segunda-feira, 22 de agosto de 2016

sobre as leis de bronze da lumpemburguesia

A lei de bronze como lei moral
Não poucas vezes a consciência ingenua dos homens é governada por leis de bronze. Leis de bronze são consideradas não somente eternas mas também inflexíveis. Guiados por semelhante crença, eles julgam suficiente a adoção de uma lei qualquer para transformar o mundo ou criar garantias contra as paixões inerentes a vida, sempre avessa a disciplina dos poderes. A experiência ensina que as leis de bronze se assemelham aos postulados morais, razão pela qual a consideração de que "um país não pode gastar mais do que arrecada" equivale ao mandamento sagrado "não matar", "não roubar" ou "não desejar a mulher do próximo". A violação das regras morais tal como o desrespeito às leis de bronze implicam em condenação sumária, castigos severos ou ainda o inferno.

O pecado original e a expulsão do paraíso - Michelangello
O fascínio que certas leis de bronze exercem na cabeça dos homens e a eficácia que eventualmente podem adquirir na vida social, tampouco resiste ao confronto com o real. Neste sentido, as leis de bronze quando exibem sua solidez, cumprem funções ideológicas, ou seja, cumprem funções de legitimação de determinada política ou contribuem com o processo de dominação em seu conjunto. Mas jamais serão eternas. 

A lei da responsabilidade fiscal é de bronze
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) é a principal lei de bronze em uso na sociedade brasileira. Em consequência, a legitimação político-social para o processo de destituição da presidente Dilma apareceu inicialmente sob a forma jurídica de crime de responsabilidade cometido contra a lei fiscal, obrigação de zelo absoluto de todo governante realmente preocupado com a sorte republicana. A imprensa e os políticos da ordem insistem que as "pedaladas fiscais" constituem crime de responsabilidade, a despeito dos pareceres técnicos em favor da presidente Dilma no senado. A questão não é técnica, obviamente; de resto, sabemos que política e verdade raramente coincidem. A oposição tucana apelou à LRF consciente do golpe certeiro contra a legitimidade da presidente mas também porque inauguraria nova cruzada moral em favor da valiosa lei de bronze: nenhum governante pode produzir déficits, pois estes seriam, especialmente em tempos de crise, muito nocivos para o Estado e para o bem estar social da população.

Em perspectiva histórica, esta cruzada em favor da austeridade e contra o déficit público atua como espécie de reforma moral em meio a crise. Era preciso - sabe a classe dominante - manufaturar a opinião pública favorável as políticas de austeridade iniciadas por Dilma e agora em fase avançada de consolidação com Temer. Neste tempo turbulento, toda economia de recursos é necessária, razão pela qual os já minguados programas sociais antes motivo de orgulho dos petistas representam luxo porque, como acredita o homem comum, "a vida não esta fácil para ninguém". A maior parte das pessoas julga que a crise afeta a todos negativamente e nem nos piores pesadelos podem supor a crise como aquela oportunidade extraordinária para os capitalistas acumular fortunas e/ou criar condições para conquistar maior riqueza e poder.

Ao povo, a austeridade permanente
Portanto, a destituição da presidente Dilma cumpre objetivos imediatos e estratégicos. No curto prazo, justifica o supressão de muitos direitos dos trabalhadores. No longo, impulsionado pela força da reforma moral, abre tempo de experimentação burguesa contra a ampliação do horizonte político nacional, exatamente quando aos olhos de milhões de pessoas o sistema político se revela miserável, intragável. Enfim, a reforma moral em curso limita toda política no país à enfadonha administração competente da crise no momento em que milhões recusam com asco o fazer político burguês.

Na exaustão do sistema político emerge a figura e evidencia-se a função de Temer. Nada mais afeito à crise que um político com o perfil do golpista. Temer é perfeito porque "chegou lá" pelas mãos generosas do pragmatismo petista, aquele mesmo pragmatismo considerado até bem pouco tempo não grave limitação política ou submissão à correlação de forças supostamente desfavorável para avançar em direção de reformas radicais em favor do povo mas, ao contrário, um pragmatismo então considerado pedra angular da astucia e da inteligencia lulista pretensamente capaz de agradar proletários e burgueses em favor de alguns trocados para as classes subalternas. Ademais, Temer é a quinta-essência burlesca do bacharel oitocentista, misto de discurso e gesto antiquado, mas disponível à política de modernização de todas as frações do capital e disposto a seguir com enorme convicção para o lixo da história com direito a aposentadoria de presidente sem culpa no cartório. Ele próprio talvez não saiba, mas ao menos suspeita que ao tocar no teto, tocou também no fundo.

A república rentista e a lumpemburguesia
A popularidade insistentemente baixa de Temer e a estética retrô que insinua não o torna menos perigoso ou uma ameaça somente evidente após o golpe, quando rompeu com seus companheiros petistas de aventura. Um homem disposto a tomar qualquer medida contra os trabalhadores e depois retirar-se à vida privada como ele próprio já anunciou, é um homem pronto para aceitar qualquer negócio. A propósito, as recentes denuncias de corrupção contra ele apenas elucidam sua disponibilidade histórica para aceitar qualquer negócio.

