domingo, 27 de outubro de 2024

Na aba do chapéu

 

Na aba do meu chapéu
você não pode ficar
Porque, meu chapéu tem aba curta.
Você vai cair e vai se machucar
Como vai se machucar
Eu compro cerveja, você pede um copo
e bebe logo
Eu compro cigarro, você pede um
Como você pede um
Mando vir um salgado, o senhor come tudo.
Parece que nunca comeu
Pede tudo que vê, tu es um 171
Um tremendo 171

Samba cantado por Martinho da Vila


Um ciclo da política nacional exibe agonia terminal. Até mesmo para aqueles incapazes de pensar a política para além do estritamente eleitoral, é inocultável o mal-estar, a confusão e, não raro, o desespero. Nesse contexto, o sujeito vai para a urna como se estivesse diante de um ato extremo em que sua decisão de impedir a vitória de seu adversário está, na prática, destituída de sentido construtivo, longe de produzir um novo horizonte, limitada tão somente ao veto de seu adversário real ou fantasmagórico. A alegoria do eleitoral não é capaz, contudo, de ocultar a miséria do estritamente político em que a impotência é a marca mais eloquente, pois, diante do governo atual, nem mesmo o mais otimista pode afirmar que existe algo, de fato, relevante para conservar diante da “ameaça externa”, capaz de fortalecer uma política de “terra arrasada”.

Não podemos afirmar por quanto tempo o espetáculo mórbido da agonia permanecerá entre nós. Entretanto, basta observar o cenário de alianças e apoios nesse processo eleitoral que hoje termina no segundo turno das eleições municipais, para concluir que todos aqueles que buscam uma racionalidade para seu voto ou apoio via redes digitais não conseguem sequer ocultar misérias próprias e muito menos, exorcizar as alheias. Portanto, o exercício repetitivo da simulação seguirá dominante mesmo se quando a ordem que o criou desaparecer por completo.

Não estamos num deserto, longe disso, razão pela qual não desprezo cada movimento em círculo que aceita ou recusa o voto nesse ou naquele candidato, como se a vida estivesse realmente em jogo quando milhões se dirigem à urna e outros tantos permanecem em casa recusando a “festa da democracia”. De resto, o espetáculo midiático, controlado nos mínimos detalhes pela classe dominante – do uso enfadonho da camisa azul num cenário igualmente azul dos debates televisivos – constitui um contraste absoluto com o cinza que predomina na vida cotidiana de milhões de brasileiros subsumidos pela mais absoluta miséria sem esperança alguma na possibilidade de progredir nesse inferno que caracteriza a vida nas grandes cidades de nosso país. O otimismo alienante dos liberais de esquerda é incapaz de angariar apoios para qualquer mobilização imediata e menos ainda de acumular alguma força para os combates futuros. À sombra do liberalismo de esquerda, a direita administra em doses homeopáticas de seu irracionalismo – elucidando o caráter racional do irracionalismo – na medida em que ataca as instituições da república burguesa repudiadas pela ampla maioria do povo. O surrado bordão que no passado logrou simpatias no interior da consciência ingênua segundo a qual a esperança poderia vencer o medo, se enfrenta agora com um adversário mais difícil e de comprovada eficácia: o temor é quase um artigo de uso exclusivo da esquerda liberal pois se encontra sem capacidade de mobilização, destituída de horizonte utópico, na defensiva política e unicamente filiada à defesa inútil das conquistas passadas. Estas que derretem como gelo sob o sol, aniquiladas, portanto, não por um presidente protofascista, mas pela ação decidida do governo petucano cujas promessas da última campanha presidencial ainda subsistem nas anotações daqueles que alimentaram as ilusões diante de "compromissos de campanha" que sabidamente não poderiam ser honrados.    

