sexta-feira, 2 de maio de 2025

Sobre ditadura e democracia

                                        "O amor, mãe, não é amor ridículo pela terra, nem à grama que nossas  plantas pisam. É o ódio insaciável a quem a oprime. É o rancor eterno a quem a ataca"

José Martí


As ilusões liberais burguesas afirmam a democracia como um valor universal embora as classes dominantes violem o postulado de maneira sistemática. Nos países capitalistas centrais – especialmente naqueles de histórico imperialista como os Estados Unidos ou a Inglaterra – o sistema político está longe de ser considerado uma democracia porque um sistema eleitoral não assegura virtudes capaz de efetivamente respeitar a vontade popular. Ademais, após o voto, há ainda o caráter de classe do Estado e suas instituições que se movem orientadas por interesses que passam bem distantes das necessidades das maiorias.

Na periferia capitalista, nos países dependentes e subdesenvolvidos, não é possível aceitar as teses liberais mesmo quando se apresentam de forma educada ou ilustrada pois o regime político liberal burguês é incapaz de assegurar as condições mínimas de cidadania para a maior parte da população. Tudo permanece na promessa durante décadas ou mesmo séculos!

Afinal, se a promessa liberal burguesa goza de simpatia popular, por que razão as ditaduras são recorrentes? No Brasil, a ditadura implantada pelo golpe militar de abril de 1964 nasceu por dupla determinação: de um lado emergiu como contrarrevolução diante das reformas de base do governo reformista de João Goulart; de outro, a partir dos interesses de segurança hemisférica dos Estados Unidos que não podem admitir qualquer modalidade de soberania numa área estratégica do domínio imperialista.

A despeito de sua longevidade, as causas e as lições de 21 anos de ditadura foram esquecidas. Atualmente, a juventude dominada pelo liberalismo – tanto à direita quanto à esquerda – possui escassa consciência das razões que levaram a ditadura de classe e menos ainda das transformações ocorridas naquele período. O governo reformista de João Goulart – reforma universitária, urbana, agrária e especialmente a lei de remessas de lucros que limitava as transferências das multinacionais – constituíram um bloco popular de enorme força que avançava em consciência e organização popular destinada a arrancar dos tribunais e do parlamento conquistas dentro dos marcos legais. As classes dominantes e a embaixada de Washington não vacilaram: o recurso a ditadura era o único meio de estancar a emergência do povo na História. Entre o 1 de abril de 64 e a eleição indireta de Tancredo Neves e janeiro de 1985, o desenvolvimento capitalista alterou sua qualidade. Durante a ditadura o desenvolvimento da burguesia industrial, comercial, agrária e especialmente bancária cresceu de maneira vertiginosa. O processo de urbanização foi intenso e o mercado de trabalho ampliou sob o tacão de ferro da superexploração da força de trabalho.

O regime liberal burguês atual, ao contrário daquele período de transição da ditadura de classe para um regime eleitoral, não goza em absoluto de prestígio popular. A democracia não pode ser confundida com um regime eleitoral! A democracia será sempre uma realidade histórica a ser conquistada pela luta e poder da maioria dos trabalhadores! O simples funcionamento de tribunais, a realização de eleições regulares, a alternância de presidentes da república está longe – bem longe! – de lograr a simpatia da maioria do povo. O que dizer da sacrossanta “liberdade de imprensa”? Ora, os monopólios televisivos – nacionais e estrangeiros – manufaturam a opinião pública segundo os interesses das grandes corporações. De fato, não há novidade, mas ignorância e cumplicidade do liberalismo de esquerda na análise do processo pois há quase um século (1933) Edward Bernays, a propósito do sistema político estadunidense, escreveu: “A nossa deve ser uma democracia de liderança administrada por uma minoria inteligente que saiba como disciplinar e guiar as massas”. Poderia ser mais claro? Afinal, o controle da opinião pública por meio dos monopólios de comunicação não realiza o objetivo com precisão? Aquele que dúvida ou acredita que com seu instagram ou canal de youtuber está influenciando algo na formação da consciência popular, deveria observar com mais cuidado o gradual fortalecimento dos interesses da classe dominante na economia, no parlamento, no judiciário, nas artes e na estética dominante, na escola básica e nas universidades!

Ademais, o empobrecimento da classe trabalhadora não pode ser superado pela filantropia que na prática ordena aquilo que a esquerda liberal chama de “políticas sociais”. De fato, um programa como Bolsa Família, para dar apenas um exemplo eloquente, considerado pela consciência ingênua como exemplo de solidariedade social durante os governos do PT foi mantido e até mesmo fortalecido nos 4 anos do protofascista Bolsonaro, o maior representante da direita. Por quê? Porque consumia menos de 0,5% do PIB enquanto o Estado destinava mais de 10% para pagamento da dívida interna, núcleo racional do rentismo organizado pela classe dominante e todas as frações de classe. No Brasil, mais de 90% dos trabalhadores recebem até 2,5 salários-mínimos! Como viver e garantir algum futuro para os trabalhadores nessas condições?

