segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Sobre a incompatibilidade entre universidade e cultura
A propósito do UFSCTock


A realização do UFSCTock despertou a atenção para um problema sério que precisamos enfrentar: a alienação cultural que a experiência universitária representa na vida de milhões de pessoas. Até agora foi demasiadamente cômodo denunciar as restrições orçamentárias perenizadas, “lutar” por melhores salários, apresentar projetos “interessantes” e resumir nossa “militância” no surrado bordão da “luta contra o neoliberalismo”. Cômodo, demasiadamente cômodo! Enquanto parte considerável da esquerda espeta o “neoliberalismo” (nas circunstancias atuais, um objeto não identificado), a universidade se transformou num valioso instrumento de alienação científica e cultural em favor das classes dominantes. Eu sei que a maioria considera este juízo um exagero encantada que está com o academicismo. Contudo, estou convencido que a universidade divide com a evangelização do país e o abobamento televisivo, as glórias das três instituições mais importantes para a alienação cultural. Entretanto, a maioria de nós ainda fala da universidade como se estivesse efetivamente vivendo na casa do saber e da cultura. Grande parte dos estudantes também, de maneira contraditória, depositam suas esperanças na instituição universitária como instrumento de criação intelectual (científica e artística) ainda que o cotidiano negue terminantemente esta possibilidade. A propaganda estatal alimenta o mito de que a universidade é a grande responsável pela pesquisa no país ou que, no nosso caso, as universidades públicas são “indiscutivelmente melhores que as demais”. Ora, o ensino universitário privado no país é de péssima qualidade. Nestas circunstâncias, exibir o indisfarçável pequeno orgulho meritocrático diante da miséria a que estão condenados milhões de estudantes que pagam ensino caro e ineficiente, equivale, como denunciou Marx, a comodidade de ser liberal a custa da Idade Média.

A universidade brasileira esta sofrendo uma lenta – na verdade lentíssima – mudança. As classes populares começam a frequentar o campus antes dominado pela classe média alta e média. Há alguns anos, também existiam pobres entre nós, mas a hegemonia cultural e o clima que se respirava era, inconfundível: todos, quase todos, aspiravam a vida classemedia que agora orienta a ideologia do país marcado pela suposta “emergência” de uma “nova” classe média. É a ideologia da superação do subdesenvolvimento e a dependência pela via do consumo barato (e passageiro!). Há agora, é verdade, pobres e negros entre nós. É melhor assim. Mas devemos ser realistas: no fundamental nada mudou.

Na exata medida em que a antiga ameaça de abrir a universidade foi se transformando em uma necessidade para a classe dominante, as frações partidárias chegaram ao consenso que era mesmo tão inevitável quanto necessário para a acumulação de capital democratizar algo do ensino superior. O mercado de trabalho está aquecido repetem os economistas, razão pela qual a expansão das vagas públicas é uma demanda do capital. No entanto, no interior do campus a boa nova encontrou uma universidade ainda mais hierarquizada. É hoje notório que a graduação representa um colégio de segunda importância para o “projeto pedagógico” que nos dirige. É na pós-graduação onde os professores (e as autoridades) criaram o mito do ethos cultural e científico. Não que as aulas dos programas de pós-graduação sejam melhores. No final das contas, o colapso pedagógico é completo e não respeita o andar de cima. A consequência deste projeto é visível, pois a graduação é um fardo que, após a terceira fase, torna-se pesadíssimo para os estudantes. É neste período que a maioria dos alunos começa calcular o tempo que falta para sair daqui.
É aqui que a “ocupação” realizada pelo Ufsctock durante uma semana revela debilidade. O que pode um evento diante do cotidiano curricular alienante? Pouco, quase nada. O que pode a “semana de ocupação” diante do veto à cultura que organiza a vida universitária?

Não quero me estender sobre o nome escolhido (UFSCTock) porque mais fora de lugar não poderia ser. Não vivemos na década de sessenta e estamos longe de qualquer movimento de rebeldia naquela direção, ainda que o mal-estar seja profundo. A propósito, é significativo que em nome de resgatar uma tradição na UFSC (não é a primeira vez que este evento ocorre), a iniciativa também implica em reprodução neocolonial.

Nestas circunstâncias, o que poderia, então, uma ação cultural? Algo precisa ser feito. A energia de 4.000 punhos ao ar no auge político do festival revela apenas que são muitos os que estão, de fato, exaustos com a falta de vida cultural na universidade. Revela também que centenas deles – com pouco dinheiro no bolso e não menor falta de tempo – não possui outro espaço de diversão senão o campus da Trindade. As 14 bandas que lá se apresentaram nada podem contra a universidade alienante, mesmo que 4 delas composta por estudantes. É a luta entre o evento e a estrutura. O que pode o evento contra a estrutura? É preciso reconhecer primeiro, e enfrentar depois, o fato de que a arte esta proibida aos universitários da mesma forma que em lugar de uma cultura ampla, a universidade limita o horizonte cultural de todos nós. Aqui padecemos todos os males da cultura dominante. O talento dos estudantes, professores e técnicos está limitado pela estrutura curricular, pela falta de tempo programada pela formação, pela pressa industrial em quase tudo e pela mercantilização crescente da vida universitária.

