terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Valter Pomar e o escafandrista


Valter Pomar não aprecia meu estilo literário: quando sou direto, ele o rejeita; quando sutil, não o entende. A linguagem, disse Marx, é a consciência prática, razão pela qual não devemos brincar com ela. No Brasil, a estranha combinação entre a recusa machadiana ao debate público e o bom mocismo dominante nas filas da esquerda convertida à ordem liberal produziu um deserto no qual a conduta avessa à polêmica não parece ser signo de impostura e covardia, mas, ao contrário, de sapiência.

Portanto, quando recebi sua crítica ao meu artigo Dentro da Baleia. A esquerda liberal e a eleição da presidência da câmara dos deputados, considerei uma bela oportunidade para sair da vala comum do silêncio cúmplice sobre questões essenciais, que, finalmente, confina a esquerda liberal à manufatura da opinião pública feita pela imprensa burguesa onde seus principais dirigentes imploram espaço.

No entanto, ao ler o texto de Pomar, recordei de imediato uma antiga advertência de Gramsci quando o sardo, há quase um século, nos Cadernos do Cárcere, recomendava que sempre devemos “ser justos com os adversários, no sentido de que devemos nos esforçar por compreender aquilo que queriam realmente dizer e não se agarrar maliciosamente aos significados superficiais e imediatos de suas expressões”. Pomar, não obstante, foi mais longe: não somente não tomou superficialmente meu parágrafo como pretendeu atribuir sentido oposto ao que escrevi!!!!

Na resposta, Pomar evitou todos os temas espinhosos e o núcleo racional de meus argumentos: a decadência moral, política e programática do PT, que, uma vez mais, se expressa na tentativa de “derrotar o governo”, elegendo um deputado que é expressão acabada da fração financeira turbinada por Maia e garantia última de Bolsonaro/Guedes. Ele reconhece – sempre de viés – “afirmações interessantes” no meu texto, unicamente para não tratar o tema crucial. Aproveitou o registro que fiz sobre o V Encontro para, à maneira de um escafandrista, recuperar seletivamente memórias de um tempo submerso, como se a miséria atual do seu partido não guardasse relação com as escolhas de Lula e Zé Dirceu, essas que, ao fim e ao cabo, o motivaram a se separar de ambos e formar a Articulação de Esquerda.  

Vamos ao ponto central escolhido por Pomar, ou seja, o V Encontro do PT, realizado em 1987.

Pomar pretendeu me colocar contra as resoluções daquele evento ainda hoje considerado pela consciência ingênua de muitos petistas como o grau mais elevado da consciência possível no interior do partido. Mas o que eu, de fato, escrevi? Reproduzo aqui, uma vez mais, pois mais claro não poderia ser:

“O PT nasceu do protesto operário contra a ditadura e do esforço da esquerda socialista, derrotada na luta armada, para avançar na luta pelo socialismo. No entanto, de maneira precoce, aderiu sem inibição à ordem burguesa como qualquer um pode ver revisando as teses vitoriosas no V Encontro do partido em 1987 sob comando de Lula e José Dirceu”.

Ou seja, no parágrafo acima eu indico claramente que, se o leitor revisar aquela antiga resolução e a comparar com o “Plano Nacional de Reconstrução e Transformação do Brasil” divulgado há poucos meses pela Fundação Perseu Abramo ou cotejar com a atuação dos deputados e senadores do partido no covil de ladrões assanhados em votar no candidato da fração financeira e/ou, finalmente, buscar ecos daquele texto nas declarações de dirigentes nacionais ou regionais do partido,  decerto entenderá por que afirmo o fracasso histórico do PT, sua decadência política, moral e programática sem remissão. Afinal, sou eu quem recordou certa grandeza no V encontro, pois, à época, ainda era filiado ao Partido. É mais do que óbvio meu propósito pois, tal como Pomar, na época militante da Articulação, eu já guardei, sem o orgulho indisfarçável que ele ainda exibe, a memória daqueles “dias de glória”, que, posteriormente, não impediram os governos petistas – Lula e Zé Dirceu no comando – de se constituírem em tempo bem curto em administradores mais competentes da ordem burguesa do que os tucanos, até então um adversário confortável. Ora, com o ímpeto de sempre, ambos arquivaram as resoluções do V Encontro como exemplo de um “erro de juventude”, que a maturidade não admitiria mais...

Nesse caso, então, não me defronto com uma apropriação superficial do meu texto por Pomar tal como condena Gramsci, mas para além disso, observo uma surpreendente leitura interessada, que não é capaz de reconhecer o bom português e, em consequência, tenta atribuir ao parágrafo sentido oposto ao que escrevi!!

Qual a razão desse procedimento arbitrário, contrário ao sentido expresso de meu texto?

