domingo, 29 de dezembro de 2024

Celso Furtado, no beco


Celso Furtado é economista burguês embora seja considerado pelo senso comum um crítico do desenvolvimento capitalista no Brasil. Durante a ditadura, os liberais de esquerda eram em boa medida permitidos e, de fato, a despeito do exílio, jamais deixaram de ser publicados enquanto os críticos marxistas amargavam veto e esquecimento entre nós. A propósito, o clássico Subdsenvolvimento e Revolução de Ruy Mauro Marini foi por nós publicado somente em 2012, mais de quarenta anos (!) após a aparição do original em espanhol. Ruy explicou a dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil; desfrutava de prestígio no mundo - especialmente na América Latina - e era completamente ignorado em nosso meio, como se de fato não existisse. Assim, Furtado e Conceição Tavares - e todos os representantes do estruturalismo cepalino - reinavam soberanos enquanto os críticos marxistas da dependência e do subdesenvolvimento simplesmente figuravam como ilustres desconhecidos.

A despeito de sua filiação burguesa, jamais ignorei Furtado. Ao contrário, li sua obra inteira por exigência acadêmica e obrigação militante. Na verdade, no Brasil a maioria dos economistas "marxistas" durante a ditadura eram keyensianos, o que, ainda hoje, é a norma. E o keynesiano mais importante aqui era, sem dúvida, Furtado, embora ele mesmo se considerasse uma flor rara, irreconhecível no espelho cristalino de Keynes. Não constitui fenômeno nacional esse quid pro quo. O historiador Eric Hobsbawm indicou que, quando estudante em Cambridge nos anos 30, os jovens mais capazes aderiam ao Partido Comunista e escreveu juízo jocoso do clima intelectual britânico pois "os filósofos cumunistas eram wittgensteinianos, os economistas comunistas eram keynesianos... e os historiadores? Eram marxistas porque não havia nenhum historiador que conhecessemos em Cambridge que puedesse competir com Marx, como mestre e inspiração". No Brasil, o fenômeno se repetiu em larga medida por razões distintas. A oposição consentida à ditadura fomentou o liberalismo de esquerda que inexoravelmente encontraria em Keynes seu profeta e também sua catedral, a Unicamp. De resto, Keynes, ainda em 1925 (Am I a liberal?), forneceu um salvo conduto ao liberalismo de esquerda quando afirmou que "the Class war will find me on the side of the educated bourgeoisie". Uma burguesia ilustrada na França ou na Inglaterra? Por favor! Entretanto, a miserável e fetichista definição foi levada a sério entre nós e o resto é História.

Na obra de Furtado, a análise do desenvolvimento capitalista no Brasil continha determinações históricas mas, finalmente, aparecia em grande medida como uma sucessão de erros e decisões equivocadas de política econômica praticados pelos tecnocratas e o então “czar” da economia, Delfim Neto. No jargão furtadiano, determinações históricas e decisões de política econômica conformavam o "modelo de desenvolvimento", uma mistura de progresso burguês, profundas injustiças e soberania limitada. O otimismo do II PND caiu por terra quando em 1975 os clássicos problemas de balanço de pagamentos de um país periférico emergiram com força, obrigando o regime na direção da "abertura lenta, gradual e segura" de Golbery e os interesses da segurança hemisférica do imperialismo estadunidense embalada na política de "respeito aos direitos humanos" de Carter. Após a crise do milagre, Furtado ganhou mais autoridade, a despeito de sua estapafúrdia tese da estagnação (1968) logo desmentida pelo brutal desenvolvimento das forças produtivas promovido pela ditadura amparada na superexploração da força de trabalho e intenso endividamento externo, o útero do rentismo atualmente dominante.

Embora escolado com as modas acadêmicas, fiquei surpreso com a recente publicação de um antigo livro do autor, O desenvolvimento econômico, um mito, pela Editora UBU. O livro é uma reunião de ensaios coligidos de sua fase pessimista. A nova edição não é ingênua, nem tampouco extemporânea: na verdade, a completa adesão dos governos petistas à economia política do rentismo justifica plenamente a recuperação daquele pessimismo que marcou em alguma medida a publicação do célebre The limits to growth, em 1972. É possível considerar o relatório elaborado por uma equipe do MIT - o primeiro grande grito ecologista mundial com influência na periferia capitalista latinoamericana -, uma poderosa ideologia de extração imperialista embora os ecologistas atuais ignorem completamente a trama teórica, política e ideológica na qual são atores coadjuvantes e úteis instrumentos da ideologia dominante. Ora, antes que me acusem de indiferença aos graves problemas ambientais, recordo que  William Pety anunciou, ainda no século XVIII, o caráter destrutivo do sistema capitalista em relação ao homem e à natureza, razão pela qual não ignoro os efeitos ultra-destrutivos da produção capitalista que, naquela época, estavam apenas começando.

A despeito do pessimismo que orienta os ensaios reunidos no livro agora reeditado, a verdade é que o otimismo burguês de Celso Furtado era mesmo incorrigivel e, em consequência, em 1976, ele voltou à cena com a publicação do Prefácio a uma nova economia política. Aqui, nem aroma do pessimismo anterior resistiu à sua formação de economista. O apelo ecologista anterior se dissipou diante da reprodução ampliada da dependência e obrigou o reconhecimento de que "nos países periféricos existem tendências estruturais no sentido da concentração da renda e da orientação da popupança para investimentos improdutivos". A afirmação reconhecia implicitamente o mérito de Ruy Mauro Marini ao afirmar a superexploração da força de trabalho como fundamento do sistema, embora Furtado, precisamente para não fortalecer a autoridade do mineiro de Barbacena, apenas esboçou particular e débil teoria do mercado de trabalho para esquivar a certeira tese da supereploração da força de trabalho!