O neo-desenvolvimentismo de Lula-Dilma rendeu improváveis aliados no campus, pois os projetos nos ministérios bombaram recursos para as universidades... Bem, estes projetos rendem também suculenta “complementação” salarial para um nutrido grupo de professores, razão pela qual possuem salários superiores ao teto legal. No final das contas, o salário é a parte menor da remuneração de muitos professores, complementa o salário de alguns técnicos e alimenta bolsas aos iniciados... Os recursos são públicos, sua apropriação é pública e a universidade não poderia ser mais burguesa, cumprindo sua função na divisão social do trabalho de um país dependente. Esta posição requer a produção de técnicos bem formados que necessitam figurar como especialista, ou seja, um bárbaro moderno. Enfim, um homem sem cultura. Um profissional, no sentido estrito do termo. O que pode valer o bordão “ars e scientia” nestas circunstancias? Na prática, nem arte e nem ciência. A universidade presta serviços mas não produz ciência. E não existe tempo nem função para a cultura.

Em consequência, o talento dos universitários deve buscar refugio ou realização fora do campus. A arte cênica não rima com Automação da mesma forma que balé não rima com Direito. A quantidade de gente que toca, dança, pinta, filma ou escreve fora da UFSC – sendo aluno aqui – é imensa. Imensa! A ocupação Ufstock, neste contexto, não produz efeito. É preciso que produza. É preciso, além de um evento, uma ação cultural de vanguarda mais profunda. A virtude do Ufstock é sua impotência, seu alerta. É possível que tenha despertado muitos para o tema, não duvido. A única certeza que temos é que não há política oficial da reitoria para responder a esta decisiva questão. No limite, a reitoria permite aquilo que o diretor de centro proíbe. É pouco. À cultura esta reservada tão somente atividades protocolares. Cabe, portanto, uma ação dos alunos, os únicos inteiramente dispostos a enfrentar a questão cultural sem os limites dos professores e técnicos. Muitos se somariam a criação de um movimento cultural na UFSC contra a alienação e a estupidez que nos governa. A cultura brasileira é vital, mas esta subordinada ao colonialismo cultural criado pela poderosa cultura industrial dos países metropolitanos. A cultura brasileira é desprezada entre nós. Os “universalistas” esquecem que toda cultura é antes de tudo, cultura nacional. A indústria cultural hollywoodiana, para mencionar um caso exemplar é, antes que universal, apenas cultura nacional estadunidense.

A ocupação do campus, especialmente no final de semana, foi tão importante quanto insuficiente. Foi um passo sem consequência? A ocupação – que custou suor e disciplina a um grupo quase heroico de estudantes – preparou o terreno para mais um evento ou os alunos iniciarão um movimento, de raízes profundas, capaz de mobilizar milhares para o fazer artístico? Neste caso, não há alternativa: mais que ocupar o campus, a ação cultural deverá ser dirigida contra a universidade que nos governa. Mais do que exibir aqui dentro o que se produz marginalmente lá fora, necessitamos um movimento destinado à criação permanente da cultura e da arte no cotidiano da instituição como caminho para superação da alienação cultural que orienta a formação profissional e domina a sociedade brasileira. Contra a omissão das autoridades e o silencio cúmplice de outros tantos. Um movimento dirigido a realizar o bordão que podemos ler no escudo da instituição (ars e scientia) ou figurar como apêndice “rebelde” da alienação em massa do colonialismo cultural que atualmente se reproduz quase sem crítica. 

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Programa Faixa Livre na Rádio Bandeirantes do Rio de Janeiro

Caros amigos,

é sempre um prazer debater com Paulo Passarinho, no Programa Faixa Livre, a evolução da crise brasileira e a conjuntura latino-americana. Na última edição, realizada ainda quando estava em Buenos Aires, discutimos a grave crise brasileira que ainda não exibiu sua completa vitalidade. Meu comentário de 19 de julho - dia da Revolução Sandinista - centrou-se sobre a situação do balanço de pagamentos e as consequências das jornadas de junho.

http://www.programafaixalivre.org.br/index.php?id=1520&participante=7877&tipoPrograma=Entrevistado

Abraços!

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Dos poderes presidenciais

O Brasil nunca conquistou uma democracia plena. O regime político oscila entre a ditadura e a democracia restringida. Uma democracia onde a maioria efetivamente tenha poder foi historicamente descartada e não figura no horizonte do pacto de classes que atualmente nos governa. No contexto de uma democracia restringida, a linha dominante é a conciliação de classe que assegura um paraíso terrenal para a classe dominante e algo muito semelhante ao inferno para as classes populares. Contudo, não elimina – ao contrário, exige – uma considerável dose de violência como ficou demonstrado nas jornadas de protesto de junho. A eleição de Lula em 2002, após oito anos de aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento praticado por Fernando Henrique Cardoso, representava um desafio na política brasileira, pois o presidente João Goulart foi, de fato, o último político que pretendia governador afinado com os trabalhadores a partir de uma agenda reformista que era ao mesmo tempo virtude e limitação.