Bueno, farei breves considerações. Os poucos militantes do PT que ainda se consideram de esquerda e orientados pelo marxismo estão numa situação bem difícil. O grau de adesão do partido à ordem burguesa  é de tal magnitude, que a “esquerda do PT” não possui chance alguma de mudar a correlação de forças internas em seu favor. Ademais, caminhando nesse eterno labirinto, são os mesmos que também defendem a “tese” de que Lula segue sendo a expressão máxima do sentimento popular e que o centro da esquerda brasileira tem como referência o PT e o ex-presidente. Em consequência, não são poucas as vezes que esses mesmos militantes afirmaram a impossibilidade de futuro para a esquerda brasileira... sem Lula e o PT!! Finalmente, nas circunstâncias atuais, não podem estocar contra Zé Dirceu e Lula senão de viés, indicando apenas que eles não eram em 1987 entusiastas das resoluções do V Encontro, embora saibamos que nada seria aprovado naquele evento sem a assinatura de ambos, pois comandavam a tendência majoritária, a Articulação. Assim, Pomar não pode superar a contradição na qual estão metidos e a qual, por sua vez, alimentam!   

O PT abandonou precocemente o combate para a superação da dependência e do subdesenvolvimento. O compromisso que em suas origens afirmou com o socialismo jamais foi  suficientemente profundo para elucidar a luta dentro e contra a ordem, razão pela qual Lula, Zé Dirceu e seus principais dirigentes muito cedo consideraram - ingênua e tragicamente - que poderiam conquistar a cidadania para nosso povo nos marcos do capitalismo dependente sem teorizar e lutar pela revolução social, pela revolução brasileira. Hoje, não há mais o que preservar daquela experiência já superada pelos dinamismos da História. Nem a criança, nem a água suja do banho.

Abaixo, vai o artigo de Valter Pomar.


Um companheiro sugeriu que eu comentasse um texto do Nildo Ouriques, intitulado “A esquerda liberal e a eleição da presidência da câmara dos deputados” e divulgado no seguinte endereço: https://resistentes.org/artigos/dentro-da-baleia/.

Neste texto, Nildo Ouriques critica a tática — defendida por parte do PSOL, adotada pela maioria do PT e pelo PCdoB — de apoiar um setor da direita golpista para (supostamente) derrotar o outro setor, neste momento apoiado por Bolsonaro, na disputa pela Mesa e Presidência da Câmara dos Deputados.

Há muitas afirmações interessantes no texto de Nildo Ouriques, embora geralmente encobertas por um estilo literário que a mim recorda desagradavelmente o de outro autor, que por pudor prefiro não nomear. Exemplos do estilo: “quinquilharias ideológicas”, “digestão moral da pobreza”, “PT, partido que possui a maior bancada no covil de ladrões”, “duas moléculas de lucidez serão suficientes” etc.

Entre as afirmações interessantes feitas por Ouriques, cito a de que temos no governo brasileiro uma “administração liberal da economia” que aplica um “programa de extração keynesiana”. Sendo que, “nas atuais circunstâncias, a derrota do candidato do governo com a possível eleição do tal Baleia Rossi será sobretudo uma vitória do ultra liberalismo”, “uma vitória de Maia e da fração financeira”. Embora a exposição tenha, na minha opinião, várias inconsistências, concordo com o núcleo da tese; aliás, desde o governo Reagan já se sabe que as políticas hoje chamadas neoliberais não são incompatíveis com medidas comumente chamadas de keynesianas.

Há também pontos que a mim parecem frágeis, como denominar de “esquerda liberal” ou de “liberalismo de esquerda” os que defendem participar do bloco de Maia, segundo Nildo para defender o “atual sistema político como se fosse, de fato, a defesa da democracia”. Aceita esta afirmação, o que sobraria de “esquerda” no Brasil? Pouca coisa, como o próprio Ouriques reconhece. Mas ele parece compensar isso com a temerária afirmação de que “o sistema político foi rechaçado em 2018 pela maioria do povo”. Confesso que não sei bem do que ele está falando, até porque “rechaço” é uma postura ativa. E o notável, tanto em 2018 quanto em 2020, é o tamanho da abstenção, dos votos em branco e nulos. Uma atitude passiva, não ativa.

Mas o que mais me chamou a atenção no texto de Ouriques é o que ele diz acerca do 5º Encontro nacional do PT: “O PT nasceu do protesto operário contra a ditadura e do esforço da esquerda socialista, derrotada na luta armada, para avançar na luta pelo socialismo. No entanto, de maneira precoce, aderiu sem inibição à ordem burguesa como qualquer um pode ver revisando as teses vitoriosas no V Encontro do partido em 1987 sob comando de Lula e José Dirceu”.

“Qualquer um pode ver”?