A beligerância de Temer resulta, portanto, em algo mais valioso que sua disposição manifesta para as transações tenebrosas: reside no "comando" de um governo controlado sem inibições pelos banqueiros com apoio das demais frações do capital (comerciantes, industriais e latifundiários). Nas circunstâncias atuais, a única fração de classe capaz de dirigir o país é, de fato, a fração financeira, pois a regressão da burguesia industrial é enorme e sua consciência de classe em nada se assemelha ao comportamento clássico da burguesia industrial inglesa do século XVIII, quando comandou a revolução industrial em favor dos seus interesses. Diante da lumpemburguesia brasileira, somente a fração financeira possui clara capacidade de colocar as condições gerais do funcionamento da economia mundial em seu proveito, dividindo de maneira desigual o botim. Adeus desenvolvimentismo!

Nunca será ocioso recordar a importância do "ajuste" praticado por Dilma para sedimentar as condições necessárias ao golpe agora denunciado pela ex-presidente. Ela estabeleceu o fim de seu mandato ao julgar possível a manutenção das regras do jogo - super lucros para o capital e passividade dos sindicatos e dos movimentos sociais - realizando a política da direita em matéria econômica em "troca" dos minguados programas sociais dos governos petistas. No fundo não logrou mais do que a digestão moral da pobreza, porque como agora podemos ver, o efeito dos programas sociais inéditos na historia do país, se derretem feito gelo ao sol. A força da crise solapou sem demora esta ilusão. A direita aproveitou o momento e retomou a iniciativa política no terreno parlamentar, na imprensa e, de maneira surpreendente, nas ruas. Os trabalhadores e suas organizações apenas despertam da anestesia que supunha possível o fim do abismo social nos marcos do capitalismo. A reforma moral esta em curso e seu nervo mais importante é a LRF cujo objetivo evidente é a perenização do princípio da austeridade contra o povo. Somente assim podemos entender as leis contra os direitos trabalhistas, o aperto contra os governos estaduais, o fim do reajuste para o funcionalismo público, etc, etc.

No purgatório é possível pecar
A oposição tucana ao governo dispensaria o suposto descuido de Dilma com as contas públicas e, de fato, eles se lançariam à luta por sua destituição sob qualquer argumento. No entanto, foi Dilma quem permitiu a ofensiva quando os impactos sociais do ajuste praticado pela presidente eleita com discurso de corte keynesiano afetaram agudamente os mais pobres, negando a promessa da campanha vitoriosa. O golpe foi fatal contra os trabalhadores e ainda mais corrosivo nas filas da resistência a estratégia golpista. No entanto, a tragédia se completou somente quando, em sua defesa, a presidente alegou que jamais desrespeitou a LRF e que os atos ou decretos emitidos não violavam a lei de bronze mais valiosa para a burguesia brasileira. Enquanto a escalada oposicionista argumentava contra o "gasto sem caixa" - como se o orçamento de um Estado guardasse alguma semelhança com as finanças pessoais - a presidente alegava que o atraso dos pagamentos pelo Tesouro Nacional aos bancos estatais que financiaram gastos do governo (Bolsa Família, Plano Safra, etc) não geraram déficits. Em sua defesa, a presidente repetiu mil vezes que jamais desrespeitou a LRF e, em consequência, não teria existido crime de responsabilidade. Assim, ambos, governo e oposição, se digladiavam em combate de morte pela mesma causa! Enfim, ainda no momento decisivo da disputa parlamentar, o petismo manteve o pacto com os tucanos na afirmação da "política fiscal responsável" e a renuncia a toda manifestação de heresia na condução da política de estado.

Resultado de imagem para imagens do purgatorio
As almas resgatadas do Purgatório
Qualquer keynesiano de mediana formação saberia que a recessão econômica inaugurada por Dilma (estoque superior a 12 milhões de desempregados) e aprofundado por Temer, tornaria a situação fiscal ainda pior como os números agora confirmam. A política sem heresia, sem risco, o apego ao pragmatismo como ethos político de conciliação de classes, chegava tragicamente ao fim. O petismo descobriu em meio ao pesadelo que o pragmatismo é terreno pantanoso, repleto de riscos, ao contrário do que supunha tanto sua base social quanto seus mais importantes "dirigentes". Ao que tudo indica, a dura lição não implica em correção de rumos. A lógica do petismo durante toda a crise é meramente eleitoral e, no limite, apenas pretende disputar com tucanos o monopólio da representação da classe dominante sem a qual acreditam ser impossível governar o Brasil. No purgatório, o petismo não promove a necessária auto-crítica para ganhar direito a nova vida e considera que não pode romper com as leis mais importantes para a burguesia, mesmo que precisamente esta fidelidade tenha sido a responsável última por sua desmoralização pública.