Quando Lula venceu, até mesmo setores da classe dominante julgavam que teriam que perder algo. Após a estafa praticada por FHC, o mais amplo assalto ao estado que temos notícias na política brasileira, a maioria do povo esperava que com o novo presidente, “nossa hora chegou”. Em consequência, esperavam não apenas políticas públicas fortes (inversão das prioridades), mas, sobretudo, participação popular, influencia direta no governo. Lula, o PT e a CUT, queriam o contrário: aceitaram a democracia restringida e assumiram plenamente a tradição conciliatória brasileira desde uma perspectiva da classe dominante. O primeiro mandato, conquistado somente no segundo turno, foi mesmo conservador. No segundo, na mesma medida em que ampliava programas sociais também sepultava para sempre as possibilidades de participação popular. O orçamento participativo, peça chave de propaganda do PT e instrumento através do qual, setores populares decidiam aspectos da política pública, foi simplesmente abandonado. Esta é, com efeito, a principal característica do petismo no governo: jamais convocou o povo para uma batalha, para uma luta. Qualquer batalha, qualquer luta.

O acomodamento à ordem burguesa não se limitou ao abandono de práticas democratizantes (orçamento participativo) – fato que terminou por limitar drasticamente a promessa de “inverter prioridades” – mas avançou noutra direção mais perversa. Lula e Dilma praticaram um enfraquecimento voluntário do presidencialismo, cujo resultado não poderia ser outro que fortalecer ainda mais o pacto de classe que organiza o Plano Real em prejuízo de uma política democratizante e, como gosta de afirmar a esquerda liberal, a prática republicana. 

O presidencialismo no Brasil possui profunda legitimidade popular. Não por acaso, o parlamentarismo sempre surgiu como golpe das classes dominantes contra ameaça de democratização. Contudo, foi derrotado duas vezes por meio de plebiscito popular! Na última, a maioria dos partidos, a totalidade da imprensa, os acadêmicos, eram parlamentarista e ainda assim levaram uma sova. Esta é uma das razões pelas quais existe na ampla maioria do povo enorme desconfiança no parlamento, como podemos novamente observar depois das jornadas de junho. Contudo, a presidente Dilma decidiu fortalecer o parlamento! Qual a origem desta renuncia voluntária, desta desatualizada e inédita servidão voluntária? Qualquer coisa, menos ingenuidade. Ocorre que a presidente – como de resto a totalidade da classe dominante – precisava tirar o povo da rua.  No fundo, a presidente Dilma sabia que em nossa tradição, por mais que o problema era na origem “municipal”, a política nacional, razão pela qual o descontentamento popular atingiria todos, especialmente a presidência da república. O povo com sabedoria cravou um limite nos dias de vários prefeitos e governadores. Na prática, podemos afirmar que a “política de governadores” embutida no pacto de classe que é sustentado pelo Planalto, naufragou, especialmente quando o prestígio dos governadores do Rio de Janeiro e São Paulo saíram gravemente comprometidos do último grande protesto. Irremediavelmente comprometido, diria! A presidente também possui consciência que a raiz de todos os males é precisamente aquele pacto de classe – e a política econômica subjacente – que governa o país há 18 anos. Em consequência, tinha plena consciência que o prejuízo seria considerável. Não à toa Dilma recorreu em primeiro lugar à FHC – antes mesmo de Lula! – e “sugeriu”, além da “constituinte exclusiva”, um plebiscito ao congresso nacional na esperança de que todos dividiriam o inexorável prejuízo. A proposta não era em nada ousada, mas tinha a “virtude” de alertar aos nobres parlamentares de que era preciso fazer algo antes que fosse tarde demais. Nada muito ousado. Na prática, a proposta presidencial acolhia o clamor popular para impulsionar as “reforminhas” que o parlamento cozinhava há anos e representa precisamente a pauta que afiança o consórcio petucano, esta aliança estratégica entre petistas e tucanos de alternância e condução da ordem burguesa.

Nas jornadas de junho, cada um fez seu papel. A presidente sugeriu ao congresso nacional a constituinte exclusiva e o plebiscito. O congresso nacional, tão logo as ruas esvaziaram, atuou de maneira exemplar: nada poderá ser feito para as próximas eleições. O Supremo, o Tribunal Eleitoral, o senado, a câmara de deputados, a ordem de advogados – todos – em uníssono, preocupados e empenhados com a modelação das vozes populares nos poderes da república deixaram claro que no curto prazo nada poderá ser feito. Por sua vez a presidente Dilma praticou o chamado “presidencialismo de coalizão”, a tese liberal que nenhum presidente após 1988 deixou de praticar. Naquela época, e em menor escala agora, o propósito do “presidencialismo de coalização” é sempre o mesmo: diminuir a intensidade do conflito social em favor da classe dominante, esterilizá-lo ao máximo e traduzi-lo quando possível em qualquer fórmula parlamentar. O “mudancismo” que predominou na Constituinte de 1988 era expressão acabada da política destinada a evitar um ajuste de contas com a ditadura e representou um seguro eficiente contra qualquer participação popular na chamada Nova República; não por acaso, o “teórico” do “mudancismo” era precisamente Fernando Henrique Cardoso contra o potencial transformador da Revolução Democrática que se expressou no movimento das “diretas já”, campanha devidamente arquivada e substituída pelo colégio eleitoral, via que sepultou o voto direto do povo. Por isso, a pauta do plebiscito sugerida pela presidente não era coisa de outro mundo, mas a conhecida venda de gato por lebre: o povo, de maneira espontânea, queria influenciar diretamente nas grandes decisões e o que lhe apresentaram foi o aperfeiçoamento do sistema político que o oprime. Afinal, alguém pode mesmo acreditar que o financiamento público de campanha eleitoral, a adoção do voto distrital, a fidelidade partidária, o fim do suplemente de senador entre outras bijuterias poderiam mesmo dar legitimidade às políticas da república apodrecida?

