O Brasil nunca
conquistou uma democracia plena. O regime político oscila entre a ditadura e a
democracia restringida. Uma democracia onde a maioria efetivamente tenha poder
foi historicamente descartada e não figura no horizonte do pacto de classes que
atualmente nos governa. No contexto de uma democracia restringida, a linha dominante
é a conciliação de classe que assegura um paraíso terrenal para a classe
dominante e algo muito semelhante ao inferno para as classes populares. Contudo,
não elimina – ao contrário, exige – uma considerável dose de violência como
ficou demonstrado nas jornadas de protesto de junho. A eleição de Lula em 2002,
após oito anos de aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento
praticado por Fernando Henrique Cardoso, representava um desafio na política
brasileira, pois o presidente João Goulart foi, de fato, o último político que
pretendia governador afinado com os trabalhadores a partir de uma agenda
reformista que era ao mesmo tempo virtude e limitação.
Quando Lula
venceu, até mesmo setores da classe dominante julgavam que teriam que perder
algo. Após a estafa praticada por FHC, o mais amplo assalto ao estado que temos
notícias na política brasileira, a maioria do povo esperava que com o novo
presidente, “nossa hora chegou”. Em consequência, esperavam não apenas
políticas públicas fortes (inversão das prioridades), mas, sobretudo,
participação popular, influencia direta no governo. Lula, o PT e a CUT, queriam
o contrário: aceitaram a democracia restringida e assumiram plenamente a
tradição conciliatória brasileira desde uma perspectiva da classe dominante. O
primeiro mandato, conquistado somente no segundo turno, foi mesmo conservador. No
segundo, na mesma medida em que ampliava programas sociais também sepultava
para sempre as possibilidades de participação popular. O orçamento
participativo, peça chave de propaganda do PT e instrumento através do qual,
setores populares decidiam aspectos da política pública, foi simplesmente
abandonado. Esta é, com efeito, a principal característica do petismo no
governo: jamais convocou o povo para uma
batalha, para uma luta. Qualquer batalha, qualquer luta.
O acomodamento à ordem burguesa não se limitou ao abandono de práticas democratizantes (orçamento participativo) – fato que terminou por limitar drasticamente a promessa de “inverter prioridades” – mas avançou noutra direção mais perversa. Lula e Dilma praticaram um enfraquecimento voluntário do presidencialismo, cujo resultado não poderia ser outro que fortalecer ainda mais o pacto de classe que organiza o Plano Real em prejuízo de uma política democratizante e, como gosta de afirmar a esquerda liberal, a prática republicana.
O presidencialismo no Brasil possui profunda legitimidade popular. Não por acaso, o parlamentarismo sempre surgiu como golpe das classes dominantes contra ameaça de democratização. Contudo, foi derrotado duas vezes por meio de plebiscito popular! Na última, a maioria dos partidos, a totalidade da imprensa, os acadêmicos, eram parlamentarista e ainda assim levaram uma sova. Esta é uma das razões pelas quais existe na ampla maioria do povo enorme desconfiança no parlamento, como podemos novamente observar depois das jornadas de junho. Contudo, a presidente Dilma decidiu fortalecer o parlamento! Qual a origem desta renuncia voluntária, desta desatualizada e inédita servidão voluntária? Qualquer coisa, menos ingenuidade. Ocorre que a presidente – como de resto a totalidade da classe dominante – precisava tirar o povo da rua. No fundo, a presidente Dilma sabia que em nossa tradição, por mais que o problema era na origem “municipal”, a política nacional, razão pela qual o descontentamento popular atingiria todos, especialmente a presidência da república. O povo com sabedoria cravou um limite nos dias de vários prefeitos e governadores. Na prática, podemos afirmar que a “política de governadores” embutida no pacto de classe que é sustentado pelo Planalto, naufragou, especialmente quando o prestígio dos governadores do Rio de Janeiro e São Paulo saíram gravemente comprometidos do último grande protesto. Irremediavelmente comprometido, diria! A presidente também possui consciência que a raiz de todos os males é precisamente aquele pacto de classe – e a política econômica subjacente – que governa o país há 18 anos. Em consequência, tinha plena consciência que o prejuízo seria considerável. Não à toa Dilma recorreu em primeiro lugar à FHC – antes mesmo de Lula! – e “sugeriu”, além da “constituinte exclusiva”, um plebiscito ao congresso nacional na esperança de que todos dividiriam o inexorável prejuízo. A proposta não era em nada ousada, mas tinha a “virtude” de alertar aos nobres parlamentares de que era preciso fazer algo antes que fosse tarde demais. Nada muito ousado. Na prática, a proposta presidencial acolhia o clamor popular para impulsionar as “reforminhas” que o parlamento cozinhava há anos e representa precisamente a pauta que afiança o consórcio petucano, esta aliança estratégica entre petistas e tucanos de alternância e condução da ordem burguesa.