No cenário eleitoral atual, portanto, tudo esta resumido como se, de fato, estivéssemos diante da clássica opção entre civilização e barbárie. Na tradição intelectual universitária, a síntese aparece sob a forma de escolha entre democracia e autoritarismo como último recurso para justificar o voto ou dar algum sentido, mesmo que difuso, às disputas digitais nas quais o irracionalismo tem um terreno incomparavelmente mais fecundo que os democratas de qualquer origem. É batalha perdida, sem dúvida!

A despeito do resultado medido por vitórias ou derrotas eleitorais em prefeituras, a verdade é que o saldo será positivo para a direita em larga medida. O abandono da disputa ideológica por parte da esquerda liberal em sua “ação eleitoral”, exibe agora o quanto pode ser nociva a recusa do radicalismo político cujo horizonte não é outro senão a defesa aqui e agora do socialismo. E isso na mesma medida em que o pragmatismo não tem a menor aderência de outros tempos quando Lula venceu a primeira eleição presidencial. Ora, cada ato “realista” praticado pela esquerda liberal orientada pelos “princípios” da administração democrática da ordem burguesa desde então, não fez menos que fortalecer o discurso da direita que opera com o horizonte de uma utopia reacionária na qual cada insuficiência de um país subdesenvolvido e dependente é acusada como suposta prova de que ainda não vivemos efetivamente num sistema capitalista pleno onde cada iniciativa e esforço individual seriam inexoravelmente recompensados com a glória no mundo dos monopólios.

No lado “oposto”, as promessas e “debates” entre a esquerda liberal diante da ofensiva da direita revelaram o quanto o sistema está azeitado para receber e turbinar o movimento em círculo nos estreitos limites do sistema político agonizante. É verdadeiramente impressionante que nesse redemoinho funcional aos interesses da direita, Marçal e Boulos – o primeiro como protagonista e o segundo como coadjuvante – praticaram um “diálogo respeitoso” que, ao contrário dos manuais de inspiração frankfurtiana, caiu como luva para os interesses da ultra direita com a ultrajante chancela do mais rasteiro oportunismo eleitoral da “esquerda democrática”. Até ontem, lembre que o bordão era “com fascista não tem papo” ou enunciava-se que o fascista era “inabordável”... Nesse contexto, obviamente fracassou a “ação midiática” do liberalismo de esquerda ao tentar um “corte” para alimentar o insaciável público da mass mídia, indicando que, como o aprendiz de feiticeiro, Boulos venceria o debate ou massacraria o fascista quando a verdade é exatamente oposta! Aqui, precisamente, a fronteira entre o oportunismo eleitoreiro e a irresponsabilidade social se encontram ao amparo do êxito individual.

Com efeito, se a direita não perdeu tempo e afirmou sua ideologia na disputa eleitoral, no lado da esquerda liberal restou o patético papel de afirmar sua filiação à Lula e a defesa aberta ou velada do governo petucano completamente funcional aos interesses da coesão burguesa que governa o país desde sempre, ainda que com interesses redefinidos radicalmente a partir do Plano real de 1994. Esse beco sem saída fazia supor que o inexorável eclipse de Lula na política constituiria o caminho seguro para a renovação vitalizada da esquerda liberal, mas, ao contrário do otimismo ingênuo, a cena não poderia ser mais clara: todas as versões emanadas do útero petista, incluindo Lula, não passam de modalidades deterioradas e empobrecidas de uma forma eficaz em outros tempos e completamente datadas diante das transformações do capitalismo no país. A propósito, é preciso dizer de forma clara que a fase rentística da dependência não admite ilusões. O manejo da política econômica pelo uspiano Fernando Haddad ou mesmo a paralisia da ministra Marina Silva enquanto o país ardia em incêndios, são demonstrações incontestes disso. Nesse contexto, a orfandade de todos aqueles que votaram por Lula nas últimas eleições presidenciais alegando motivações supostamente nobres, pode ser vista à luz do dia mesmo sob o disfarce da indignação e dos apelos tão sistemáticos quanto inúteis exigindo coerência de um presidente que não possui o menor compromisso com a redenção do país e do povo diante da miséria e da exploração a que estamos historicamente submetidos.