É neste contexto que a renuncia da presidente Dilma ao exercício do presidencialismo – com seus poderes e responsabilidades respectivas – é de extrema gravidade. Também é ilustrativo da farsa do “presidencialismo de coalizão” o fato de que foi precisamente o vice-presidente da república, Michel Temer, o responsável por condenar a proposta do plebiscito! Afinal, se o “presidencialismo de coalizão” não funciona nos momentos cruciais, por que razão mantê-lo?  A presidente e o consórcio petucano que ela administra, pretende manter as coisas exatamente como estão, inibindo qualquer movimento que possa terminar numa Revolução Democrática que finalmente abriria o país para as grandes transformações que o povo ainda espontaneamente exige. Neste contexto, não se trata de eliminar o segundo suplente de senador, mas de abolir o senado e instituir um parlamento unicameral! Não se trata de propor uma “constituinte exclusiva” – já devidamente arquivada – mas de exercer as possibilidades outorgadas pela constituição para fazer valer o presidencialismo na sua plenitude já! Não se trata de fortalecer o “presidencialismo de coalizão” – que agora, no governo petista, inclui até mesmo a oposição e não somente a “base aliada” – mas de erradica-lo para sempre. Tampouco se trata de privilegiar o “diálogo” com o parlamento, mas de exercer a legítima pressão sobre ele, pois as grandes manifestações mostraram – como agora até mesmo os céticos podem observar – que somente assim ele pode se mover. Enfim, num país administrado pelo abuso das medidas provisórias, editadas na sua absoluta maioria em aberta violação à constituição, a simulação do “diálogo” presidencial com o parlamento e o suposto respeito à harmonia entre os poderes é menos que uma farsa: é uma tragédia que perpetua os poderes da classe dominante e seus privilégios.

Os defensores (idealistas) da presidente afirmam que ela poderia convocar o povo para novas manifestações em favor de uma ampla reforma política e não mera alteração na legislação eleitoral; também indicam que a presidente poderia mudar a orientação da política econômica já, ainda que tenha optado por avançar na direção de medidas ainda mais conservadoras; poderia, ademais, buscar o apoio popular para aproveitar a mudança na correlação de forças na sociedade em favor de um programa mais ousado para o que resta de seu mandato, mas optou por seguir na linha de trabalhar “construtivamente” com o congresso nacional; repetem que a presidente poderia mudar a política econômica, mas segue cada dia mais aferrada a ortodoxia neoliberal, desnacionalizando o petróleo, privatizando portos, elevando as taxas de juros e concedendo migalhas ao social como ficou evidente no encontro com os prefeitos de todo país. Inutilmente tentam ocultar-se no que o governo poderia ser para evitar a necessária racionalização daquilo que ele realmente é. Talvez este comportamento explique o fato de que as manifestações do dia nacional de paralisação (11 de julho) foram infinitamente menos fortes que o protesto “espontâneo” originado pelo Movimento Passe Livre, ainda que sua pauta era mais precisa e “histórica”. A tentativa de reconectar “os movimentos sociais” com o governo Dilma falhou rotundamente! Ainda subsiste, certamente, parte da fidelidade eleitoral em relação ao governo da presidente, mas não mais a capacidade de mobilização que agora somente se manifesta contra o governo.

Estes novos “idealistas” esquecem que o tempo no qual as classes subalternas supunham que “ruim com Dilma, pior sem ela” foi, finalmente, superado. No novo cenário, aberto pelas jornadas de junho, os movimentos sociais, o sindicalismo combativo e independente, os intelectuais livres e os partidos de esquerda (PSOL, PSTU, PCO e PCB) devem alimentar sem vacilações um novo radicalismo político destinado a passar a limpo a República. A “crise da democracia” – surrado bordão do liberalismo novamente utilizado para “explicar” as jornadas de junho – não pode ser resolvida com as parcas medidas aprovadas no parlamento, com os pactos sugeridos pela presidente ou ainda com a “legitimidade” do novo governo que elegeremos em 2014. Agora, ao contrário de outras épocas, ficou bastante claro pra milhões de pessoas que somente uma Revolução Democrática destinada a afirmar a força das maiorias, aqui e agora, poderá abrir caminho pra um novo período histórico em que a simulação democrática, o eterno pacto de classe que perpetua os privilégios de classe e a dependência do país, não tenha mais lugar nem mais legitimidade entre nós.