Vou transcrever a seguir um trecho da resolução do 5º Encontro nacional do PT:

“A ALTERNATIVA DEMOCRÁTICA E POPULAR E O SOCIALISMO

  1. A alternativa que apresentamos à Nova República e à dominação burguesa no País é democrática e popular, e está articulada com nossa luta pelo socialismo.
  2. Um governo e um programa democráticos e populares – os dois componentes de nossa alternativa – são o reconhecimento de que só uma aliança de classes, dos trabalhadores assalariados com as camadas médias e com o campo, tem condições de se contrapor à dominação burguesa no Brasil.
  3. É por isso que o PT rejeita a formulação de uma alternativa nacional e democrática, que o PCB defendeu durante décadas, e coloca claramente a questão do socialismo. Porque o uso do termo nacional, nessa formulação, indica a participação da burguesia nessa aliança de classes – burguesia que é uma classe que não tem nada a oferecer ao nosso povo.
  4. As propostas que proclamam a necessidade e a possibilidade imediata de um governo dos trabalhadores evitam a discussão sobre qual a tática, qual a política para alcançar esse objetivo. Na prática, separam a luta reivindicatória da luta política, por não compreenderem a necessidade da acumulação de forças. A retórica aparentemente esquerdista recobre a ausência de perspectivas políticas e uma concepção limitada, atrasada, das lutas reivindicatórias.
  5. Na situação política caracterizada pela existência de um governo que execute um programa democrático, popular e antiimperialista, caberá ao PT e aos seus aliados criarem as condições para as transformações socialistas.
  6. Nas condições do Brasil, um governo capaz de realizar as tarefas democráticas e populares, de caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopólio – tarefas não efetivadas pela burguesia – tem um duplo significado: em primeiro lugar, é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto, um governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; em segundo lugar, a realização das tarefas a que se propõe exige a adoção concomitante de medidas de caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfrentamento da resistência capitalista. Por essas condições, um governo dessa natureza não representa a formulação de uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático popular, e, o que é mais grave, criando ilusões, em amplos setores, na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática e popular”.

Pergunto: com base no trecho citado, é mesmo possível a “qualquer um” constatar que o PT teria aderido “sem inibição à ordem burguesa”?

Para ler o texto integral da resolução (em cuja elaboração Dirceu e Lula não tiveram o papel que Ouriques sugere), buscar aqui: https://fpabramo.org.br/csbh/wp-content/uploads/sites/3/2017/04/07-resolucoespoliticas_0.pdf.

Certamente há algum texto onde Ouriques explica melhor sua posição a respeito. Mas salvo melhor juízo, sua crítica ao que de mais avançado o PT elaborou na década de 1980 indica que – apesar de concordar que “a esquerda brasileira (…) necessita [de] um giro radical” – Nildo aponta no sentido oposto ao que me parece adequado, ou seja, ele aponta em um sentido oposto a uma estratégia democrático-popular e socialista.

Aliás, este é um traço típico de certa ultra-esquerda: jogar a criança fora, junto com a água suja do banho.

Neste sentido, embora eu tenha interpretado de maneira diferente a crítica feita a Arthur Miller em “Dentro da baleia”, acho que para ilustrar sua “tese” Nildo Ouriques fez muito bem em escolher George Orwell.

(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT

6 comentários:

  1. Nildo, tive dúvidas sobre sua frase como foi escrita:

    "...O PT nasceu do protesto operário contra a ditadura e do esforço da esquerda socialista, derrotada na luta armada, para avançar na luta pelo socialismo. No entanto, de maneira precoce, aderiu sem inibição à ordem burguesa como qualquer um pode ver revisando as teses vitoriosas no V Encontro do partido em 1987 sob comando de Lula e José Dirceu”.

    O que está sob o comando de Lula e José Dirceu?

    a) A adesão sem inibição à ordem burguesa? (se afirmativo, faltaram vírgulas para o aposto:
    "...aderiu sem inibição à ordem burguesa, como......em 1987, sob o comando de Lula e José Dirceu").

    b) As teses vitoriosas no V Encontro? (se afirmativo, não faltaram vírgulas, mas leio com o mesmo sentido que o interpretado por Valter)..

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  2. "O PT aderiu..." e "... o partido (PT)... sob o comando de Lula e Dirceu..."

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  3. O Nildo tem mérito de forçar dirigentes do PT "sairem da casinha". O PT está no conforto de formular teses estapafúrdias e interesseiras - a si mesmo - e socar goela abaixo dks militantes, agora transformados em militontos. A crítica não faz mais parte do PT. Desde que se transformou em "Partido da ordem" perdeu todo seu vigor.

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  4. Tinha que ter tirado o “de maneira precoce”. Aí não teria ambiguidade.

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  5. "PT traidor" ou "PT, traidor". Questiúnculas interpretativas não escondem o óbvio, que é o esgotamento das políticas conciliatórias e da rendição incondicional aos interesses do grande capital financeiro nacional e internacional. Pomar passou ao largo do cerne da crítica de Nildo. Isso é o que eles consideram como exemplo do "bom debate". E vamos em frente.... Marcelo Novaes

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  6. A interpretação lógica daquele trecho é a que Pomar fez: que as teses vitoriosas no V Encontro já refletiam a adesão precoce à ordem burguesa. Não foi Pomar que atribuiu ao parágrafo sentido contrário ao que você escreveu. Foi você que escreveu o contrário do que quis expressar.

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