juventude" e, de olho nas eleições parlamentares do próximo ano, bradou que o "Brasil mudou" com a jornada domingueira cujo destino é a mudança do "congresso nacional porque é o congresso que segura as reformas". Em síntese, uma "revolução pelo voto". A despeito de sua longa trajetória, o futuro deputado federal e membro do diretório nacional do PT não está imune as ilusões que afetam de maneira indiscriminada a absoluta maioria que ontem marchou pela democracia e em defesa do decoro parlamentar. Não ignoro que a eventual derrota da PEC da Bandidagem e da Anistia a Bolsonaro representará um fôlego adicional na disputa parlamentar e na eleição de jovens e antigos defensores da democracia e suas formas republicanas. Entretanto, tampouco essa "renovação" poderá livrá-los da aceleração da crise da república burguesa em seu curso cada dia mais violento; ademais, nenhum movimento de massas poderá emergir se não for dirigido contra o atual governo que seguirá praticando - agora com mais força e astúcia do que antes - a economia política do rentismo e a defesa das instituições burguesas cuja crise não pode evitar e muito menos superar em nome da democracia. A marcha dos democratas realizada nesse domingo não pode criar um movimento de massas porque essencialmente pretendia fortalecer o atual governo.

Revisão: Junia Zaidan

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