domingo, 7 de julho de 2013

Um cidadão do mundo


Tenho grande apreço por Milton Temer. Gosto de suas fidelidades, mesmo aquelas que só se conservam porque estão 35 graus abaixo do zero. É notável que este almirante húngaro sobreviva nos trópicos, numa das mais belas capitais dos trópicos latino-americanos! Eu suponho que ele alimenta certa fé e esperança na Grande Rússia, razão pela qual considera que Putin enfrentaria os gringos no episódio do Snowden em função das crescentes contradições entre a potência imperialista e o velho “espírito russo”. De minha parte, observo mais os acordos entre ambos do que os conflitos, razão pela qual sou mais cético. Mas resulta que Putin considera os segredos de estado do ex-funcionário da Agencia Nacional de Segurança dos EUA demasiadamente importantes para ficarem limitados à área de transito do aeroporto de Moscou – por que de fato, lá não cabem – e muito melhor seria se fossem finalmente confinados nas enormes e majestosas salas do Kremlim. Putin possui muitos planos. Ele agora considera que Snowden pode permanecer com a neve até os joelhos para sempre se – e somente se – não divulgar nada mais contra “nossos sócios americanos”, dito assim, de maneira ampla. Você sabe tanto quanto eu que um “sócio” é um ser genérico. Pode ser tão próximo quanto uma amante e tão distante quanto um concorrente. Snowden tem segredos de Estado (de muitos Estados!) e esta não é uma situação confortável. Nunca foi. Agora ele vive no aeroporto de Moscou e a suspeita de que o presidente Evo Morales estava transportando Snowden em seu avião de regresso da Rússia, levou os sócios europeus dos gringos à plena submissão; por isso, o presidente boliviano foi impedido pelos arrastados europeus de voar pelos céus da França, Itália, Portugal, Espanha e aterrizou, quase sem combustível, na Áustria. Quem diria que a “ilustrada” França e sua miserável vida política atual, com suas pequenas livrarias e aquela enorme Comuna chegaria tão baixo? Bravos e lúcidos mesmo somos nós, os latino-americanos, que queremos receber Snowden como reconhecimento pelos serviços prestados à humanidade, contra a razão de estado imperialista e a favor da liberdade individual que os liberais já não podem defender por impotência adquirida. Enfim, passaporte boliviano, venezuelano e nicaraguense para o estadunidense Snowden – ele pode escolher – para permanecer entre nós, agora como um verdadeiro cidadão do mundo e passaporte de uma república irmã. Rosário, Tierra del Che, 7/7/2013.   


segunda-feira, 1 de julho de 2013

Entrevista a Rádio Comunitária de Mendoza

O fenômeno das rádios comunitárias é importante em toda a América Latina. Enquanto muitos governos se negam a democratizar os meios de comunicação - mesmo nos marcos da legislação vigente - centenas de comunicadores sociais lutam pela democratização da informação e praticam a crítica aos monopólios dos meios de comunicação que seguem fabricando a opinião pública ao gosto da classe dominante.

A avaliação da crise brasileira foi feita para uma das rádios comunitárias de Mendoza, Argentina, ao jornalista Eduardo Latino.

Entrevista no Programa Faixa Livre

Abaixo minha contribuição no PROGRAMA FAIXA LIVRE, fronteira crítica do jornalismo brasileiro, no qual tenho omprivilégio de participar há vários anos, comentando os temas de Nuestra América. Nesta edição, uma mesa de reflexão sobre os protestos sociais que ocorrem em todo o país em defesa de reivindicações elementares para a maioria da população. O Faixa Livre é conduzido com talento por Paulo Passarinho (com produção de Celeste Cintra e Sandra Priore) e contou com a presença de Carlos Eduardo Martins e Gabriel Strautman.



Análise do protesto social no Brasil

A entrevista abaixo foi ao ar no sábado, 26 de junho, no programa Asuntos Públicos em Buenos Aires. Fiz uma breve avaliação sobre as condições econômicas que justificam o protesto social e que revelam a gravíssima situação do país produzida por 8 anos do governo de Fernando Henrique Carodoso e mais 10 anos de governo do PT (Lula e Dilma).

Enfim, expresso a convicção de que a política econômica em curso esgotou uma vez mais suas possibilidades. Necessita, em consequência, dose adicional de legitimação política que o consórcio petucano (aliança entre o PT e o PSDB no terreno da economia) necessita para enfrentar o ano eleitoral (2014). Nas ruas, a energia ainda espontanea e de certa forma caótica, contesta a ordem social injusta, exibe os limites do capitalismo dependente e exige uma mudança radical que os partidos da ordem não proverão.

Assista aqui a entrevista!

Ensaio geral

O acordo entre a presidente Dilma e a Rede Globo de televisão, expresso no Jornal Nacional da emissora na sexta-feira (21/06/2013), apaziguou momentaneamente as manifestações ocorridas no Brasil, mas não eliminou as causas profundas do conflito. Não devemos esquecer que os principais jornais e TVs do país não vacilaram em caracterizar o protesto liderado pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento abusivo da tarifa de ônibus na cidade de São Paulo como ação de “criminosos e vândalos” que como tal teriam que ser tratados pela força da lei. Em consequência, a polícia do governador de São Paulo – o socialdemocrata Geraldo Alckmin – atuou de maneira tradicional com a intenção de colocar de maneira rápida as coisas no seu devido lugar. Agora, a maioria dos analistas considera que grande parte da revolta foi apenas uma reação contra a truculência da polícia; mas esta é uma versão muito confortável para a classe dominante e seus partidos.