A reflexão sobre a dependência - e a internacionalização da esfera produtiva sob controle crescente das multinacionais - "voltou" com força em sua vasta obra. Assim, Os limites do crescimento era coisa do passado e os desafios do presente não admitiriam o fim da história para os povos da periferia. Ademais, sua formação histórica - especialmente influenciada por Braudel - tampouco autorizaria a queda na armadilha ideológica do Informe do Clube de Roma, fomentado em escala mundial com imensa força. Hoje, aquela notável e exitosa operação ideológica, atende pelo nome de "crise ecológica" e seus inúmeros derivativos. Não desconheço - repito - o caráter ultra-destrutivo do desenvovimento capitalista em escala mundial, pois longe de ser uma novidade, o atual ambientalismo não guarda relação alguma com os estudos de Marx a partir da relação homem-natureza mediada pelo avanço da técnica capitalista. A monstruosidade do subdesenvolvimento jamais ingorou os problemas mundiais mas também não  desprezou nossa especificidade, pois não faltará quem diga - sustentado em argumentos científicos – que, para salvar o planeta, teremos que condenar dois terços de nossa gente à miseria irremediável.  A crise ecológica agora aparece como um beco sem saída, um grito de desespero, um lamento interminável destinado a criticar com certa dose de inveja inocultável o desenvolvimento capitalista nos Estados Unidos, India ou China. É expressão, portanto, do pessimismo, num mundo sem revoluções, sem protagonismo das classes subalternas, sem superação do capitalismo. Os guetos se multiplicam no sistema eleitoral com a eleições de indígenas que se proliferam na representação parlamentar com a mesma velocidade da devastação de suas terras, cultura e costumes. 

Diga-se de passagem, o entusiasmo de Vladimir Saflate pela obra é onocultável. Entretanto, é entusiasmo ordenado pelo pessimismo! Há, de fato, um pessimismo frankfurtiano subjacente a toda filosofia acadêmica dominante entre nós para o qual a antiga advertência de Lukács jamais foi considerada. A propósito, o húngaro afirmou que a despeito da importância para a intelectualidade jovem alemã, as contradições da escola de Frankfurt eram até proveitosas, "porém, se o propósito é aprender algo, há que separar-se da escola de Frankfurt". Mais adiante em resposta a Abendroth, o filósofo marxista afirmou categoricamente que os "estudantes podem passar perfeitamente seus primeiros anos em Frankfurt, mas logo têm que sair dali". Ocorre que no Brasil, dominado pelo ambiente acadêmico e suas modas mais ou menos fugazes, Frankfurt é muito mais que estação de passagem; figura efetivamente como eterno "porto seguro", uma espécie de desaguadouro natural de toda sabedoria. A vida intelectual é muito dura na periferia...

Eu lamento a recuperação parcial de Furtado embora não ignore sua função ideológica. No Brasil não há, de fato, um debate econômico fecundo pois as universidades estão tomadas pela neoclássica e os supostos críticos - keynesianos e "heterodoxos" de muitas cores - respeitam os dogmas liberais que sustentam a ordem burguesa com uma paciência cínica e cúmplice como meio de ascensão social e carreirismo autorizados pelo pacto dominante do liberalismo de esquerda, cuja maior expressão é o terceiro mandato de Lula. Nesse contexto, o economista "tortura os números" e as evidências de tal modo que faz corar um estudante de segunda fase. De resto, ao contrário das forças existentes na transição da ditadura para o regime liberal burguês, não há um movimento de qualquer natureza pra varrer a ignorância e a ideologia que formam os economistas em todas as universidades do país. Nesse contexto, os últimos escritos de Furtado - "O longo amanhecer", "Brasil construção interrompida", "Em busca do novo modelo", e mesmo a trilogia da fantasia, entre outros - constituem apenas um alerta sobre a deformação dos economistas e um testemunho da derrrota pessoal, a despeito dos bons combates que o paraibano travou. É claro que permanecerá sempre útil o seu Formação econômica do Brasil, um livro de história econômica que a exemplo de outros ideológos burgueses pode e deve ser lido. Entre os economistas é frequente que mesmo um autor reacionário ou conservador possa dar boa contribuição na historiografia. É o caso, por exemplo, de Schumpeter no contraste entre a pedestre e ideológica Teoria do desenvolvimento econômico e a obra póstuma no terreno da historiografia, História das doutrinas economicas. 

Ao final de sua longa carreira, Furtado ainda esboçava certa criatividade e o antigo incômodo que sempre o acompanhou. A propósito dos descaminhos do Brasil, anotou em 1992 que "na melhor das hipóteses, retomamos o crescimento sem nos afastar do subdesenvolvimento". Contudo, a verdade é que seus últimos escritos não passavam de mensagens em garrafas pois o desenvolvimento capitalista rentístico turbinado por governos tucanos, petistas, ultra-liberais e agora, petucano, nem mesmo audiência permitem ao velho combatente do desenvolvimentismo. O otimismo burguês e humanista que sempre o inspirou perdeu aderência. Agora, de maneira molecular, a rendição intelectual atende pelo nome de pessimismo.

 Revisão: Junia Zaidan

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