Na aba do meu
chapéu
você não pode ficar
Porque, meu chapéu tem aba curta.
Você vai cair e vai se machucar
Como vai se machucar
Eu compro cerveja, você pede um copo
e bebe logo
Eu compro cigarro, você pede um
Como você pede um
Mando vir um salgado, o senhor come tudo.
Parece que nunca comeu
Pede tudo que vê, tu es um 171
Um tremendo 171
Samba cantado por Martinho da Vila
Um ciclo da política nacional exibe
agonia terminal. Até mesmo para aqueles incapazes de pensar a política para
além do estritamente eleitoral, é inocultável o mal-estar, a confusão e, não
raro, o desespero. Nesse contexto, o sujeito vai para a urna como se estivesse
diante de um ato extremo em que sua decisão de impedir a vitória de seu
adversário está, na prática, destituída de sentido construtivo, longe de produzir
um novo horizonte, limitada tão somente ao veto de seu adversário real ou
fantasmagórico. A alegoria do eleitoral não é capaz, contudo, de ocultar a
miséria do estritamente político em que a impotência é a marca mais eloquente,
pois, diante do governo atual, nem mesmo o mais otimista pode afirmar que
existe algo, de fato, relevante para conservar diante da “ameaça externa”, capaz
de fortalecer uma política de “terra arrasada”.
Não podemos afirmar por quanto tempo
o espetáculo mórbido da agonia permanecerá entre nós. Entretanto, basta observar
o cenário de alianças e apoios nesse processo eleitoral que hoje termina no
segundo turno das eleições municipais, para concluir que todos aqueles que
buscam uma racionalidade para seu voto ou apoio via redes digitais não
conseguem sequer ocultar misérias próprias e muito menos, exorcizar as alheias.
Portanto, o exercício repetitivo da simulação seguirá dominante mesmo se quando a
ordem que o criou desaparecer por completo.
Não estamos num deserto, longe
disso, razão pela qual não desprezo cada movimento em círculo que aceita ou recusa
o voto nesse ou naquele candidato, como se a vida estivesse realmente em jogo
quando milhões se dirigem à urna e outros tantos permanecem em casa recusando a
“festa da democracia”. De resto, o espetáculo midiático, controlado nos mínimos
detalhes pela classe dominante – do uso enfadonho da camisa azul num cenário
igualmente azul dos debates televisivos – constitui um contraste absoluto com o
cinza que predomina na vida cotidiana de milhões de brasileiros subsumidos pela
mais absoluta miséria sem esperança alguma na possibilidade de progredir nesse
inferno que caracteriza a vida nas grandes cidades de nosso país. O otimismo alienante
dos liberais de esquerda é incapaz de angariar apoios para qualquer mobilização
imediata e menos ainda de acumular alguma força para os combates futuros. À
sombra do liberalismo de esquerda, a direita administra em doses homeopáticas de seu
irracionalismo – elucidando o caráter racional
do irracionalismo – na medida em que ataca as instituições da república
burguesa repudiadas pela ampla maioria do povo. O surrado bordão que no passado
logrou simpatias no interior da consciência ingênua segundo a qual a esperança
poderia vencer o medo, se enfrenta agora com um adversário mais difícil e de comprovada
eficácia: o temor é quase um artigo de uso exclusivo da esquerda liberal pois
se encontra sem capacidade de mobilização, destituída de horizonte utópico, na
defensiva política e unicamente filiada à defesa inútil das conquistas passadas. Estas que derretem como gelo sob o sol, aniquiladas, portanto, não por um presidente
protofascista, mas pela ação decidida do governo petucano cujas promessas da última
campanha presidencial ainda subsistem nas anotações daqueles que alimentaram as
ilusões diante de "compromissos de campanha" que sabidamente não poderiam ser honrados.
No cenário eleitoral atual,
portanto, tudo esta resumido como se, de fato, estivéssemos diante da clássica opção
entre civilização e barbárie. Na tradição intelectual universitária, a síntese aparece
sob a forma de escolha entre democracia e autoritarismo como último recurso
para justificar o voto ou dar algum sentido, mesmo que difuso, às disputas
digitais nas quais o irracionalismo tem um terreno incomparavelmente mais
fecundo que os democratas de qualquer origem. É batalha perdida, sem dúvida!
