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A derrota sem luta |
domingo, 10 de julho de 2022
O epílogo petucano
quarta-feira, 29 de junho de 2022
A esquerda liberal e as instituições burguesas: sobre a autoridade política do STF
Numa república em profunda crise não deixa de ser curioso ver e ouvir personagens e partidos que compõem a esquerda liberal reivindicando o bom funcionamento das instituições burguesas. Até agora, o clamor do espírito republicano confinado ao labirinto da República burguesa em crise, se resumia tão somente no bordão capaz de indicar algo errado e até mesmo lograr alguma simpatia diante da suposta anomalia: “é preciso acabar com a judicialização da política e também com a politização do judiciário!”. Na prática, com pálido verniz sociológico, políticos e dirigentes partidários reclamam da desordem atual exigindo a harmonia e independência entre os poderes como se fosse possível corrigir o mundo caótico em que estamos metidos com uma ou duas aulas do manual de Montesquieu. Entretanto, a crise possui raízes mais profundas e obviamente não pode ser corrigida com um breve curso republicano de boas maneiras, como pretendem os ideológicos liberais e também grande parte da imprensa burguesa.
O grito da esquerda liberal em defesa da harmonia e
independência dos poderes teve sua expressão mais eloquente no combate petista
contra a Operação Lava Jato conduzida pelo juiz Sérgio Moro – um office-boy dos
Estados Unidos – que, amparado na onda moralizante segundo a qual vivíamos uma profunda
crise de “valores”, atropelou todos e cada um dos ritos sagrados do direito
burguês em favor dos interesses imediatos da classe dominante; no entanto, esse
episódio da luta política no país tinha antecedentes igualmente importantes que
a consciência ingênua e o oportunismo político dos partidos da ordem esquecem com
imensa facilidade.
O roteiro dessa longa novela na qual a imprensa burguesa foi
decisiva não pode, de fato, permanecer no esquecimento, pois aqueceu o
noticiário e produziu malabarismos políticos nos partidos políticos e na
atividade parlamentar dignos de registro histórico.
A despeito da amnésia praticada pela esquerda liberal e sua
incurável memória curta, é de justiça observar que os malabarismos e
reviravoltas nos partidos e parlamentares foi acompanhado de igual
comportamento nos juízes e nas decisões de tribunais. Em setembro de 2015, por
exemplo, o ministro Gilmar Mendes, num seminário com Paulo Skaff (ex-presidente
da FIESP), anunciou, na forma de uma sentença, a natureza da crise do regime
político então em curso: “na verdade, o que se instalou no país nesses últimos
anos e está sendo revelado na Lava-Jato é um modelo de governança corrupta,
algo que merece um nome claro de cleptocracia. Veja o que fizeram com a
Petrobrás. Eles tinham se tornado donos da Petrobrás. Infelizmente para eles, e
felizmente para o Brasil, deu errado”.
Porém, já em dezembro de 2016 – com Dilma já fora
do governo – o ministro Mendes gira seus canhões na direção oposta: ataca
frontalmente as 10 medidas anticorrupção, elaboradas pela dupla Moro-Dallagnol,
e apresentadas pelo Ministério Público Federal ao parlamento. Naquela época, a
Associação dos Magistrados Brasileiros, baluarte da moral burguesa decadente,
denunciou o ministro Mendes acusando-o de fazer política e, em consequência,
indicou que o melhor caminho seria sua renúncia, sucedida da ocupação de um
posto de comentarista político em algum jornal! Antes disso, no dia 10 setembro
do mesmo ano, a imprensa anunciava um pedido de impedimento contra Gilmar
Mendes, no Senado da República, com a assinatura de eminentes advogados
alinhados com a esquerda liberal (Bandeira de Melo, Fábio Konder Comparato, etc.),
acusando-o de “gratidão ao PSDB” e manifesta “ojeriza ao PT” que, tal como
recomenda as leis objetivas da luta política, foi devidamente arquivado uma
semana depois pelo presidente do Senado – ex-aliado, ex-inimigo e na atualidade
aliado do PT, o senador Renan Calheiros.
Entretanto, não tardou muito (outubro de 2019) para que o mesmo Gilmar Mendes – considerado um inimigo mortal do petismo e da esquerda liberal – se transformasse, gradualmente, num “defensor da democracia e do Estado de direito” quando acusou Moro de atropelar as sacrossantas escrituras do rito jurídico burguês: “hoje se sabe, de maneira muito clara, e o Intercept está aí para confirmar e nunca foi desmentido, que usava-se a prisão provisória como elemento de tortura. E quem defende tortura não pode ter assento na Corte Constitucional. O Brasil viveu uma era de trevas no que diz respeito ao processo penal”. Num passe de mágica, Gilmar Mendes se transformou numa espécie de herói jurídico em defesa do bom funcionamento da República diante dos excessos cometidos por juízes, tribunais, políticos, etc.
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A destituição sob comando do STF |
Há, sem dúvida alguma, estreita relação entre
a adesão da esquerda brasileira à ordem burguesa e o protagonismo dos tribunais.
A precoce conversão da esquerda brasileira ao liberalismo – o nascimento da
esquerda liberal – confinou o protesto político das classes populares às
disputas eleitorais cada dia menos politizadas. Era comum na esquerda que
sobreviveu a ditadura a crença segundo a qual os processos eleitorais
representavam oportunidade para “politizar e organizar” o povo, especialmente
os trabalhadores. No entanto, basta observar o quanto esse postulado válido em
outras épocas foi gradual e inexoravelmente se transformando num movimento de
alienação e conformismo de amplos setores populares na exata medida em que a
busca desesperada pelo voto (orientado pelo cretinismo parlamentar) implicou no
rebaixamento cada dia mais evidente do horizonte socialista até seu virtual
desaparecimento. No lugar do combate nos marcos da ordem burguesa – mas contra
a ordem burguesa! – emergiu a enfadonha competição entre todos os partidos para
saber quem poderá melhor administrar a crise da República burguesa. Não foi por
acaso que o PT anunciou, ainda na época do sistema petucano, que o petismo administrava
melhor o Estado e a economia do que os tucanos, além, é claro, de apresentar
uma resposta, tímida e paliativa, aos dramas sociais das maiorias num país
regido pela superexploração da força de trabalho. Tampouco foi obra do azar a
rápida transição da oposição e crítica ao Plano Real que “estabilizou a
inflação” para o reconhecimento petista de que os tucanos deveriam ceder passo
para os responsáveis pelo “crescimento com distribuição de renda”, nos termos
da economia política burguesa inerente a um país dependente e subdesenvolvido.
No silêncio do “êxito” petista, especialmente
concentrado no segundo mandato de Lula, o processo de alienação das
organizações populares se consolidava e o movimento de massas cedia espaço para
as ilusões inerentes ao cretinismo parlamentar. Lula representou a exibição
mais eloquente do presidencialismo sem dentes para morder ao aderir, de maneira
desinibida, ao “presidencialismo de coalisão” inaugurado por um obscuro
sociólogo de simpatia tucana. Nos dois mandatos de FHC, quando o PT estava
ainda orientado por forte carga moralista e capitalizando o descontentamento
inerente as reformas “neoliberais” implementadas pelos tucanos, as negociatas
entre partidos políticos, a compra da emenda da reeleição, o toma-lá-dá-cá
entre o parlamento e o governo, era considerado um agir exclusivo dos “partidos
burgueses”. A vida demonstrou, mais cedo do que tarde, que a degradação
permanente do regime constitucional e a consequente corrupção da atividade
parlamentar não incluía apenas os “neoliberais”, mas, inexoravelmente,
alcançaria também os puros, inocentes e bem intencionados petistas, cujo
exemplo mais ilustrativo pode ser visto na trajetória e biografia de Antonio
Palocci, ex-ministro de economia de Lula e chefe da casa civil de Dilma.