Não é exagero afirmar que o ciclo chega a seu término mesmo que novos espasmos possam ainda prolongar a agonia da esquerda liberal simulando alguma função defensiva. Na aba do chapéu de Lula e do PT nada brotará para enfrentar os dilemas da dominação burguesa na fase atual do desenvolvimento capitalista em sua fase rentística. Afinal, os tempos da administração democrática e “inclusiva” da ordem burguesa atingiram seus limites objetivos. Não há novidade nesse cenário ainda que muitos insistam que é preciso retomar as antigas promessas e imprimir conteúdo de verdade como forma de superação da desilusão e decepção. Ora, a antiga promessa em si não era capaz de oferecer qualquer horizonte para os trabalhadores exceto a surrada digestão moral da pobreza dos programas sociais completamente incapazes de redimir as maiorias da miséria e exploração e menos ainda de criar um movimento de massas destinado à atualização do radicalismo político indispensável num país dependente e subdesenvolvido como o Brasil. 


Revisão: Junia Zaidan

domingo, 6 de outubro de 2024

a função ideológica do "debate"

A potência técnica das redes digitais produziram um fenômeno relativamente novo, nocivo e profundamente deletério: a recusa da crítica. Na prática, a proliferação de "debates" eletrônicos - cuja maior expressão é um quadro da CNN denominado cinicamente "Grande debate" - no qual dois liberais cuidadosamente escolhidos tematizam quinquilharias ideológicas destinadas à alienação do grande público sob o manto protetor do jornalismo-propaganda.

A primeira vez que vi o "debate" - depois a detestável cena se repetiu ad nauseam - um liberal de direita chamado Caio Coppolla "debatia" com um liberal de esquerda, José Eduardo Cardozo, ex-ministro petista - reproduzindo ignorância e alienação durante 20 ou 30 minutos. Uma barbaridade alimentada por dupla via! Entretanto, trata-se de operação ideológica eficaz, uma peça de controle da opinião pública, de manufaturação do consenso em favor da burguesia. Na prática, o recurso jornalístico simula pluralismo mas pretende tão somente educar milhões de pessoas nos limites do permitido pelas ideias dominantes que, tal como ensinou Marx, são as ideias da classe dominante.

O recurso midiático dos monopólios praticado no atacado é repetido no varejo pelas mídias digitais de canais alternativos, reproduzindo a mesmíssima lógica com idênticos resultados. De resto, para os que acreditam nesse tipo de programa, bastaria revisar o atual processo eleitoral concluído há poucos dias com o estelar "debate da Globo". Quem venceu? Ora, a classe dominante e seu absoluto controle sobre o sistema político da república burguesa em frangalhos, porém sempre útil para a manutenção de seus interesses! Quem venceu? A pergunta do espectador angustiado se repete: Nunes, Marçal, Boulos, ou Tabata? Quem, afinal, venceu? Nenhum deles!! Não se trata apenas do formato ou regras de cada "episódio", mas da função de qualquer modalidade de "debate" nos marcos da podridão do sistema político e da ofensiva da direita nas disputas eleitorais e ideológicas! Na prática todos os "debates" reforçam a ideologia da classe dominante a despeito das intenções dos supostos protagonistas.

Ora, qualificar esse tipo de polemica como se fosse disputa ideológica é uma ofensa à memória e à inteligência. O recurso a "militância eletrônica" nas atuais circunstâncias atesta precisamente a ausência do protagonismo das massas, a decadência dos partidos políticos da esquerda liberal, a corrupção da prática parlamentar, a debilidade dos chamados movimentos populares, a renuncia e irresponsabilidade dos acadêmicos que constituem características essenciais da hegemonia burguesa que, nem mesmo em sonhos, podem ser superadas pelo ativismo midiático. Num passado não muito distante, os revolucionários aprenderam com muito estudo e intensa práxis, a importância da contradição, razão pela qual não me importa quando acusam meu diagnóstico de fomentar a apatia e desolação, como se fosse um convite à paralisia política numa terra arrasada, diante da qual não haveria qualquer alternativa. Jamais! As contradições - entre as quais a miséria do "debate" público midiático - deve ser encarada com seriedade e não uma via de reprodução da hegemonia burguesa.

