O acordo entre a
presidente Dilma e a Rede Globo de televisão, expresso no Jornal Nacional da
emissora na sexta-feira (21/06/2013), apaziguou momentaneamente as
manifestações ocorridas no Brasil, mas não eliminou as causas profundas do
conflito. Não devemos esquecer que os principais jornais e TVs do país não
vacilaram em caracterizar o protesto liderado pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra
o aumento abusivo da tarifa de ônibus na cidade de São Paulo como ação de “criminosos
e vândalos” que como tal teriam que ser tratados pela força da lei. Em
consequência, a polícia do governador de São Paulo – o socialdemocrata Geraldo
Alckmin – atuou de maneira tradicional com a intenção de colocar de maneira
rápida as coisas no seu devido lugar. Agora, a maioria dos analistas considera que
grande parte da revolta foi apenas uma reação contra a truculência da polícia;
mas esta é uma versão muito confortável para a classe dominante e seus
partidos.
É inegável que a violência contra os manifestantes (que também atingiria jornalistas) ajudou a mobilizar muita gente, mas a rapidez com que milhares de pessoas atenderam ao chamado de um movimento que não contava com mais de 40 militantes orgânicos no coração burguês do país é resultado de um mal estar profundo da sociedade brasileira que hoje todos são obrigados a reconhecer. Neste contexto, tanto os liberais e a direita tradicional, quanto a os partidos no governo (PT e PC do B), reconhecem que as coisas, de fato, não vão bem.
A propaganda
oficial afirma que desde o mandato de Lula o governo tirou da miséria 40
milhões de brasileiros e outros 30 alcançaram a “classe média”. Não devemos
desconhecer que o Brasil, como país dependente e subdesenvolvido, esta
atravessado pela desigualdade. A política social praticada nos últimos 10 anos
– com programas de distintos tipos atendem a quase 40 milhões de brasileiros –
é incapaz de enfrentar a “questão social” e menos ainda cumprir a promessa de
Dilma em seu discurso de posse de “erradicar a miséria”. As leis da economia
política são difíceis de dobrar. Ademais, mesmo com programas sociais, não
havia motivo para ignorar que 76% da população economicamente ativa recebe até
3 salários mínimos, ou seja, o equivalente a R$ 2.034,00 num país onde o salário
mínimo necessário calculado pelo DIEESE (órgão dos sindicatos) é de 2.873,56. No início do ano o governo
divulgou o novo salário mínimo garantindo pequeno ganho real. Contudo, o DIEESE
informa que quando o salário mínimo era de R$ 622 (dezembro/2012), o salário
mínimo necessário era de 2.561,47 e, depois do recente aumento (janeiro/2013),
o salário mínimo subiu para R$ 678,00 enquanto o salário mínimo necessário
saltou para 2.873,56. Enfim, o reajuste oficial cresceu R$ 56,00 e o salário mínimo necessário aumentou em mais
de 5 vezes: R$ 312,00!!!! O poder de compra desaba!
A resposta
massiva à convocatória do MPL tem, portanto, razões econômicas profundas que
somente o mito de uma “sociedade classe média” poderia ocultar. Não por muito
tempo, como agora se observa. Na cidade de São Paulo, segundo os estudos do
MPL, o transporte coletivo consome 31% do valor do salário mínimo. Não é pouco.
Ademais, o transporte é notadamente ruim e controlado por oligopólios, fato que
após as manifestações de massa até mesmo os filósofos oficiais reconhecem.
Outro dado explosivo é a situação da moradia, consequência necessária do
aumento da renda da terra e violenta elevação dos aluguéis que afetou
fortemente não somente as classes populares, mas também as classes médias.
Enfim, um cenário desde há muito tempo explosivo.