No governo, a característica essencial da
esquerda liberal encabeçada pelo petismo (Lula e Dilma) consistia precisamente
em manter o povo longe das decisões estratégicas da economia e do Estado. O
partido nascido do protesto operário contra a ditadura, com a notável
contribuição da esquerda que combateu o regime militar de armas na mão,
abandonou a mobilização e politização das “bases” para se transformar numa
eficaz máquina eleitoral. Não devemos eludir o fundamental: o dilema de um
partido socialista num país periférico e dependente na América Latina – com
mais razão no Brasil – não consiste em estar “em contato com as bases e não as
abandonar jamais”, como ainda pretende de maneira cínica a esquerda católica
que apoiou Lula e o PT em tudo! Há algo mais valioso que o basismo alienante
não pode ocultar: somente o horizonte socialista e o combate feroz contra a
dominação burguesa poderiam abrir as portas para a redenção das massas sob o
capitalismo dependente e rentístico, e conceder, em duros combates, alguma dose
de “cidadania” à massa de oprimidos e explorados. O bordão que anuncia a “volta
às bases” oculta algo essencial: o que dizer para mobilizá-las?
Na ausência de um partido socialista ativo na
defesa da Revolução Brasileira e do movimento de massas, os tribunais ficaram
muito mais livres para decidir sobre a vida e a morte de milhões de brasileiros
da mesma forma que podiam arbitrar os conflitos de natureza política com mais
desenvoltura e autoridade. Ademais, não foram poucas as vezes que a esquerda
liberal em seu combate “contra o neoliberalismo” de FHC credenciou os tribunais
em nome da “defesa dos interesses dos trabalhadores”, recorrendo sem inibição
aos togados. O recurso ordinário aos tribunais em qualquer instância e por
qualquer causa se tornou a via privilegiada de “luta” da esquerda
liberal contra os “excessos” da burguesia na sua guerra de classes contra os
trabalhadores. De resto, a esquerda, outrora crítica da Constituição, logo
assumiu – pasmem! – a posição de ardorosa defensora da Carta Constitucional
diante da ofensiva burguesa que iniciou precisamente no mesmo dia em que,
finalmente, a carta magna foi aprovada pelo parlamento, em 5 de outubro de 1988.
Ora, a defesa das “conquistas sociais da constituição
de 88” não poderiam ser asseguradas pelos juízes da Suprema Corte mesmo quando
a maioria deles fosse indicada pelo PT. A profunda transformação do capitalismo
dependente em sua fase rentística produziu a metamorfose classista da
representação parlamentar, cada dia mais evidente, na medida que os
parlamentares são organicamente vinculados as distintas frações do capital e
sua autorreprodução eleitoral depende da decisão de banqueiros, latifundiários,
grandes comerciantes e industriais decadentes. Em consequência, o adjetivo
“centrão”, utilizado pela mídia burguesa e adotado sem reservas pela esquerda
liberal – PT, PCB, PC do B e PSOL – é tentativa ilusória e perigosa para
ocultar a afinidade entre os parlamentares e o grande capital como se, de fato,
o Congresso Nacional não fosse um covil de ladrões, mas apenas uma cesta de
maçãs comprometidas com algumas frutas podres. A progressão capitalista da
representação parlamentar também alcançou os tribunais, como não poderia deixar
de ocorrer. Nas últimas décadas, especialmente após a afirmação plena do
capitalismo rentístico, os tribunais avançaram na mesma linha do parlamento e
cada decisão da Corte não somente era incapaz de assegurar o recurso ingênuo
aos tribunais em defesa dos direitos trabalhistas por parte da esquerda liberal
mas, ao contrário, afirmava a legalidade da superexploração da força de
trabalho e o assalto a riqueza pública com voracidade semelhante àquela dos
parlamentares.
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Os burgueses e seu parlamento |
Nesse contexto, os sucessivos recursos da esquerda liberal aos tribunais, na vã esperança de bloquear o “avanço do neoliberalismo” no terreno das causas defendidas pelo grande capital, simplesmente não prosperaram; basta lembrar as autorizações para as privatizações (da Casa da Moeda às empresas da Petrobrás) e a absoluta indiferença diante de mais de 30 ações diretas de inconstitucionalidade (Adin) sobre as reformas trabalhistas, que são, todas elas, olimpicamente ignoradas pelos excelentíssimos ministros do STF. A concepção liberal de economia e a servidão dos juízes do STF às classes dominantes é a norma desde sempre naquele tribunal e pouco importa se seus membros foram indicados por Lula, Dilma ou Bolsonaro, pois todos são “terrivelmente pró capitalistas”. É possível observar de maneira clara que historicamente, de fato, não há crime contra a República que não teve a validação daquele tribunal. Portanto, é necessário esclarecer as razões pelas quais a esquerda liberal segue alimentando ilusões no sistema de justiça burguês. Portanto, basta realizar o inventário das sucessivas derrotas dos trabalhadores para sentenciar que a “luta nos tribunais” não conseguiu impedir a superexploração da força de trabalho, sustento dos lucros extraordinários aos capitalistas da coesão burguesa, que decide a sorte de todos os governos desde 1994.
Ao contrário das ilusões produzidas diariamente
pela esquerda liberal, derivadas da crença na justiça nos marcos da ordem
burguesa, todos os meses os tribunais – especialmente o STF – revela seu
caráter de classe e invariavelmente decidem matéria banhada em cifras que, na
prática, implica no assalto ao Estado e a transferência de bilhões de reais para
o caixa dos capitalistas. Todos os meses, ano após ano, o STF decide em favor
dos capitalistas em matéria tributária, financeira, cambial e trabalhista!
Bilhões e bilhões de reais são destinados, por vias distintas, aos capitalistas,
revelando, até mesmo para os neófitos, o caráter de classe das decisões de um
tribunal composto majoritariamente por ministros indicados pelo PT. A
propósito, pouco importa a origem de classe e menos ainda a nomeação
presidencial, pois os ministros votam invariavelmente nas questões essenciais
com maioria folgada. Ora, basta recordar a chamada “tese do século” na qual o
STF decidiu em favor dos capitalistas dívidas tributárias que se
transformaram em créditos tributários numa decisão que não recebeu
desaprovação da esquerda liberal; ao contrário, a reação da esquerda liberal
foi de completo silêncio sobre cifras que não poderiam ser ignoradas e que
relevam a essência capitalista daquele tribunal. Não conheço sequer uma
postagem num aplicativo digital de deputado ou líder de partido da esquerda
liberal (instagram, face, twitter, “lives”, etc.) protestando contra esse
mecanismo de assalto ao Estado pela via do STF.
O Instituto Brasileiro de Planejamento e
Tributação (IBPT) calculou que a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e
da Cofins poderia chegar a R$ 587 bilhões de reais. No entanto, a chamada
“modulação dos efeitos” da decisão do STF, reivindicada por Paulo Guedes, que
“mitigaria” o rombo fiscal do mega assalto ao Estado, ainda deixaria nos cofres
dos capitalistas pelo menos R$ 358 bilhões! Não por acaso, a imprensa burguesa
tratou a operação como sendo a “tese do século”, com efeitos tanto retroativos
quanto no futuro: a bagatela rendeu às distintas frações do capital nada menos
que R$ 93,4 bilhões (26,08% do montante), já compensados entre 2017 e 2020,
enquanto outros R$ 56 bilhões deveriam ter sido pagos em 2021; o “restante” –
míseros R$ 69,6 bilhões – devem ser quitados durante 2022. Nos anos de 2023 e
2024 a compensação de créditos deverá ser de R$ 47,8 bilhões e de R$ 44,1
bilhões, respectivamente. De 2025 em diante, estima-se que a compensação de
créditos será de R$ 47,09 bilhões.