É inegável que a violência contra os manifestantes (que também atingiria jornalistas) ajudou a mobilizar muita gente, mas a rapidez com que milhares de pessoas atenderam ao chamado de um movimento que não contava com mais de 40 militantes orgânicos no coração burguês do país é resultado de um mal estar profundo da sociedade brasileira que hoje todos são obrigados a reconhecer. Neste contexto, tanto os liberais e a direita tradicional, quanto a os partidos no governo (PT e PC do B), reconhecem que as coisas, de fato, não vão bem.

A propaganda oficial afirma que desde o mandato de Lula o governo tirou da miséria 40 milhões de brasileiros e outros 30 alcançaram a “classe média”. Não devemos desconhecer que o Brasil, como país dependente e subdesenvolvido, esta atravessado pela desigualdade. A política social praticada nos últimos 10 anos – com programas de distintos tipos atendem a quase 40 milhões de brasileiros – é incapaz de enfrentar a “questão social” e menos ainda cumprir a promessa de Dilma em seu discurso de posse de “erradicar a miséria”. As leis da economia política são difíceis de dobrar. Ademais, mesmo com programas sociais, não havia motivo para ignorar que 76% da população economicamente ativa recebe até 3 salários mínimos, ou seja, o equivalente a R$ 2.034,00 num país onde o salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE (órgão dos sindicatos) é de 2.873,56. No início do ano o governo divulgou o novo salário mínimo garantindo pequeno ganho real. Contudo, o DIEESE informa que quando o salário mínimo era de R$ 622 (dezembro/2012), o salário mínimo necessário era de 2.561,47 e, depois do recente aumento (janeiro/2013), o salário mínimo subiu para R$ 678,00 enquanto o salário mínimo necessário saltou para 2.873,56. Enfim, o reajuste oficial cresceu R$ 56,00 e o salário mínimo necessário aumentou em mais de 5 vezes: R$ 312,00!!!! O poder de compra desaba!
A resposta massiva à convocatória do MPL tem, portanto, razões econômicas profundas que somente o mito de uma “sociedade classe média” poderia ocultar. Não por muito tempo, como agora se observa. Na cidade de São Paulo, segundo os estudos do MPL, o transporte coletivo consome 31% do valor do salário mínimo. Não é pouco. Ademais, o transporte é notadamente ruim e controlado por oligopólios, fato que após as manifestações de massa até mesmo os filósofos oficiais reconhecem. Outro dado explosivo é a situação da moradia, consequência necessária do aumento da renda da terra e violenta elevação dos aluguéis que afetou fortemente não somente as classes populares, mas também as classes médias. Enfim, um cenário desde há muito tempo explosivo.

Por outro lado, até mesmo a sociologia da ordem se deu conta que o repúdio aos partidos políticos representa uma profunda rejeição ao sistema político. Mas afinal, qual a natureza desta repulsa? Ora, quando o Partido dos Trabalhadores (PT) com Lula à cabeça abandou a luta contra a ordem, descartou seu currículo na esquerda e assumiu plenamente seu papel como oposição pragmática, eliminou as esperanças de milhões de pessoas em transformar o país. Em consequência, limitou-se tão somente a disputar com o PSDB/DEM a condição de administrador mais competente do orgulho burguês que pretendia afirmar uma ideologia que agora revela todos os seus limites: o Brasil estaria avançando para a condição de um “BRICS”, um “gigante mundial” e outras metáforas menos nobres. O PIB – um indicador meramente contábil – foi apresentado como expressão de grandeza do país e, em consequência, o Brasil estaria superando a Inglaterra como sexta economia mundial. Neste contexto, com a mesma velocidade com que o PT (e também o PC do B!) perdiam credibilidade, os movimentos sociais e principalmente o movimento sindical também exibia falta de vitalidade. As greves não deixaram de ocorrer e, de fato, se multiplicam na base, mas não encontram expressão política na CUT e nas demais centrais sindicais oficialistas. Os sinais eram, contudo, evidentes. Em 2008 os trabalhadores fizeram 411 greves, número que subiu para 518 em 2009 e 446 em 2010. Estes números são os maiores nos últimos anos, precisamente a década governada pelo PT. Em 2012 foram 873 greves nas quais 95% delas os trabalhadores conquistaram reajustes acima da inflação, ainda que em percentuais muito pequenos. Enfim, o ativismo sindical voltou forte em função do alto custo de vida, a despeito da posição despolitizante das centrais sindicais em termos políticos. Enfim, para quem acompanha o sonolento e oficialista movimento sindical, bastaria perceber a retomada do ativismo sindical (economicista) para verificar que algo já havia mudado no chão da fábrica.