Por outro lado, até mesmo a sociologia da ordem se deu conta que o repúdio aos partidos políticos representa uma profunda rejeição ao sistema político. Mas afinal, qual a natureza desta repulsa? Ora, quando o Partido dos Trabalhadores (PT) com Lula à cabeça abandou a luta contra a ordem, descartou seu currículo na esquerda e assumiu plenamente seu papel como oposição pragmática, eliminou as esperanças de milhões de pessoas em transformar o país. Em consequência, limitou-se tão somente a disputar com o PSDB/DEM a condição de administrador mais competente do orgulho burguês que pretendia afirmar uma ideologia que agora revela todos os seus limites: o Brasil estaria avançando para a condição de um “BRICS”, um “gigante mundial” e outras metáforas menos nobres. O PIB – um indicador meramente contábil – foi apresentado como expressão de grandeza do país e, em consequência, o Brasil estaria superando a Inglaterra como sexta economia mundial. Neste contexto, com a mesma velocidade com que o PT (e também o PC do B!) perdiam credibilidade, os movimentos sociais e principalmente o movimento sindical também exibia falta de vitalidade. As greves não deixaram de ocorrer e, de fato, se multiplicam na base, mas não encontram expressão política na CUT e nas demais centrais sindicais oficialistas. Os sinais eram, contudo, evidentes. Em 2008 os trabalhadores fizeram 411 greves, número que subiu para 518 em 2009 e 446 em 2010. Estes números são os maiores nos últimos anos, precisamente a década governada pelo PT. Em 2012 foram 873 greves nas quais 95% delas os trabalhadores conquistaram reajustes acima da inflação, ainda que em percentuais muito pequenos. Enfim, o ativismo sindical voltou forte em função do alto custo de vida, a despeito da posição despolitizante das centrais sindicais em termos políticos. Enfim, para quem acompanha o sonolento e oficialista movimento sindical, bastaria perceber a retomada do ativismo sindical (economicista) para verificar que algo já havia mudado no chão da fábrica.
O governo indica sua intenção de aproveitar – de fato não possui alternativa – o protesto popular e as “energias cívicas” para simular uma negociação com movimentos sociais e também com 27 governadores mais os prefeitos das capitais. Enfim, um genérico Pacto Nacional destinado a elaborar um Plano Nacional de Mobilidade Urbana. Somente os tolos podem supor que ocorrerá a melhoria dos serviços públicos e tudo sugere a ação do velho dom de iludir do que um sério esforço para reformar o sistema. Não por acaso, a primeiro “pacto” é destinado a garantir a “responsabilidade fiscal”, ou seja, uma cláusula de segurança que afirma a decidida disciplina na defesa da política econômica, a maior fonte de todos os males nacionais. É um sério golpe aos keynesianos e aqueles que afirmavam para comodidade própria, que “este governo está em disputa”. Ora, todo governo está em disputa, mas não há que ocultar o fundamental: diante da pressão das ruas, o opção governista pela manutenção das bases econômicas do pacto de 1994 (Plano Real) não somente mantém o mal estar como ampliará a insatisfação com o sistema político.
Na ausência de uma esquerda com protagonismo de massas (PSOL, PSTU, PCB e POC), é óbvio que a Rede Globo cumpriu um papel “dirigente” e segue na tentativa de ordenar “o sentimento da cidadania por mudança”. Mostrou força, muita força. É claro que não podemos ignorar o fato óbvio: a emissora é tão repudiada pelos manifestantes quanto os partidos, a tal ponto que seus repórteres não trabalham com identificação e quando o logo do monopólio aparece nos microfones é tão somente para o caso dos jornalistas que transmitem desde helicópteros e as alturas de edifícios. Nas circunstancias atuais, o monopólio entendeu que ainda não era hora de ir por tudo, razão pela qual afinou o discurso com o governo e decidiram caminhar juntos por mais algum tempo. O esporte é uma mercadoria importante no balanço do monopólio.
Do lado do
governo a situação é muito precária. Dilma jamais foi testada como líder de
massas. Será um imenso desafio para ela, sobretudo porque após 10 anos de
exercício de governo a presidente já não pode mais responsabilizar o governo
anterior, de FHC, pelos problemas do país. Ademais, as contas não fecham.
Ampliar investimento quando as pressões para uma desvalorização do real se
fazem sentir com mais força a cada dia, constitui um cenário pouco provável,
especialmente quando o investimento deve ser dirigido para os setores sociais.