O assalto ao Estado não se realiza, portanto,
prioritariamente pelo roubo no orçamento da merenda escolar, num esquecido município,
exibido com regularidade e em horário nobre na TV, destinado a arrancar gritos
de indignação no eleitor mais indiferente. Da mesma forma e com o mesmo
objetivo, o roubo bilionário orientado pelo interesse de classe não
produz tanta indignação e atenção mediática quanto alguns milhões encontrados
em malas num apartamento de ex-ministro dos governos da esquerda liberal ou um
punhado de dólares na cueca de um insignificante deputado. A exibição exaustiva
da pequena corrupção e a meticulosa investigação de um repórter preocupado com o
desvio da merenda escolar oculta, precisamente, o mega assalto ao Estado autorizado
pelos eminentes e respeitados juízes da Corte Suprema, justificado nas frestas
da lei e da jurisprudência, destinado a proteger a propriedade capitalista.
Portanto, a manufaturação da opinião pública em favor da moral burguesa não
é operação trivial e menos ainda produto do improviso. Obedece, pois, a lógica
implacável destinada a iluminar o roubo no varejo enquanto oculta o roubo no
atacado: o gigantesco assalto ao Estado em favor da coesão burguesa.
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os trabalhadores no egrégio tribunal |
Não há que perder de vista a trama em curso, pois
tanto a reprovação quanto o elogio à Corte Suprema ocorrem no interior da crise
da República burguesa, orientada pelos interesses imediatos e históricos da
coesão burguesa sob a batuta de Paulo Guedes e do presidente protofascista. As
decisões tem sido “progressistas” no terreno dos costumes e burguesas no
terreno econômico-político. As causas identitárias são recebidas com
benevolência e manifesta simpatia – sempre turbinadas pelos monopólios
midiáticos – enquanto àquelas destinadas a organização do poder político e
econômico são objeto de zelosas decisões em favor da burguesia. Nada de novo
sob o sol, pois o divórcio, com enorme oposição da igreja católica foi, no
Brasil, aprovado em plena ditadura, revelando que, mesmo uma ditadura de classe,
pode tolerar e até mesmo estimular certa liberalização no terreno da moral
burguesa.
O ziguezague da esquerda liberal no labirinto da
crise da República burguesa não constitui o roteiro completo da trama em curso.
No lado oposto, a direita não vacila em acusar a Corte Suprema como um
obstáculo objetivo ao programa ultraliberal, como único meio capaz de retirar o
Brasil desse interminável vale de lágrimas. A orientação da direita encontra
amparo nos trabalhadores que, de resto, possuem sobradas razões para não
confiar na justiça burguesa, especialmente diante das decisões de todas as
instâncias jurídicas realizadas após a renovação moral e doutrinária dos juízes
baseadas, ambas, em manuais liberais do século passado. Portanto, as massas não
somente desconfiam da justiça como, em muitos casos, temem a justiça.
Milhões de brasileiros sabem, por experiência própria, que os tribunais
assumiram um indisfarçável caráter de classe, tanto nas decisões amparadas no
direito penal, quanto no civil. Embora milhões de trabalhadores ignorem as
decisões suculentas no terreno tributário, as massas sabem que pagam a conta e,
portanto, que pagam muito imposto. A burguesia insiste todos os dias que a
“carga tributária” é elevada e, portanto, os preços poderiam ser menores e
todos seríamos mais felizes caso o Estado tirasse esse e outros pesos de nossas
costas. É por esse meio que a burguesia vocaliza o “interesse geral” das
classes e captura para o programa ultraliberal a simpatia eleitoral e popular.
Nesse contexto, a ultradireita estava mais preparada para enfrentar os tempos
de crise do que a inocente esquerda liberal, razão pela qual tomou a iniciativa
política desde que a crise mundial indicou a turbulência em 2008/2009.
O protofascista Jair Bolsonaro atua nesse terreno
munido com a precisão de uma bússola. Em consequência, não perde oportunidade
para espetar as decisões da corte ou acusá-la abertamente de jogar contra os
interesses populares e seu governo. A oscilação que pratica – ora atacando um
ministro, ora pactuando com o tribunal – não perde o rumo: desacreditar por
completo o sistema de justiça diante do povo e indicar, ainda que de maneira
acidentada, que somente uma “ditadura” ou um regime especial, poderia impor a
ordem nesse caos. A direita, de maneira clara, afirma não confiar na justiça e
na lucidez de seus ministros, enquanto a esquerda liberal segue na defesa
abstrata da democracia, silenciando diante de atrocidades decididas pelas
cortes ou afirmando que os tribunais atuaram com justiça diante de uma causa
qualquer de sua preferência ou da reprodução parlamentar. Na crise, não há
possibilidade de vitória por parte da esquerda liberal e em qualquer caso, a
concepção segundo a qual “algo deve ser feito” para parar os tribunais segue
ganhando simpatia popular sob condução da direita fascista e seu presidente. A
campanha eleitoral ainda não começou, mas não duvido em afirmar que será
incapaz de reverter anos de propaganda e doutrinação em favor da reforma moral
destinada a superar a “crise de valores” em que a República apodrece sob
condução burguesa, como se os sucessivos escândalos de corrupção – tanto no
atacado quanto no varejo – fossem frutos de desvios morais e jamais uma
consequência necessária da relação ultraparasitária entre os capitalistas e o Estado,
que marca historicamente o desenvolvimento capitalista, tanto no centro quanto
na periferia.
A prisão de um parlamentar desprezível – o
deputado Daniel Silveira, PSL/RJ – é comemorada pela esquerda liberal como se
fosse uma vitória da pressão popular nas redes digitais dos parlamentares e
“dirigentes” partidários, da mesma forma que lamentam e denunciam a omissão da
justiça em esclarecer, após tantos anos, o assassinato da vereadora Marielle Franco
(PSOL/RJ). Nessa oscilação, a esquerda liberal também adiciona algumas
moléculas de desconfiança no sistema de justiça que, nas condições atuais,
favorecem a ofensiva da direita rumo a alguma modalidade de Estado policial, ou
mesmo reforma do sistema judicial no sentido de aprofundar os mecanismos legais
para uma política ainda mais repressiva.
Nada pode ser mais ilustrativo da situação atual
do que as recentes decisões de Alexandre Moraes, pois na mesma investigação
dirigida a incriminar o protofascista Bolsonaro por “fake news”, sob seu
comando e aplausos entusiastas da oposição, o eminente juiz determina que as
redes digitais do PCO, um partido completamente comprometido com a eleição de
Lula na disputa presidencial desse ano, sejam canceladas. No dia em que escrevo
esse artigo, a Polícia Federal prendeu o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro,
acusado de crimes tão sérios quanto recorrentes na vida política nacional; de imediato,
observo a festa nas redes digitais (propaganda eleitoral) da esquerda liberal
indicando que Bolsonaro – apesar de retirá-lo do cargo diante do escândalo de
corrupção – seguiu emprestando sua fé na suposta correção moral do pastor
evangélico enquanto ministro. No embalo da atuação política da PF e do STF, a
esquerda liberal não conseguirá jamais a “despolitização do judiciário” e o quid
pro quo seguirá servindo de munição para a agitação do protofascista contra
os tribunais e a democracia restringida a que estamos historicamente submetidos
em favor de uma modalidade qualquer de Estado policial.