O governo indica sua intenção de aproveitar – de fato não possui alternativa – o protesto popular e as “energias cívicas” para simular uma negociação com movimentos sociais e também com 27 governadores mais os prefeitos das capitais. Enfim, um genérico Pacto Nacional destinado a elaborar um Plano Nacional de Mobilidade Urbana. Somente os tolos podem supor que ocorrerá a melhoria dos serviços públicos e tudo sugere a ação do velho dom de iludir do que um sério esforço para reformar o sistema. Não por acaso, a primeiro “pacto” é destinado a garantir a “responsabilidade fiscal”, ou seja, uma cláusula de segurança que afirma a decidida disciplina na defesa da política econômica, a maior fonte de todos os males nacionais. É um sério golpe aos keynesianos e aqueles que afirmavam para comodidade própria, que “este governo está em disputa”. Ora, todo governo está em disputa, mas não há que ocultar o fundamental: diante da pressão das ruas, o opção governista pela manutenção das bases econômicas do pacto de 1994 (Plano Real) não somente mantém o mal estar como ampliará a insatisfação com o sistema político.  

Na ausência de uma esquerda com protagonismo de massas (PSOL, PSTU, PCB e POC), é óbvio que a Rede Globo cumpriu um papel “dirigente” e segue na tentativa de ordenar “o sentimento da cidadania por mudança”. Mostrou força, muita força. É claro que não podemos ignorar o fato óbvio: a emissora é tão repudiada pelos manifestantes quanto os partidos, a tal ponto que seus repórteres não trabalham com identificação e quando o logo do monopólio aparece nos microfones é tão somente para o caso dos jornalistas que transmitem desde helicópteros e as alturas de edifícios. Nas circunstancias atuais, o monopólio entendeu que ainda não era hora de ir por tudo, razão pela qual afinou o discurso com o governo e decidiram caminhar juntos por mais algum tempo. O esporte é uma mercadoria importante no balanço do monopólio.
Do lado do governo a situação é muito precária. Dilma jamais foi testada como líder de massas. Será um imenso desafio para ela, sobretudo porque após 10 anos de exercício de governo a presidente já não pode mais responsabilizar o governo anterior, de FHC, pelos problemas do país. Ademais, as contas não fecham. Ampliar investimento quando as pressões para uma desvalorização do real se fazem sentir com mais força a cada dia, constitui um cenário pouco provável, especialmente quando o investimento deve ser dirigido para os setores sociais. A pressão para desvalorizar a moeda é mais intensa e a possibilidade de um tradicional ataque especulativo contra o Real não deve ser descartada. Por fim, benesses fiscais com as quais pretendia compensar as perdas das distintas frações do capital, revelam também seus limites e não faltam vozes “realistas” no governo que anunciam a necessidade de conter o “gasto corrente” e mesmo o “investimento”.
Poderia Dilma encabeçar um governo efetivamente reformista no sentido progressista da expressão? Poderia encabeçar um movimento de renovação nacional que o PT rejeitou até agora? Nem pensar. Treinados na arte de atuar pragmaticamente, o governo seguirá aferrado aos interesses que defende – o pacto de classe que governa o Brasil desde a implantação do Plano Real – e não se moverá noutra direção. Ademais, o PT não possui força para tal ainda que alguns de seus “lideres” comecem a condenar aqui e acolá um ou outro ministro, “exigindo” uma ou outra medida, revelando a ilusão de superar a crise manifesta com políticas cosméticas.
As manifestações recentes mudaram a correlação de forças na sociedade brasileira? Para os defensores do governo e do pacto de classe encabeçado pelo PT, Lula e Dilma (latifúndio, capital comercial, capital produtivo nacional e estrangeiro, capital financeiro e os fundos de pensão) não há razão para supor que o rumo deve ser outro, radicalmente distinto. No máximo admitem “descontentamento” e certo “desgaste natural” após tantos anos de governo, mas em hipótese alguma admitem que existe correlação de forças na sociedade brasileira para impulsionar o país para à esquerda, ou seja, para um programa ousado de reformas econômicas, políticas, culturais e sociais.
Neste contexto, compreende-se que as primeiras reflexões dos ideólogos do governo indicam que as manifestações representam uma típica “crise de crescimento”, produto da emergência da nova classe média construída nos marcos de um limitado neodesenvolvimentismo centrado na esfera do consumo. Algo assim como se a criatura estivesse disposta a devorar de maneira inconsequente seu criador diante da possibilidade insaciável que toda classe média possui. Outros, não menos apologéticos, recomendam a necessidade de levar a sério o “significado político da juventude” nas “condições concretas de vida no século XXI”. No fundo, todos ainda observam o conflito como se estivéssemos no confortável terreno da “luta contra o neoliberalismo”, onde não é necessário enfrentar as duras condições do capitalismo dependente e subdesenvolvido. Ademais, terminam por esquecer que já vivemos uma década de governo petista sujeitos, portanto, a “outra lógica na condução de políticas públicas” e nem por isso as desigualdades e privilégios aberrantes deixaram de existir. Enfim, o modo petista de governar já não possui a outrora capacidade de seduzir e o PT não pode se safar de responsabilidades iniludíveis. Contudo, creio que muito maior equívoco (e conveniência) cometeram aqueles que julgaram o protesto iniciado pelo MPL – certamente com uma dose de saudável e inevitável de espontaneísmo – como se fosse expressão da “direita fascista”. A distância com o povo e a submissão à razão de estado produz drástica capacidade de crítica.