A pressão para desvalorizar a moeda é mais intensa e a possibilidade de um
tradicional ataque especulativo contra o Real não deve ser descartada. Por fim,
benesses fiscais com as quais pretendia compensar as perdas das distintas
frações do capital, revelam também seus limites e não faltam vozes “realistas” no
governo que anunciam a necessidade de conter o “gasto corrente” e mesmo o
“investimento”.
Poderia Dilma
encabeçar um governo efetivamente reformista
no sentido progressista da expressão? Poderia encabeçar um movimento de
renovação nacional que o PT rejeitou até agora? Nem pensar. Treinados na arte
de atuar pragmaticamente, o governo seguirá aferrado aos interesses que defende
– o pacto de classe que governa o Brasil desde a implantação do Plano Real – e não
se moverá noutra direção. Ademais, o PT não possui força para tal ainda que
alguns de seus “lideres” comecem a condenar aqui e acolá um ou outro ministro,
“exigindo” uma ou outra medida, revelando a ilusão de superar a crise manifesta
com políticas cosméticas.
As manifestações
recentes mudaram a correlação de forças na sociedade brasileira? Para os
defensores do governo e do pacto de classe encabeçado pelo PT, Lula e Dilma
(latifúndio, capital comercial, capital produtivo nacional e estrangeiro, capital
financeiro e os fundos de pensão) não há razão para supor que o rumo deve ser
outro, radicalmente distinto. No máximo admitem “descontentamento” e certo
“desgaste natural” após tantos anos de governo, mas em hipótese alguma admitem
que existe correlação de forças na sociedade brasileira para impulsionar o país
para à esquerda, ou seja, para um programa ousado de reformas econômicas,
políticas, culturais e sociais.
Neste contexto,
compreende-se que as primeiras reflexões dos ideólogos do governo indicam que
as manifestações representam uma típica “crise de crescimento”, produto da
emergência da nova classe média construída nos marcos de um limitado
neodesenvolvimentismo centrado na esfera do consumo. Algo assim como se a
criatura estivesse disposta a devorar de maneira inconsequente seu criador
diante da possibilidade insaciável que toda classe média possui. Outros, não
menos apologéticos, recomendam a necessidade de levar a sério o “significado político
da juventude” nas “condições concretas de vida no século XXI”. No fundo, todos ainda
observam o conflito como se estivéssemos no confortável terreno da “luta contra
o neoliberalismo”, onde não é necessário enfrentar as duras condições do
capitalismo dependente e subdesenvolvido. Ademais, terminam por esquecer que já
vivemos uma década de governo petista sujeitos, portanto, a “outra lógica na
condução de políticas públicas” e nem por isso as desigualdades e privilégios
aberrantes deixaram de existir. Enfim, o modo
petista de governar já não possui a outrora capacidade de seduzir e o PT
não pode se safar de responsabilidades iniludíveis. Contudo, creio que muito
maior equívoco (e conveniência) cometeram aqueles que julgaram o protesto
iniciado pelo MPL – certamente com uma dose de saudável e inevitável de espontaneísmo
– como se fosse expressão da “direita fascista”. A distância com o povo e a
submissão à razão de estado produz drástica capacidade de crítica.
O governo mudará a direção? Pouco provável. Mas tampouco será insensível diante do novo quadro eleitoral: eis a razão do golpe da chamada “constituinte exclusiva”. Num país acostumado a reduzir os grandes temas da política à mera disputa eleitoral, é natural que o essencial escape a muita gente boa. Afinal, o que, de fato, mudou no Brasil?