A despeito do resultado medido por vitórias ou derrotas eleitorais em prefeituras, a verdade é que o saldo será
positivo para a direita em larga medida. O abandono da disputa ideológica por parte da esquerda liberal em sua “ação eleitoral”, exibe agora o quanto pode ser nociva a
recusa do radicalismo político cujo horizonte não é outro senão a defesa aqui e
agora do socialismo. E isso na mesma medida em que o pragmatismo não tem a
menor aderência de outros tempos quando Lula venceu a primeira eleição
presidencial. Ora, cada ato “realista” praticado pela esquerda liberal
orientada pelos “princípios” da administração democrática da ordem burguesa
desde então, não fez menos que fortalecer o discurso da direita que opera com o
horizonte de uma utopia reacionária na qual cada insuficiência de um país subdesenvolvido
e dependente é acusada como suposta prova de que ainda não vivemos efetivamente num sistema
capitalista pleno onde cada iniciativa e esforço individual seriam inexoravelmente
recompensados com a glória no mundo dos monopólios.
No lado “oposto”, as promessas e “debates” entre a esquerda liberal diante da ofensiva da direita revelaram o quanto o sistema está azeitado para receber e turbinar o movimento em círculo nos estreitos limites do sistema político agonizante. É verdadeiramente impressionante que nesse redemoinho funcional aos interesses da direita, Marçal e Boulos – o primeiro como protagonista e o segundo como coadjuvante – praticaram um “diálogo respeitoso” que, ao contrário dos manuais de inspiração frankfurtiana, caiu como luva para os interesses da ultra direita com a ultrajante chancela do mais rasteiro oportunismo eleitoral da “esquerda democrática”. Até ontem, lembre que o bordão era “com fascista não tem papo” ou enunciava-se que o fascista era “inabordável”... Nesse contexto, obviamente fracassou a “ação midiática” do liberalismo de esquerda ao tentar um “corte” para alimentar o insaciável público da mass mídia, indicando que, como o aprendiz de feiticeiro, Boulos venceria o debate ou massacraria o fascista quando a verdade é exatamente oposta! Aqui, precisamente, a fronteira entre o oportunismo eleitoreiro e a irresponsabilidade social se encontram ao amparo do êxito individual.
Com efeito, se a direita não perdeu
tempo e afirmou sua ideologia na disputa eleitoral, no lado da esquerda liberal
restou o patético papel de afirmar sua filiação à Lula e a defesa aberta ou
velada do governo petucano completamente funcional aos interesses da coesão burguesa
que governa o país desde sempre, ainda que com interesses redefinidos radicalmente a partir do
Plano real de 1994. Esse beco sem saída fazia supor que o inexorável eclipse de
Lula na política constituiria o caminho seguro para a renovação vitalizada da
esquerda liberal, mas, ao contrário do otimismo ingênuo, a cena não poderia ser
mais clara: todas as versões emanadas do útero petista, incluindo Lula, não passam de modalidades
deterioradas e empobrecidas de uma forma eficaz em outros tempos e completamente datadas diante das transformações do capitalismo no país. A propósito, é
preciso dizer de forma clara que a fase rentística da dependência não admite
ilusões. O manejo da
política econômica pelo uspiano Fernando Haddad ou mesmo a paralisia da ministra Marina Silva enquanto o país
ardia em incêndios, são demonstrações incontestes disso. Nesse contexto, a orfandade de todos aqueles que votaram
por Lula nas últimas eleições presidenciais alegando motivações supostamente
nobres, pode ser vista à luz do dia mesmo sob o disfarce da indignação e dos apelos tão sistemáticos quanto inúteis exigindo coerência de um presidente que não
possui o menor compromisso com a redenção do país e do povo diante da miséria e
da exploração a que estamos historicamente submetidos.
Não é exagero afirmar que o ciclo chega a seu término mesmo que novos espasmos possam ainda prolongar a agonia da esquerda liberal simulando alguma função defensiva. Na aba do chapéu de Lula e do PT nada brotará para enfrentar os dilemas da dominação burguesa na fase atual do desenvolvimento capitalista em sua fase rentística. Afinal, os tempos da administração democrática e “inclusiva” da ordem burguesa atingiram seus limites objetivos. Não há novidade nesse cenário ainda que muitos insistam que é preciso retomar as antigas promessas e imprimir conteúdo de verdade como forma de superação da desilusão e decepção. Ora, a antiga promessa em si não era capaz de oferecer qualquer horizonte para os trabalhadores exceto a surrada digestão moral da pobreza dos programas sociais completamente incapazes de redimir as maiorias da miséria e exploração e menos ainda de criar um movimento de massas destinado à atualização do radicalismo político indispensável num país dependente e subdesenvolvido como o Brasil.
Revisão: Junia Zaidan