No lado oposto, a esquerda liberal segue aferrada
ao bordão da “defesa da democracia” em abstrato sem ganhar a confiança e a
mobilização das maiorias e, especialmente, os trabalhadores, para as tarefas
históricas da Revolução Brasileira. Enquanto coleciona pequenas “vitórias”
garantida pela ação política do judiciário, a esquerda liberal esquece que, no
essencial, a crítica do sistema político segue sob condução da direita e
da coesão burguesa que o apoia tanto no covil de ladrões, situado no Congresso
Nacional, quanto na cumplicidade das distintas frações do capital com a
política econômica conduzida pelo ultraliberal Paulo Guedes: garantia de super
lucros à classe dominante na mesma medida em que estende a superexploração da
força de trabalho, com ou sem carteira assinada, a milhões de trabalhadores.
Ora, diante de um sistema político em plena
decomposição, portanto em instabilidade permanente, em meio à turbulência mundial
do sistema capitalista, que não oferece qualquer indicação de que os Estados
Unidos – a cabeça do imperialismo – possa iniciar a recuperação da intensa
crise cíclica inaugurada após junho de 2019, a esquerda liberal navega sem bússola
no interior da República burguesa comandada pelo protofascista Bolsonaro. O
desarme da esquerda liberal, sob comando do PT, e seu fracasso histórico após
14 anos no governo, não poderá ser superado pela reafirmação na chapa petucana
Lula/Alckmin. A contrário, o impasse das eleições de 2018 que explicitou a
ofensiva burguesa e sua guerra de classes contra os trabalhadores segue atual e
ganhou vitalidade a despeito dos percentuais eleitorais indicados pelas
pesquisas de opinião que embalam o otimismo eleitoral dominante nas filas da
esquerda liberal.
quarta-feira, 1 de dezembro de 2021
As tropas estadunidenses no Brasil
Como se a luta de classes não
mais existisse, Lula promoveu em 12 de abril de 2010 um acordo de cooperação militar
entre o Brasil e os Estados Unidos. O documento traz a assinatura de Nelson
Jobim, então ministro de Defesa e Robert Gates, o secretário estadunidense.
Gates não é um sujeito qualquer: por quase três décadas, foi membro e diretor
da CIA e conseguiu a aparente proeza de ocupar um cargo estratégico tanto no
governo do rústico Bush quanto na presidência do simpático afro-americano Barak Obama.
Ademais, o poderoso Gates, a despeito de parecer um falcão jogo-duro, era
também um sujeito descolado: decretou o fim da exclusão das mulheres nos
submarinos e também das perseguições de homossexuais nas forças armadas. Jobim
tampouco improvisou em sua larga carreira: ministro de justiça de FHC ocupou também a condição de Ministro de Defesa nos governos de Lula e Dilma. Foi ministro e presidente
do STF (indicado por Cardoso), defensor de Andrés Esteves quando o banqueiro foi preso na Lava Jato e, atualmente, é nada menos que sócio e presidente do conselho
de administração do BGT Pactual, banco criado por seu ex-cliente e patrão
quando diante dos tribunais. Não é um cara fraco, definitivamente.
O acordo de cooperação militar
entre a potência imperialista e um país latino-americano não suscitou polêmica
à época, mas, ao contrário, desprezo aos críticos. A consciência ingênua
dominante na esquerda liberal encabeçada pelo PT dava de ombros às críticas do
“esquerdismo” considerando-as não somente extemporâneas, mas completamente
descabidas historicamente. Não poucas vezes, os quadros remanescentes da
esquerda revolucionária eram considerados anacrônicos, cuja critica soava no
mínimo cativa dos tempos da guerra fria, que, segundo a fé corrente, não mais
existia,
pois teria sido soterrada pela queda do muro de Berlim. A opressão e dominação
de um país por outro, portanto, era alegadamente coisa do passado. Tal como
escreveu Marx acerca dos liberais defensores do livre comércio, “se são
incapazes de compreender como pode um país se enriquecer a custa de outro, não
necessitamos assombrarmo-nos que esses
mesmos senhores compreendam ainda menos que, dentro de um país, uma classe
enriqueça à custa de outra”.
A imprensa burguesa fez sua parte
e informou de maneira econômica a assinatura do acordo. Numa pequena nota, a
Folha de São Paulo registrou apenas que o “texto inclui a aplicação da
"cláusula de garantias" exigida pela Unasul (União das Nações
Sul-Americanas), que prevê não intervenção, integridade e inviolabilidade
territorial”. No entanto, em setembro de 2004, portanto no início do primeiro
mandato de Lula, o princípio da “não intervenção” seria rapidamente substituído
pelo “princípio da não indiferença” e os militares brasileiros encabeçariam –
sob comando de um então desconhecido General Augusto Heleno – o “intervencionismo
humanitário” a serviço de duas potências imperialistas, os Estados Unidos e a França.
Á época, apenas Hugo Chávez e Fidel Castro criticaram abertamente o
intervencionismo estadunidense validado pelo governo de Lula e mantiveram lúcida
e solitariamente a advertência até seus últimos dias de vida; em 2017,
quando ninguém mais duvidava do fim catastrófico da Minustah para o povo
haitiano, tampouco foram recordados. Entretanto, no Brasil, enquanto o petismo
silenciava-se sobre a “intervenção humanitária” no Haiti, a crônica otimista
das forças armadas brasileiras se manteve em alta até o último dia da ocupação
no pequeno país caribenho. Uma nota publicada na página do Corpo de fuzileiros
navais da Marinha do Brasil, registrou assim sua participação: “Em outubro de 2017, com um país mais seguro e
estável, a MINUSTAH chegou ao fim. Hoje, a segurança está a cargo
da Polícia Nacional do Haiti, que atualmente conta com um efetivo de 15 mil
homens – 10 mil a mais do que possuía em 2004. Após 13 anos de muitos desafios
e superação, com o sentimento de dever cumprido, os Fuzileiros Navais da
Marinha do Brasil deixaram o Haiti e entraram para a história.”
(cursivas minhas, NDO). O Haiti está, finalmente, pacificado. Não é mesmo uma
maravilha?
Alguns anos mais tarde, precisamente
em 18 de dezembro de 2015, poucos dias após o início do processo de impeachment,
a presidente Dilma promulgou aquele antigo acordo iniciado com Lula por meio do
Decreto 8.609, após a aprovação pelo congresso nacional em junho do mesmo ano. Em Washington, assinou pelo Brasil o então
ministro de Defesa, o petista Jacques Wagner e pelos Estados Unidos, o
secretário de Defesa, Ashton Carter. O decreto de Dilma foi igualmente ignorado
pelo militante da esquerda liberal, mais ainda do que a pioneira decisão de
Lula em favor da política imperialista. O pânico derivado do início do processo
de destituição capturou todas as atenções políticas de tal forma que uma
decisão de alcance estratégico, tomada provavelmente para buscar aliados
externos com a intenção de se manter no posto, simplesmente não teve
repercussão alguma. É verdade que o Acordo sobre Proteção de Informações
Militares Sigilosas foi assinado por Dilma em 26 de junho de 2015, véspera
da visita a Washington para um encontro com o democrata Obama. O Ministério da
Defesa publicou sua avaliação em nota, afirmando que, após “cinco anos de
espera e de debate”, os dois acordos, então aprovados na Câmara e no Senado
vão, finalmente, “abrir portas para novas perspectivas de cooperação no setor
de defesa com o governo norte-americano”.