Antes do protesto social, o cenário eleitoral indicava uma disputa limitada em torno do “crescimento” e da manutenção da “responsabilidade fiscal”, eufemismos destinados a manter os elevados lucros das frações dominantes do capital e a distribuição de migalhas para o povo. O cenário era de uma disputa eleitoral à direita, controlado pelos assuntos dominantes típicos do cretinismo parlamentar. Após as jornadas de junho, a grave crise social já não pode ser tratada nos marcos da beneficência e da caridade estatal. Os investimentos necessários para uma reforma urbana, por exemplo, não cabem no Ministério da Fazenda, menos ainda quando os Estados Unidos mudam a política monetária e a burguesia brasileira observa com gula as reservas internacionais necessárias para manter sua aventura nos derivativos e na dinâmica megaespeculativa da dívida (interna e externa) garantida pela mais elevada taxa de juros do planeta. Por esta razão a moeda se desvalorizou e a pressão para deslizar ainda mais é enorme. A desvalorização ocorrerá sob controle ou a sofreremos de maneira caótica tradicional?
O protesto
social e o aprofundamento da crise econômica mudaram o confortável cenário
eleitoral então existente para as classes dominantes e seus partidos (PT e
PSDB, o consórcio petucano). Após a perplexidade da presidente e seus
assessores, a resposta do governo foi o anuncio do golpe denominado
“constituinte exclusiva” e do “plebiscito”, ambos destinados a dar curso
parlamentar a ira popular. Trata-se de uma prova incontestável do apego ao pacto
dominante. Aos defensores e ideólogos do governo se esforçam para criar malabarismos
de toda ordem destinados a explicar por que razão um governo de suposta vocação
democrática, em lugar de aproveitar o protesto e colocá-lo a serviço da “mudança”,
decide esvaziá-lo e joga-lo na cova parlamentar.
Uma medida desta
natureza – “constituinte exclusiva” – que ninguém sabe como será feita, é completamente
descabida para enfrentar uma crise institucional. Há, de fato, uma boa razão
para tal: o país não vive uma crise
institucional. Por isso, a proposta presidencial esta tão somente destinada
à solução de questões que interessa ao consórcio parlamentar, mas não a
emergência de um regime efetivamente democrático. A proposta presidencial
pretende a renovação do pacto por cima, sem participação popular. Trata-se de
mais uma tentativa de colocar o país novamente no confortável cenário em que
todos os temas eleitorais podiam ser administrados sem a turbulência das ruas.
Aliás, é muito
significativo da situação política o fato de que Fernando Henrique Cardoso foi
– segundo nos informa o insuspeito jornalista Ricardo Kotscho – o primeiro a ser consultado sobre a tal
“reforma política”, antes mesmo de Lula e do vice Michel Temer (“Só um em cada três brasileiros aprova
governo Dilma”). Alguém ainda pode, honestamente, negar estas evidências?
O ensaio geral foi bom para as classes
dominantes e deixou um grande desafio para a esquerda. O Movimento Passe Livre
conquistou uma vitória que é uma lição ao bom mocismo que marcou a trajetória
recente dos movimentos sociais, iludidos com as promessas de um governo que já
não possui mais possibilidade de atendê-lo pela “política pública”. O Brasil
venceu a Copa das Confederações, a Rede Globo manteve seus interesses
comerciais intactos e mostrou que pode atuar em condições de turbulência com
mais eficácia que o governo. A oposição tucana ainda não encontrou o eixo discursivo
e ama política necessária para indicar seu candidato como favorito nas próximas
eleições. Por isso os tucanos aceitaram o pacto presidencial, ainda que farão
restrições permanentes e não cansarão de afirmar que a coalizão no governo já não
tem competência para administrar o país.
A esquerda (PSOL, PSTU, PCB e PCO)
possui um novo terreno para crescer e seu desafio não é menor: não pode atuar
como se fosse o “espírito crítico” do PT e seu governo ou julgar que sua missão
histórica se limita à realização das
insuficiências de seu berço. É verdade que o PSOL e o PSTU nasceram, ambos, do
influxo do movimento de massas e da crise terminal do PT como organização que
pretendia em suas origens “mudar o Brasil”. Contudo, agora, possuem condições
objetivas para uma inédita redefinição programática longe da ressaca originada
pela plena identidade de Lula e Dilma com a ordem burguesa. Em consequência, a
história abriu novas alamedas para uma esquerda que tem como missão refundar o
radicalismo político no país, longe dos tradicionais acordos realizados por
cima e mais perto do povo que redescobriu as possibilidades do protesto na rua.
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