Nas jornadas de junho, cada um fez seu papel. A presidente sugeriu ao congresso nacional a constituinte exclusiva e o plebiscito. O congresso nacional, tão logo as ruas esvaziaram, atuou de maneira exemplar: nada poderá ser feito para as próximas eleições. O Supremo, o Tribunal Eleitoral, o senado, a câmara de deputados, a ordem de advogados – todos – em uníssono, preocupados e empenhados com a modelação das vozes populares nos poderes da república deixaram claro que no curto prazo nada poderá ser feito. Por sua vez a presidente Dilma praticou o chamado “presidencialismo de coalizão”, a tese liberal que nenhum presidente após 1988 deixou de praticar. Naquela época, e em menor escala agora, o propósito do “presidencialismo de coalização” é sempre o mesmo: diminuir a intensidade do conflito social em favor da classe dominante, esterilizá-lo ao máximo e traduzi-lo quando possível em qualquer fórmula parlamentar. O “mudancismo” que predominou na Constituinte de 1988 era expressão acabada da política destinada a evitar um ajuste de contas com a ditadura e representou um seguro eficiente contra qualquer participação popular na chamada Nova República; não por acaso, o “teórico” do “mudancismo” era precisamente Fernando Henrique Cardoso contra o potencial transformador da Revolução Democrática que se expressou no movimento das “diretas já”, campanha devidamente arquivada e substituída pelo colégio eleitoral, via que sepultou o voto direto do povo. Por isso, a pauta do plebiscito sugerida pela presidente não era coisa de outro mundo, mas a conhecida venda de gato por lebre: o povo, de maneira espontânea, queria influenciar diretamente nas grandes decisões e o que lhe apresentaram foi o aperfeiçoamento do sistema político que o oprime. Afinal, alguém pode mesmo acreditar que o financiamento público de campanha eleitoral, a adoção do voto distrital, a fidelidade partidária, o fim do suplemente de senador entre outras bijuterias poderiam mesmo dar legitimidade às políticas da república apodrecida?
É neste contexto que a renuncia da presidente Dilma ao exercício do presidencialismo – com seus poderes e responsabilidades respectivas – é de extrema gravidade. Também é ilustrativo da farsa do “presidencialismo de coalizão” o fato de que foi precisamente o vice-presidente da república, Michel Temer, o responsável por condenar a proposta do plebiscito! Afinal, se o “presidencialismo de coalizão” não funciona nos momentos cruciais, por que razão mantê-lo? A presidente e o consórcio petucano que ela administra, pretende manter as coisas exatamente como estão, inibindo qualquer movimento que possa terminar numa Revolução Democrática que finalmente abriria o país para as grandes transformações que o povo ainda espontaneamente exige. Neste contexto, não se trata de eliminar o segundo suplente de senador, mas de abolir o senado e instituir um parlamento unicameral! Não se trata de propor uma “constituinte exclusiva” – já devidamente arquivada – mas de exercer as possibilidades outorgadas pela constituição para fazer valer o presidencialismo na sua plenitude já! Não se trata de fortalecer o “presidencialismo de coalizão” – que agora, no governo petista, inclui até mesmo a oposição e não somente a “base aliada” – mas de erradica-lo para sempre. Tampouco se trata de privilegiar o “diálogo” com o parlamento, mas de exercer a legítima pressão sobre ele, pois as grandes manifestações mostraram – como agora até mesmo os céticos podem observar – que somente assim ele pode se mover. Enfim, num país administrado pelo abuso das medidas provisórias, editadas na sua absoluta maioria em aberta violação à constituição, a simulação do “diálogo” presidencial com o parlamento e o suposto respeito à harmonia entre os poderes é menos que uma farsa: é uma tragédia que perpetua os poderes da classe dominante e seus privilégios.
Os defensores (idealistas) da presidente afirmam que ela poderia convocar o povo para novas manifestações em favor de uma ampla reforma política e não mera alteração na legislação eleitoral; também indicam que a presidente poderia mudar a orientação da política econômica já, ainda que tenha optado por avançar na direção de medidas ainda mais conservadoras; poderia, ademais, buscar o apoio popular para aproveitar a mudança na correlação de forças na sociedade em favor de um programa mais ousado para o que resta de seu mandato, mas optou por seguir na linha de trabalhar “construtivamente” com o congresso nacional; repetem que a presidente poderia mudar a política econômica, mas segue cada dia mais aferrada a ortodoxia neoliberal, desnacionalizando o petróleo, privatizando portos, elevando as taxas de juros e concedendo migalhas ao social como ficou evidente no encontro com os prefeitos de todo país. Inutilmente tentam ocultar-se no que o governo poderia ser para evitar a necessária racionalização daquilo que ele realmente é. Talvez este comportamento explique o fato de que as manifestações do dia nacional de paralisação (11 de julho) foram infinitamente menos fortes que o protesto “espontâneo” originado pelo Movimento Passe Livre, ainda que sua pauta era mais precisa e “histórica”. A tentativa de reconectar “os movimentos sociais” com o governo Dilma falhou rotundamente! Ainda subsiste, certamente, parte da fidelidade eleitoral em relação ao governo da presidente, mas não mais a capacidade de mobilização que agora somente se manifesta contra o governo.
Estes novos “idealistas” esquecem que o tempo no qual as classes
subalternas supunham que “ruim com Dilma, pior sem ela” foi, finalmente,
superado. No novo cenário, aberto pelas jornadas de junho, os movimentos
sociais, o sindicalismo combativo e independente, os intelectuais livres e os
partidos de esquerda (PSOL, PSTU, PCO e PCB) devem alimentar sem vacilações um
novo radicalismo político destinado a passar a limpo a República. A “crise da
democracia” – surrado bordão do liberalismo novamente utilizado para “explicar”
as jornadas de junho – não pode ser resolvida com as parcas medidas aprovadas
no parlamento, com os pactos sugeridos pela presidente ou ainda com a
“legitimidade” do novo governo que elegeremos em 2014. Agora, ao contrário de
outras épocas, ficou bastante claro pra milhões de pessoas que somente uma
Revolução Democrática destinada a afirmar a força das maiorias, aqui e agora,
poderá abrir caminho pra um novo período histórico em que a simulação
democrática, o eterno pacto de classe que perpetua os privilégios de classe e a
dependência do país, não tenha mais lugar nem mais legitimidade entre nós.
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