A despeito das manobras, golpes,
traições, alianças espúrias e acusações de toda espécie no interior do
parlamento burguês que marcaram o ano anterior da campanha contra Dilma, o
Ministério da Defesa do Brasil não perde a linha da necessária lucidez quando
assuntos estratégicos estão em jogo. A nota firma que a “articulação do
ministro da Defesa, Jaques Wagner, junto aos presidentes das duas casas
legislativas, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e o senador Renan Calheiros
(PMDB-AL), foi fundamental para a promulgação da matéria, pois desde 2010 os
dois acordos aguardavam a apreciação do Congresso Nacional devido à necessidade
de alguns ajustes.”. Não se pode desprezar a capacidade de políticos vulgares
como Eduardo Cunha e Renan Calheiros em separar, como Lenin diria,
o governo passageiro do governo permanente, para usar a terminologia da direita
estadunidense. Tampouco devemos ignorar a ação de Jacques Wagner, um dos
cardeais do petismo, que, mesmo diante da chapa quente produzida pela oposição
na campanha do impeachment, não deixou a peteca cair e levou, a despeito de rusgas
aqui e acolá, a ação estratégica comum para regularizar e trocar informações
militares sigilosas entre um país dependente e a potência imperialista.
Portanto, a presença de 240
militares estadunidenses em território brasileiro nessa semana (entre 28 de
novembro e prevista para se estender até 18 de dezembro em 2021) é resultado de
longo esforço da classe dominante em afirmar, com governos da esquerda liberal
ou da direita liberal, os interesses estratégicos da potência imperialista no
Brasil. Tal constatação evidencia o quanto o “pragmatismo” vulgar colocado em
prática pela esquerda liberal, produto da ignorância histórica e do desprezo
pela tradição teórico-política da esquerda latino-americana anti-imperialista,
tem sido nocivo para a soberania defendida apenas de maneira retórica.
Considerando a “sabedoria
política” da esquerda liberal encabeçada pelo PT, especializada em legalizar
todo tipo de assalto ao Estado e agressões à soberania com medidas
pretensamente destinadas a regulamentar a ambição burguesa e imperialista –
como se fosse possível ordenar a vida com leis e decretos – é legitimo supor
que o mencionado acordo de “proteção de informações militares sigilosas” tenha
sido proposto para regular a espionagem que os órgãos da potência imperialista
realizaram e foram devidamente denunciados por Snowden à época. Uma vez mais, a
subserviência e a impotência política da esquerda liberal aparecem na forma de
um legalismo infantil que os organismos da potência imperialista sabem driblar
há séculos, tornando inútil a letra da lei.
A situação era, de fato, muito
grave, pois naquele período, já existiam provas suficientes para não levar
adiante semelhante acordo; pouco tempo antes – em junho de 2013 - Edward Snowden,
um ex-funcionário da CIA revelou a espionagem em nada menos que a correspondência
eletrônica de Dilma por parte da NSA, a Agência de Segurança Nacional dos EUA.
Entretanto, a gravíssima violação da correspondência presidencial foi
considerada pelo petismo apenas um “episódio” e, em consequência, olimpicamente
esquecido pelo governo brasileiro de tal forma que nada impediu seguir adiante
nos planos de “cooperação militar” com os Estados Unidos. Assim, a obra iniciada
por Lula e concluída com Dilma estava, finalmente, completa.
Em perspectiva histórica, é trágico e espantoso perceber como a esquerda liberal no governo – com Lula e Dilma – banalizou até o fundo e o fim as relações com o imperialismo estadunidense não somente ignorando a violação da correspondência presidencial como também a influência cada dia maior do Comando Sul dos Estados Unidos na formação e iniciativas políticas dos militares brasileiros. De fato, a “influência” da potencia imperialista nas forças armadas brasileiras era antiga e é justo afirmar que os sucessivos governos petistas não fizeram mais do que fortalecê-la e torná-la oficial, auferindo perverso verniz republicano às suas decisões. A consciência anti-imperialista que marcou a longa e tortuosa trajetória da esquerda brasileira estava, finalmente, rarefeita ou mesmo, dissipada. Em seu lugar, uma sorte de pragmatismo vulgar orientou – e ainda orienta – o “realismo petista” como se fosse possível, de fato, construir soberania sem luta contra a potência imperialista. No lugar da análise fria, calculista e apegada à memória histórica, o recurso do petismo foi, tal como manda a tradição do país, uma tirada literária de um compositor popular a serviço da consciência ingênua: agora, nos governos petistas, anunciou Chico Buarque, o “Brasil não fala fino com os Estados Unidos e tampouco grosso com o Paraguai”. Na operação, o tabuleiro da geopolítica onde conflitos de classe emergem e orientam seu itinerário, deixava trânsito livre para a tirada literária do boteco zona sul carioca.
Os dados anteriores são
indispensáveis se quisermos entender a razão pela qual nesse mês, protegido por
imenso silêncio da imprensa burguesa e sem qualquer registro pelos instrumentos
digitais da esquerda liberal, 240 soldados estadunidenses realizam desde o dia
28 de novembro treinamento militar em terras brasileiras a convite do
protofascista Bolsonaro. É verdade que o atual presidente da república jamais
escondeu sua filiação canina ao imperialismo estadunidense: bateu continência
para a bandeira tricolor, realizou inédita visita à sede da CIA em Langley, na
Virgínia, em março de 2019, e não poupa elogios ao país do norte dirigido por
republicanos ou democratas.
A operação conjunta de tropas
brasileiras e estadunidenses foi autorizada pelo Decreto 10.834 publicado no dia
13 de outubro e assinado pelo protofascista juntamente com o general Braga
Neto. Até onde alcança nossa informação, é um exercício militar inédito.
Segundo o Correio Brasiliense, as “duas equipes” participam “da edição 2021 do
chamado Combined Operations and Rotation Exercises (Core), um
tipo de treinamento militar concebido durante conferência bilateral de
Estado-Maior Brasil-EUA realizada em outubro de 2020, "com o objetivo de
incrementar a interoperabilidade entre os dois exércitos".” A secretaria
da presidência da república informou a novidade eliminando qualquer improviso
em assunto tão sério e estratégico: o “exercício” se realizará todos os anos
até... 2028!
É muito provável a ausência de
curiosidade jornalística da chamada mídia independente necessária para
investigar a fundo algo relevante sobre a inédita presença de tropas americanas
no Brasil. Da mesma forma, os parlamentares da esquerda liberal tampouco
buscarão por meios legais e legislativos ações para esclarecer a razão e o
sentido – além de antecedentes e repercussão – de tão grave presença militar
estadunidense em nosso país. Nas atuais circunstâncias, a única esperança é,
talvez, a possibilidade de um pesquisador no futuro, orientado por sentimento e
convicção nacionalista e revolucionária, encontrar no baú esquecido da História,
as razões que levam um país de enorme potencial à miserável posição de
dependência e subdesenvolvimento em que nos encontramos.
Finalmente, bastam duas moléculas
de lucidez e outra de honestidade intelectual para perceber o quanto ações
simples e silenciosas como essas são as responsáveis por levar as forças
armadas no Brasil à radical submissão política e ideológica, à doutrina
“América para os americanos” anunciada por James Monroe em 1823. O Brasil vive
um clima de pré-campanha eleitoral e tudo indica que o essencial – como a
presença das tropas estadunidenses no Brasil – permanecerá longe da atenção do
público e simplesmente será ignorado como se jamais tivesse existido. Mais cedo
do que tarde, não será surpresa alguma se a esquerda liberal comandada pela
consciência ingênua – agora livre da antiga tradição anti-imperialista
atualmente exorcizada por seus novos profetas e “dirigentes” – manifestará cinicamente
sua surpresa e até oposição diante da ação entreguista de um presidente
protofascista, adepto confesso do alinhamento automático do Brasil à política
de segurança e do expansionismo permanente dos Estados Unidos, como se não
fosse ela também responsável pelas tropas estadunidenses em território
brasileiro. Da mesma forma, antes que ironia da História, o “episódio” revela
que ninguém ficará impune de severo juízo histórico necessário para superar os limites
objetivos do liberalismo de esquerda a que estamos aparentemente condenados.