Nesse contexto, há que compreender a democracia liberal burguesa como um sistema de dominação e, em consequência, a luta política dos trabalhadores no seu interior deve colocar em xeque os interesses da classe dominante. É, portanto, uma luta nos marcos da ordem burguesa, mas contra a ordem burguesa! O atual sistema não possui capacidade de autorregeneração: acaso, há alguma iniciativa destinada a dar mais transparência ou legitimidade ao sistema eleitoral ou alguma reforma das instituições capaz de restaurar a fé pública no seu funcionamento?

A manutenção da democracia reduzida ao sistema eleitoral somente é possível e necessária porque as classes trabalhadoras sofrem com a letargia de sua consciência e grau de organização, resultado e suposto da hegemonia do liberalismo de esquerda em suas filas. Ainda assim, a direita liberal não vacila e a ofensiva em curso contra a “democracia” revela de maneira clara que vivemos sob a lógica de situações extremas a despeito da lentidão e aparente paralisia da política. Nesse contexto, conspira contra os interesses populares a reprodução das ilusões inerentes “a defesa da democracia” tal como tem sido praticada atualmente. A razão é elementar: quando as maiorias não confiam na democracia, a simples defesa do atual sistema não faz menos do que autorizar o liberalismo de direita na sua marcha em direção a qualquer regime de terrorismo de estado capaz de calibrar a violência de acordo com suas conveniências e necessidades. Não será, portanto, um magistrado como Alexandre de Morais, um guardião eficaz do regime liberal burguês; ao contrário, em cada ação desenvolvida pelo ministro, a direita liberal acusa nova violação do regime das liberdades abstratas e, em consequência, fortalece não somente suas convicções, mas a agitação de que o sistema político atual não poderia ser pior.

Ademais, a economia política do rentismo elaborada pelo Plano Real em 1994 – poucos anos após a aprovação da constituição de 1988 – suprimiu na prática as promessas de um estado de bem-estar social capaz de enfrentar e solucionar a “questão social” herdada da ditadura de classe concluída em 1985. Assim, desse então, governo após governo, não fizeram menos do que aprofundar a dependência e o subdesenvolvimento baseado em primeiro lugar na superexploração da força de trabalho. Alguém pode defender a cidadania quando a maioria absoluta da população está submetida a um regime de exploração e violência sem precedentes? O raquitismo científico e tecnológico, a degradação da cultura nacional sob o império da indústria cultural metropolitana, a incapacidade de controle das riquezas naturais e defesa do território, a degradação da vida urbana afundada na violência, a barbaridade do sistema carcerário que confina quase 1 milhão de trabalhadores em práticas cotidianas de tortura e violação de direitos elementares, a subnutrição de milhões, o imenso déficit habitacional que condena centenas de milhares às ruas das grandes cidades, a notável degradação e marginalidade do sistema público universitário, o subfinanciamento crônico do SUS, a marginalização completa da escola básica e elementar, entre tantos outros temas revela o quanto a democracia liberal é uma arma poderosa da classe dominante. No lado oposto, como expressão necessária do processo, a concentração da propriedade urbana e rural nas mão de poucos, a desnacionalização acelerada da produção em ramos estratégicos da economia, o avassalador domínio das multinacionais e a liberdade para remeter às matrizes lucros e dividendos, o acelerado e ininterrupto crescimento da dívida interna desde 1994 que destina bilhões de reais a cada ano para todas as frações de capitais, a supressão de direitos trabalhistas elementares em favor dos super lucros revela, até mesmo para os ingênuos, que no atual sistema não há saída para a maioria do povo.

O que fazer? Em primeiro lugar não alimentar ilusões! À falta eventual de alternativa eleitoral capaz de canalizar a ira popular para uma saída revolucionária não indica que o tempo das revoluções terminou. Ao contrário, indica apenas que a ira popular crescente na sociedade brasileira não encontra tradução no bordão liberal de “defesa da democracia”. Indica, portanto, que é preciso superar o horizonte do liberalismo tanto de direita – que pretende nos remeter a uma ditadura semelhante àquela de abril de 1964 – quanto o do liberalismo de esquerda – que insiste no aperfeiçoamento da prática eleitoral e nas promessas inúteis – sem tocar no regime de propriedade e nos pilares da dependência e do subdesenvolvimento.

De resto, é preciso trabalhar sistematicamente pelo aprimoramento do radicalismo político em favor da Revolução Brasileira como tarefa intelectual. Alguém testado pela História afirmou com razão que “sem teoria revolucionária, não há revolução”. A teoria tem sido sistematicamente desprezada nas universidades em favor de um estudo de natureza escolástica e manualesco que não é menos que uma peça de alienação e fonte de desprezo de nossos alunos. Com razão! Como gostar de um estudo que não está apegado a nossa realidade? Como elevar nosso interesse por temas que não tocam no nervo da dependência, do subdesenvolvimento, da falta de soberania, incapaz de redimir as maiorias de um sistema de exploração e violência? A tarefa intelectual, nessas circunstâncias, ganha uma dimensão essencialmente política. A separação entre o acadêmico e o político não é senão uma peça de alienação e uma arma da classe dominante. Os intelectuais honestos e os estudantes comprometidos com a possibilidade de agarrar o destino do país nas mãos possuem, aqui e agora, uma possibilidade valiosa de colocar sua energia e capacidade intelectual em favor das maiorias. É um tempo extraordinário!

Artigo publicado no jornal das relações internacionais "O canarinho" dos estundantes de RI da UFSC