A propósito, no auge da ofensiva sionista contra o povo palestino, diante de assassinatos em massa de crianças, mulheres e inocentes de todo tipo produzidos pela máquina de guerra de Israel, assisti um debate num canal qualquer em que um defensor da causa palestina e outro do sionismo discutiram durante uma hora quem tinha razão. Era, sem dúvida alguma, um debate estéril nos quais ambos saíram da disputa exatamente como entraram e certamente, entre os ouvintes, a situação se repetiu, pois tal evento é incapaz de mudar a posição de alguém ou ainda de aprofundar no conhecimento histórico sobre a questão nacional palestina e as razões pelas quais o imperialismo estadunidense apoia sistematicamente o estado terrorista sionista sabotando qualquer iniciativa de paz. Os debates midiáticos não foram capazes de produzir eventos de rua com forte participação popular ou mesmo nas filas da esquerda liberal; ao contrário, exibiam a apatia dominante nesse e em qualquer outro tema estratégico.
Nas universidades, supostamente a casa de ciência, da cultura e da crítica, o ambiente não é melhor. O "debate" - quando existente - esta determinado pela diminuta capacidade de convocatória das mídias eletrônicas e nem de longe exibe a vitalidade de outros tempos (15 anos atrás, mais ou menos). Os centros acadêmicos, sindicatos de técnicos e professores, prisioneiros de agenda que não tocam nos interesses das maiorias, são notoriamente incapazes de encher um auditório. Essa constatação não pretende ocultar misérias e oportunismos do passado e, portanto, descarto qualquer idealização do ambiente universitário em outras épocas pois a natureza da instituição num país subdesenvolvido e dependente não permite arroubos semelhantes. Mas o domínio do acadêmico sobre o intelectual é devastador, uma miséria, cuja expressão mais evidente - desde logo, não única - é o identitarismo decadente que sofremos como forma de interdição da crítica.

Na contramão do ambiente dominante, o IELA convidou o antropólogo Antonio Risério para atividade pública e um seminário interno destinado a análise de seu livro Em busca da nação (Topbooks). O baiano é raro crítico da cultura nacional além de estudioso das coisas do Brasil, portanto, intelectual atento às novidades impostas pela classe dominante para consumo das massas, além, é claro, de ser também zeloso revisionista de nossa História. Em consequência, diante do autor e da câmara, os membros do Instituto fizeram a crítica após a leitura do livro e ouvimos as respostas que você agora pode conferir no nosso canal e na TV UFSC. A experiência revelou o quanto é fecundo um debate diante do livro e do autor sem pretensão de procurar um vencedor, aquele que nos marcos das disputas eleitorais e dos chamados canais "alternativos" está em busca tanto de votos quanto "likes and views" para proveito particular. A propósito, a habilidade de Marçal na empreitada paulista foi elucidativa pois aproveitava o tempo de TV para reforçar suas redes de produção ideológica; os outros candidatos assumiram o mesmo comportamento com eficácia muito menor! Em qualquer caso, vence a classe dominante pois ninguém é capaz de superar a lógica imanente dessa estranha modalidade de "debate" em que o essencial não pode ser discutido.

Abaixo indico as três atividades que realizamos com Risério e faremos com outros tantos destinados a divulgar o debate que travamos com Antonio Risério sobre seu livro que, a despeito de diferenças aqui e acolá, eu recomendo à todos.

Seminário interno do IELA
https://www.youtube.com/watch?v=CNwoMkRiz04

Conferência aberta ao público
https://www.youtube.com/watch?v=dWoV-D5NRIs&t=6256s

Programa Pensamento Crítico
https://www.youtube.com/watch?v=r8Z7zHT_2j0&t=748s

Saludos!