Revisão de Junia Zaidan
quarta-feira, 25 de agosto de 2021
A legalidade que nos mata
A campanha da legalidade ontem e hoje
A campanha da legalidade teve início no dia 25 de agosto de
1961 e foi movimento decisivo para garantir a posse do vice presidente João
Goulart após a renúncia de Janio Quadros e o fracasso de sua tentativa
bonapartista. A burguesia brasileira dava sinais claros que já não podia
governar e o proletariado tampouco estava preparado para a tomada do poder. O
exército – por meio dos ministros militares de então – decidiram que Jango não
deveria retornar ao país – estava em missão oficial na China – e menos ainda
assumir a presidência da república. A firme liderança do governador gaúcho
Leonel Brizola e o apoio do III Exército – fato que demonstraria a clara
divisão ou pelos menos a quebra da hierarquia entre os militares das três armas
– garantiram, finalmente, a posse do vice presidente trabalhista.
Após intensa mobilização das classes populares, a campanha que iniciara como um movimento destinado a garantir a posse de Goulart, rapidamente se converteria num avanço extraordinário da consciência popular e amadurecimento rumo à revolução brasileira. A luta pela legalidade, portanto, constituía um terreno concreto de avanço da consciência popular e de iniciativas políticas que aspiravam à conquista do poder político pela esquerda. Portanto, a defesa da legalidade ocorria no contexto de um acenso do movimento de massas, de derrotas das iniciativas das classes dominantes, de importante divisão no interior das forças armadas e de falta de unidade na burguesia.
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Leonel Brizola, governador do Rio Grande no Palácio Piratini |
A resposta burguesa à garantia da legalidade conquistada pela
astúcia das forças populares emergiu com a aprovação do parlamentarismo em 2 de
setembro de 1961, destinada a garantir a democracia, mas sem conceder
capacidade de decisão ao presidente João Goulart e sua aliança de classes sob
condução popular. Não teve vida longa, como sabemos. Em 6 de janeiro de 1963 –
portanto, pouco mais de um ano após sua instauração – o parlamentarismo foi
revogado pelo voto popular. A despeito das moderadas reformas aprovadas sob a
condução do primeiro ministro Tancredo Neves, a verdade é que, impulsionado por
forte movimento de massas e certa lucidez nas vanguardas políticas da época, o
presidente João Goulart defendeu abertamente a necessidade de volta ao
presidencialismo contra o parlamentarismo. Ao parlamento não restava outra
alternativa senão derrotar uma vez mais as iniciativas burguesas apoiadas pelos
setores mais reacionários da classe dominante. Uma vez mais a história ensinava
que somente nos períodos de grande conflito, as classes subalternas podem
superar suas limitações políticas (consciência e organização) em poucos meses, desvencilhando-se
dos obstáculos ideológicos acumulados durante vários anos. O nacionalismo como
força política avançava tanto com Miguel Arraes quanto com Leonel Brizola por
vias distintas; os sindicatos amadureciam em sua capacidade de combate e
protagonismo político. Finalmente, as organizações de vanguarda sentiam o terreno
firme sob seus pés para avançar na luta e na teoria da revolução brasileira.
Em face da amnésia histórica produzida por uma esquerda de
vocação colonizada e cosmopolita hoje, o contraste dos tempos de então com
nossa situação atual não poderia ser mais eloquente. Todos os dias podemos
observar novas investidas do governo encabeçado pelo protofascista contra as
instituições burguesas (parlamento, tribunais, governadores, imprensa, etc).
Toda semana o governo lança declarações destinadas a captar a atenção da
esquerda liberal e marcar a agenda do debate público em seus termos. Todo mês,
o covil de ladrões que atende pelo pomposo nome de parlamento aprova medidas
destinadas a ampliar a exploração da força de trabalho (a MP 1045 foi a última)
e assaltar o estado por meio da política fiscal, monetária e cambial. Crise e
super lucros pintam a conjuntura sobre a qual os trabalhadores atuam sem
diagnóstico e direção política.
A hegemonia liberal na esquerda – cuja liderança ainda é dominada pelo PT – segue atuando exclusivamente na “defesa das instituições e da democracia”, no contexto de uma república burguesa que apodrece aos olhos do trabalhador comum, desprovido de um sindicato combativo, organização política e consciência crítica. Afogado na luta diária pela sobrevivência, os trabalhadores responsáveis pela produção da riqueza apenas ensaiam movimentos em defesa de suas condições mínimas. A taxa que combina desocupados e desalentados (pessoas que desistiram de procurar trabalho) – segundo informação do DIEESE – passou de 16,0%, no primeiro trimestre de 2020, para 19,5%, no mesmo período de 2021. E o dado mais preocupante – também segundo a fonte – é que, entre os chefes de família, essa mesma taxa combinada de desocupação com desalento correspondeu a 11,2%, em 2020, e a 13,4%, em 2021, o que indica maior número de famílias em situação de vulnerabilidade
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Flavio Cannalonga. Bom Jesus da Lapa, 1998 |
A lógica das situações extremas se apresenta de maneira cada
vez mais nítida. Entretanto, as convicções republicanas da esquerda liberal não
sofrem abalo. O imenso oportunismo político, o apego ao cretinismo parlamentar
e um profundo compromisso com a classe dominante, mantêm a esquerda liberal
aferrada na ideologia segundo a qual o regime político atual pode recuperar
vitalidade se bem conduzido por um novo pacto de classes comandado por algum
político vulgar existente em suas fileiras. A massa dos trabalhadores – um
verdadeiro exército de desesperados – assiste a tudo sem manifestar rebeldia,
mas tampouco qualquer acordo com o roteiro da crise que a condena
irremediavelmente ao abismo social.
A classe dominante – uma inédita coesão burguesa – logrou
cenário perfeito para a dominação política. De um lado, um presidente
protofascista que não vacila em avançar em todas as medidas de política
econômica que rende lucros extraordinários e maior poder político a todas as
suas frações. De outro, uma oposição de profunda inspiração liberal que se
esforça para ganhar sua confiança e, em seus sonhos dourados, conseguir uma
fissura entre banqueiros, latifundiários, grandes comerciantes, industriais
decadentes e pequena burguesia empobrecida que pudesse garantir algum poder de
negociação para seu programa igualmente liberal.
A “defesa da democracia” encurrala a oposição dominada pela
esquerda liberal nos labirintos de uma crise em que ela não entende e para a
qual tampouco ensaia saída satisfatória. Incapaz de observar a dialética da
luta nos marcos da ordem burguesa, mas contra a ordem burguesa – postulado
básico para justificar sua existência num país subdesenvolvido e dependente – a
esquerda liberal aposta todas as suas fichas no calendário eleitoral, convencendo-se
de que pode bater o protofascista em meio à grande crise econômica, política e
social. Engana-se no elementar pois desconhece a lógica de situações extremas
que nos governa desde janeiro de 2015, quando a guerra de classes foi desatada
pela burguesia ainda durante o governo de Dilma Rousseff e a desconfiança
pública sobre o sistema político, os partidos, as eleições, os tribunais, a
imprensa, etc, cresceram lenta e inexoravelmente. Não se trata, obviamente, de
renunciar as disputas eleitorais. A questão é mais simples: sem um novo
radicalismo político programático que toque nas bases da dominação burguesa
responsável pela miséria e exploração da maioria do povo brasileiro, não haverá
terreno para a esquerda conquistar o apoio das maiorias.