O governo mudará a direção? Pouco provável. Mas tampouco será insensível diante do novo quadro eleitoral: eis a razão do golpe da chamada “constituinte exclusiva”. Num país acostumado a reduzir os grandes temas da política à mera disputa eleitoral, é natural que o essencial escape a muita gente boa. Afinal, o que, de fato, mudou no Brasil?

Antes do protesto social, o cenário eleitoral indicava uma disputa limitada em torno do “crescimento” e da manutenção da “responsabilidade fiscal”, eufemismos destinados a manter os elevados lucros das frações dominantes do capital e a distribuição de migalhas para o povo. O cenário era de uma disputa eleitoral à direita, controlado pelos assuntos dominantes típicos do cretinismo parlamentar. Após as jornadas de junho, a grave crise social já não pode ser tratada nos marcos da beneficência e da caridade estatal. Os investimentos necessários para uma reforma urbana, por exemplo, não cabem no Ministério da Fazenda, menos ainda quando os Estados Unidos mudam a política monetária e a burguesia brasileira observa com gula as reservas internacionais necessárias para manter sua aventura nos derivativos e na dinâmica megaespeculativa da dívida (interna e externa) garantida pela mais elevada taxa de juros do planeta. Por esta razão a moeda se desvalorizou e a pressão para deslizar ainda mais é enorme. A desvalorização ocorrerá sob controle ou a sofreremos de maneira caótica tradicional?
  
O protesto social e o aprofundamento da crise econômica mudaram o confortável cenário eleitoral então existente para as classes dominantes e seus partidos (PT e PSDB, o consórcio petucano). Após a perplexidade da presidente e seus assessores, a resposta do governo foi o anuncio do golpe denominado “constituinte exclusiva” e do “plebiscito”, ambos destinados a dar curso parlamentar a ira popular. Trata-se de uma prova incontestável do apego ao pacto dominante. Aos defensores e ideólogos do governo se esforçam para criar malabarismos de toda ordem destinados a explicar por que razão um governo de suposta vocação democrática, em lugar de aproveitar o protesto e colocá-lo a serviço da “mudança”, decide esvaziá-lo e joga-lo na cova parlamentar.
Uma medida desta natureza – “constituinte exclusiva” – que ninguém sabe como será feita, é completamente descabida para enfrentar uma crise institucional. Há, de fato, uma boa razão para tal: o país não vive uma crise institucional. Por isso, a proposta presidencial esta tão somente destinada à solução de questões que interessa ao consórcio parlamentar, mas não a emergência de um regime efetivamente democrático. A proposta presidencial pretende a renovação do pacto por cima, sem participação popular. Trata-se de mais uma tentativa de colocar o país novamente no confortável cenário em que todos os temas eleitorais podiam ser administrados sem a turbulência das ruas.
Aliás, é muito significativo da situação política o fato de que Fernando Henrique Cardoso foi – segundo nos informa o insuspeito jornalista Ricardo Kotscho – o primeiro a ser consultado sobre a tal “reforma política”, antes mesmo de Lula e do vice Michel Temer (“Só um em cada três brasileiros aprova governo Dilma”). Alguém ainda pode, honestamente, negar estas evidências?

O ensaio geral foi bom para as classes dominantes e deixou um grande desafio para a esquerda. O Movimento Passe Livre conquistou uma vitória que é uma lição ao bom mocismo que marcou a trajetória recente dos movimentos sociais, iludidos com as promessas de um governo que já não possui mais possibilidade de atendê-lo pela “política pública”. O Brasil venceu a Copa das Confederações, a Rede Globo manteve seus interesses comerciais intactos e mostrou que pode atuar em condições de turbulência com mais eficácia que o governo. A oposição tucana ainda não encontrou o eixo discursivo e ama política necessária para indicar seu candidato como favorito nas próximas eleições. Por isso os tucanos aceitaram o pacto presidencial, ainda que farão restrições permanentes e não cansarão de afirmar que a coalizão no governo já não tem competência para administrar o país. 
A esquerda (PSOL, PSTU, PCB e PCO) possui um novo terreno para crescer e seu desafio não é menor: não pode atuar como se fosse o “espírito crítico” do PT e seu governo ou julgar que sua missão histórica se limita à realização  das insuficiências de seu berço. É verdade que o PSOL e o PSTU nasceram, ambos, do influxo do movimento de massas e da crise terminal do PT como organização que pretendia em suas origens “mudar o Brasil”. Contudo, agora, possuem condições objetivas para uma inédita redefinição programática longe da ressaca originada pela plena identidade de Lula e Dilma com a ordem burguesa. Em consequência, a história abriu novas alamedas para uma esquerda que tem como missão refundar o radicalismo político no país, longe dos tradicionais acordos realizados por cima e mais perto do povo que redescobriu as possibilidades do protesto na rua.