Em 1961 a defesa da legalidade rendeu o avanço da
consciência política e jornadas de luta vitoriosas para as classes populares;
em 2021 a defesa abstrata da democracia torna a esquerda liberal objeto
de desconfiança e repúdio de milhões de trabalhadores que não podem sequer
alimentar esperança em dias melhores no interior de um sistema político
apodrecido. Em 1961, a campanha da legalidade garantiu a posse de um
presidente reformista e permitiu avançar ainda mais nas reformas de base –
universitária, urbana, agrária, lei de remessas de lucros, etc – ao passo que,
em 2021, a defesa da democracia não faz nada mais que garantir o desbotado ritual
burguês de uma república apodrecida em seus cimentos. Em 1961, o movimento
pela legalidade permitiu e foi também resultado da consciência nacionalista
no interior das forças armadas enquanto a defesa abstrata da democracia em 2021
meramente consolida no interior do alto
comando maior fidelidade contra o regime atual considerado indesejável e
ineficiente por completo.
Ontem – em 1961 - a defesa da legalidade permitiu
maior consciência, força no movimento de massas e jornadas de luta com grandes
vitórias para os trabalhadores; hoje, a defesa abstrata de democracia
apenas fortalece um sistema político que mesmo funcional aos interesses da
coesão burguesa, tem seus dias contatos pelo interesse burguês.
Ontem – em 1961 – a campanha da legalidade movia a
consciência e transformava a práxis de milhões de trabalhadores a despeito das
ilusões que a liderança do processo também alimentou no reformismo nacionalista
do governo de João Goulart. Na atualidade, a defesa abstrata de democracia
escraviza a consciência de milhões nos marcos de um regime burguês totalmente
hostil a vida dos trabalhadores.
Numa época em que os trabalhadores perderam muito – vida
material, consciência e organização política – urge a perda das ilusões. Ainda
que sob condições adversas, a perda das ilusões pode ser na atualidade a única
conquista capaz de garantir aos trabalhadores algum futuro para a revolução brasileira
e a luta pelo socialismo no Brasil.
domingo, 25 de julho de 2021
Quando as estátuas se movem
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O encanto e a perplexidade no contato com a cultura e a política no México, creio, é comum a todo aquele que visita o país latino-americano do norte. No meu caso, a perplexidade era maior que o encanto pois em contraste com nossa tradição política orientada meticulosamente pela ideologia dominante - a ideologia da classe dominante - lá não é possível participar da política sem conhecimento da História. Portanto, meu espanto tinha raízes que desconhecia: a ignorância acumulada sobre a história nacional brasileira. No México, de estações do metrô a ruas e bairros - sem falar em cidades - quase tudo leva nome de rebeldes e revolucionários. Uma das principais avenidas do país se chama Revolución. A estação de metrô na linha que com frequência utilizava, Zapata. Outra mais adiante, División del Norte, homenagem a Pancho Vila. Por toda parte é possível ver monumentos e museus, sem falar no muralismo de Diego Rivera, Siqueiros, Orozco onde arte, revolução e História estão em perfeita comunhão.
Alguns anos após minha vida no México, fui assaltado pela mesma angustia quando voltando de um sebo descobri numa avenida de Caracas uma estátua em homenagem a Abreu e Lima. Na terra do general Ezequiel Zamora e de Simón Rodrigues eu me descobria novamente ignorante sobre a história das lutas no Brasil. A súbita desconfiança de que Abreu e Lima era português se desfez na volta ao hotel onde todas as noites, eu jantava com uma dupla que exibe paciência infinita numa conversa: Aldo Rebelo e Eduardo Suplicy. Os três participávamos de um evento organizado pela oposição venezuelana sobre a dívida externa e Hugo Chávez ainda não tinha emergido das entranhas das forças armadas para liderar um golpe inicialmente fracassado contra o governo constitucional de Carlos Andrés Perez. Então eu perguntei aos meus camaradas de mesa sobre Abreu e Lima. Aldo - meu contemporâneo de movimento estudantil - com aquela paciência atávica que até hoje o caracteriza, me deu uma breve e fecunda aula sobre a Revolução Pernambucana, Padre Roma e o general Abreu e Lima. De volta ao Brasil minha pesquisa sobre nosso general bolivariano iniciou com a leitura de um livro sobre o socialismo.
Quando fui viver na Argentina eu não mais ignorava a história nacional da Pátria Grande mas ainda assim o contraste é enorme com nossa tradição: no país vizinho, a referência histórica nas disputas políticas emergem a todo momento, razão pela qual após qualquer conversa a necessidade de correr para uma livraria ou biblioteca é imediata. Política é história!!
No México, na política burguesa, Zapata e outros personagens históricos da Revolução Mexicana eram mencionados com frequência na boca de políticos vulgares e da esquerda parlamentar. Era menção quase alegórica, até o momento em que Zapata, Villa, Cárdenas deixaram de ser estátuas. No dia 1 de janeiro de 1994, por exemplo, explodiu em Chiapas a rebelião zapatista encabeçada pelo EZLN e, nesse caso, eu já tinha lido e tido aulas com Antonio García de León (Resistencia y utopia) de tal maneira que o espanto estava acompanhado com certo conhecimento da realidade indígena do país e do estado do sul. A partir daquela data, na política mexicana, Zapata deixou de ser uma estátua e produziu um movimento de massas cujo epicentro indicaria pouco tempo depois, o fim de um regime de partido de estado que durou 72 anos!
Na Venezuela, também Bolívar era, além de estátua, menção cotidiana nos discursos de políticos vulgares pronunciados em salões burgueses até que numa bela manhã de 4 de fevereiro de 1992 o continente despertou com um movimento criado no interior das forças armadas (Movimento Bolivariano Revolucionário 200) cujo objetivo era nada menos do que a destituição pela força do governo constitucional de Carlos Andrés Perez. Então, como num passe de mágica, nunca mais um copeiano ou adeco - os dois partidos que dominavam a cena por décadas num regime completamente apodrecido - mencionaram novamente o nome do Libertador de maneira impune pois também o general Bolívar - assim como Zapata no México - tinha deixado de ser estátua para se converter no germe da Revolução Democrática Bolivariana.
A reflexão anterior surgiu a propósito da queima de uma estátua em São Paulo no fim de semana. No Brasil, a política se faz sem o recurso à nossa rica historia nacional. Na prática, se faz ignorando a história nacional. Por isso, talvez, é mais fácil queimar estatuas do que faze-las caminhar.
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domingo, 13 de junho de 2021
Um encontro com Marcelo Freixo
A tragédia de nosso tempo consiste no fato de que apenas o voto é observado com lupa pelo que restou da esquerda. Assim, qualquer movimento eleitoral - da legislação às candidaturas, das alianças ou das dissidências - recebe minuciosa atenção dos chamados dirigentes e mesmo do militante devoto enclausurado num comitê eleitoral real ou fictício. Por sua vez, o movimento das classes, da economia, da ideologia e da cultura são, quase sempre, ignorados pela esquerda que se fez liberal ao longo das últimas 3 ou 4 décadas
A carta da vez sob severa observação é a
decisão de Marcelo Freixo de abandonar o PSOL e assinar filiação no PSB. A
decisão - largamente amadurecida - está orientada por óbvio fim eleitoral:
eleger-se governador do Rio de Janeiro. Ora, desde que se elegeu deputado
federal, Freixo abandonou o discurso centrado nas causas (racial, gênero, etc)
para assumir certa vocação universal expressa na luta pelos "direitos humanos",
o direito à vida, o direito de ir e vir, entre outros mandamentos da doutrina
liberal. A decisão não é fruto do improviso e, embora marcada por
contingências, ampara-se também em problemas reais que cobram solução. Em
síntese, Freixo postula que o sentido da política naquele estado que outrora
foi o tambor do Brasil, resume-se na luta da "civilização contra a
barbárie".
O retorno de Lula à disputa presidencial de 2022
- até agora assegurada pelos tribunais por circunstâncias políticas muito
particulares que podem desaparecer - obviamente apressou a decisão de Freixo. O
PSOL, no entanto, tornou-se um cobertor cada dia mais curto para as ambições de
Freixo, uma vez que o partido também está fortemente acometido pelas mesmas
razões que levaram o deputado carioca ao PSB. Ainda que balbuciando
justificativas morais, na prática, o PSOL contesta a saída mas, na real, também
tem um encontro marcado com Lula. Na verdade, o PSOL esta dividido entre
aqueles que querem Lula já no primeiro turno e a ampla maioria, que votará no
ex-presidente no segundo turno, caso o calendário eleitoral se confirme na
plenitude.
A maioria no PSOL inclina-se nesse momento para
fechar com Lula já no primeiro turno das eleições presidenciais. Nesse
contexto, a despeito da vontade do militante socialista, o PSOL caminha para
consolidar-se como um "puxadinho do PT". A decisão do diretório
estadual do Rio de Janeiro em não reivindicar nos tribunais o mandato de Freixo
– como também da executiva nacional do partido – obedece, finalmente, à logica
dominante: todos estão, de alguma maneira, no mesmo barco.
Os desgostosos com a decisão de Freixo
limitam-se a reivindicar certa independência programática no primeiro turno
para negociar com Lula desde uma posição de força, como se, de fato, o
candidato presidencial do PT desse ouvidos à esquerda. Ora, Lula jamais ouvirá
a esquerda, especialmente porque essa é cativa de sua liderança eleitoral e não
possui alternativa fora de seu alcance. À maneira vulgar, Lula sabe que a
polarização partidária que os educados liberais pretendem evitar obedece à
lógica das situações extremas que emergiu na sociedade brasileira a partir da
reeleição de Dilma. Não se pode, aparentemente, responsabilizar o PT por tal
quadro pois o partido - Dilma e Lula na cabeça - fizeram de tudo para não
radicalizar, atuando sob a orientação de um espirito republicano burguês que
somente existia em suas doces ilusões, num esforço quase suicida de preservar as
instituições da república burguesa apodrecida que já estavam em franca
decadência. No entanto, foi precisamente a tentativa de conciliar aquilo que de
fato é irreconciliável, especialmente em tempos de crise, que nos trouxe aos
impasses políticos atuais comandados pela ultra direita.
A consciência ingênua de Freixo consiste em
supor que será possível enfrentar as milícias, o crime organizado, a corrupção
e a ladroagem generalizada que afeta o Rio de Janeiro sem uma resposta
igualmente radical para as consequências da emergência do capitalismo
dependente rentístico do país que lá aparece sob a forma de decadência material
e moral do antigo "tambor do Brasil". Nesse contexto, alguns estados
podem se defender melhor - inclusive pelo reduzido tamanho - mas tal
possibilidade é vetada ao Rio que não poderá encontrar uma saída fluminense
fora do contexto nacional. É doloroso dizê-lo, mas é claro que uma crise ou
desgraça qualquer em Manaus ou Floripa não tem o peso de uma crise
carioca.
Desde esse ponto de vista, as ilusões de Freixo
que o levam a sair do PSOL não são lá muito diferentes da convicção daqueles
que permanecem no partido.
Em décadas passadas a decisão de abandonar o
PSOL seria tratada como "oportunismo eleitoral", "traição ao
programa", entre outros epítetos ainda menos ilustres. No entanto, nas
circunstâncias atuais, a mudança de partido não significa a mudança de
trincheira pois todos estão na vala comum da luta pela "democracia contra
o fascismo". A divergência certamente ganharia contorno mais dramático se
a adesão de Freixo ao Lula ocorresse no período em que o PT estivesse no
governo. A diferença agora é que o PT pode ser governo e o apetite
eleitoral cresce na exata medida das pesquisas eleitorais que colocam Lula na
disputa do segundo turno contra o protofascista Bolsonaro. Não resolve alertar
que muitos meses se passarão até que essa possibilidade se efetue e que a crise
é tão grave que tudo pode mudar. A intensidade da crise tem sido argumento
precisamente daqueles que aderem sem rubor algum à enfadonha repetição da
"alternativa" Lula.
A ilusão básica, comum entre os que saem do PSOL
e aqueles que permanecem é, afinal, uma só: uma frente - a mais ampla possível
- para enfrentar a direita, o fascismo, os milicianos, etc. No Rio - tal como
manda a tradição petista - a candidatura de Lula será aquela que passar no
segundo turno. Com exceção de São Paulo, o mandamento petista é um só: entregar
os anéis para preservar os dedos. Em consequência, entregar a disputa nos
estados para formar palanques necessários à conquista da presidência. Afinal,
quando Lula não rifou candidatos próprios do PT sem cerimônia para alcançar
seus fins nacionais? Ora, o Rio de Janeiro, há décadas, nunca deixou de ser
mera moeda de troca de Lula nas articulações nacionais, como forma de
contemplar políticos e partidos corruptos e eleitoreiros que possuem forte
representação no estado.
Freixo sabe - ou vai descobrir - que Lula é
treinado na arte de namorar com todos e casar com ninguém. Afinal, quem será o
candidato do PSOL a governador nas circunstâncias atuais? A despeito de
possíveis méritos, será alguém destituído de uma virtude decisiva: o PSOL, tudo
indica, não terá candidato capaz de passar para o segundo turno. Freixo ocupará
esse espaço eleitoral porque até agora expressa como ninguém a identidade do PSOL, razão pela
qual, arriscará a vida para além do partido com certo conforto. Creio, nesse
contexto, que Freixo revela em sua ambição eleitoral todas as misérias de um
político vulgar, mas, revela também, o dilema do PSOL, que, nascido para
superar o fracasso histórico do PT expresso em sua decadência moral, política e
programática, se limitou tão somente a figurar como "crítico" moral da
esquerda liberal cuja expressão máxima ainda é o PT. Assim, o PSOL poderá ter
um encontro marcado com Freixo em poucos meses.
Há muito escuto de amigos marxistas que não há
outro caminho: o povo terá que experimentar Lula novamente para adquirir
consciência de suas reais limitações pois Dilma o livrou de um juízo histórico
definitivo caso ele fosse - como de fato pretendia - sucedê-la ainda no segundo
mandato que, como sabemos, foi concluído na destituição. Eu entendo o argumento
mas sempre recordo que a crise atual criou novo ambiente em que a repetição da
fórmula Lula não possui aderência: antes que solução, a candidatura Lula será o
caminho de aprofundamento da crise social, econômica e política e, no limite,
permitirá mais força ao avanço da direita. Alguém pode supor com seriedade que Lula e sua frente amplíssima
apresentam uma solução para a crise terminal da república burguesa apodrecida
em seus fundamentos? Afinal, Lula é capaz de elucidar os dilemas próprios de um
capitalismo dependente rentístico calibrando a luta nos marcos da ordem e,
sobretudo, contra a ordem burguesa? Ora, todos sabemos que não! Lula - Freixo e
a maioria que permanece no PSOL - ainda acredita que a república atual possui
virtudes que devem ser resgatadas e pelas quais vale a pena apostar nossas vidas.
A direita encabeçada por Bolsonaro indica todos os dias o caminho da superação
das misérias republicanas pela via de uma modalidade particular de terrorismo
de Estado. A esquerda, ao contrário, reafirma todas e cada uma das ilusões que
nos trouxeram precisamente para o beco aparentemente sem saída em que nos
encontramos.
De resto, a opção por Lula - no primeiro ou segundo turno - manterá o que restou da esquerda cativo ao ex-presidente em nome de objetivos “superiores”. Aos olhos de milhões, no entanto, o apoio a Lula é a reafirmação do horizonte liberal na esquerda brasileira, algo bem distante das necessidades cada dia mais fortes e ainda pouco visíveis da revolução brasileira.