A crença comum do petucanismo e a esquerda responsável
Quando FHC apresentou ao parlamento a LRF, deputados e senadores do PT votaram contra. Corria o ano de 2000 e Palocci, Marina Silva (sim, Marina votou contra a LRF!), Berzoini, Waldir Pires, Nilmário Miranda e Jaques Wagner votaram pela rejeição do projeto. Não estavam sozinhos. O ex-candidato presidencial e peça de reposição burguesa no jogo eleitoral, o pernambucano Eduardo Campos (PSB), também votou contra, da mesma forma que Aldo Rebelo e Agnelo Queiroz, ambos do PC do B. O mundo dá voltas para a direita, não?

Algum tempo depois - mais precisamente cinco anos - Palocci (após ocupar o posto de ministro da economia) declarou que "nós, naqueles idos de 2000, não demos apoio à lei. Foi uma falha da bancada e eu me incluo nessa falha". (FSP 4/5/2007). Na mesma época, o senador Aloísio Mercadante subiu a tribuna da senado (Agencia Senado, 4/05/2005) para revelar que o governo Lula era mais zeloso que FHC no manejo das contas públicas: "é inquestionável que a lei de responsabilidade fiscal foi muito importante para o país". A conversão petista ao credo liberal se fazia completa e os erros de juventude estavam, finalmente, superados.

Enfim, o PT e seus principais líderes - Lula a frente, obviamente - assumiam plenamente a defesa dos postulados essenciais da classe dominante ao adotar a LRF na vã tentativa de conquistar a confiança das classes dominantes, esquecendo que estas não necessitam dos partidos políticos e de líderes populares para manter a situação sob controle. Não devemos, portanto, subestimar a força das leis de bronze. Ainda quando revelam seu poder destrutivo, as leis de bronze podem manter o encanto sobre suas vítimas. Não somente o PT e sua "base aliada" mantém fidelidade ao principio da austeridade, senão que setores da esquerda "que não se vendeu ou se rendeu" reivindicam a necessidade de uma  "esquerda responsável", cujo lema não poderia ser mais nocivo: o "Estado deve caber dentro do orçamento". Não é pequena a conquista ideológica da classe dominante! A consequência prática do simpático postulado - o Estado deve caber dentro do orçamento - é que o povo deve viver de maneira permanente na austeridade.
A conversão e a luta contra o pecado

Ora, a defesa de uma esquerda responsável limitada a manter a ação estatal nos limites de um orçamento austero rompe com a tradição da economia política pois, desde o século XVII, a ciência gris ensina que o orçamento é produto da riqueza social-estatal e não o inverso. A riqueza, conceito tão elementar quanto esquecido no Brasil, segue crescendo com a mesma força com a qual multiplica a desigualdade social. A burguesia brasileira - comerciantes, industriais, banqueiros, latifundiários - professam em uníssono o respeito a austeridade permanente como se, de fato, a praticassem e, no limite, não pudessem viver sem ela. No entanto, a historia das crises revela, que a burguesia necessita tanto da política de austeridade (LRF) quanto da produção de déficits. Na verdade, a produção do déficit é ingrediente decisivo no processo de acumulação de capital desde quando a Inglaterra criou um banco a partir da dívida estatal e produziu o impulso capitalista necessário para se transformar na oficina do mundo. Não fosse o consenso em economia tão rasteiro entre nós, seria ocioso recordar questões tao elementares da historia do capitalismo completamente ignoradas em função do caráter ideológico do "debate" econômico.

Teoria e práxis do rombo fiscal
A história do capitalismo contemporâneo evidencia o caráter ideológico da lei de bronze pois tanto o principio da austeridade quanto a produção do deficit depende sempre de interesses concretos. Enfim, a lei deixa de funcionar quando a conveniência burguesa determina; em consequência, as classes dominantes, quando necessário, desprezaram sutil e completamente as leis de bronze com o conhecido recurso do assalto ao estado. Assim, os déficits supostamente indesejáveis se tornam inevitáveis e a defesa aberta da LRF vai pra segundo plano em função das exigências da conjuntura. A dívida do estado é, finalmente, o grande negócio para os capitalistas, razão pela qual seu pagamento religioso é também considerado uma lei de bronze: dívidas devem ser honradas em qualquer situação. O pagamento da dívida requer superávits fiscais e comerciais permanentes e, em consequência, a austeridade se transforma em imperativo político-moral.

Os banqueiros - não simples ladrões - assaltam o Banco Central
Os capitalistas aceitam a erupção dos déficits quando a quebradeira de empresas (geralmente monopólios) exige a intervenção do Estado tal como ocorreu em 2007 e 2008 nos Estados Unidos. O governo republicano de George Bush não vacilou em utilizar recursos públicos para salvar a General Motors, o sistema bancário, as seguradoras que estavam em completa bancarrota pela ação de seus executivos. A extensão do fenômeno indica quebra sistêmica, jamais produto da ação "irresponsável de um executivo"; ao contrário, ainda que muitos deles foram processados individualmente, ficou claro que a administração temerária dos grandes monopólios era, na verdade, um modelo exigido pelas regras do jogo. O Estado então aprofundou o déficit para salvar os monopólios sem vacilação alguma e naquele tempo ninguém - na imprensa ou nas organizações patronais - lembrou da doutrina das contas públicas superavitárias.

O Brasil não foge a regra, mas tem lá sua particularidade. O quadro abaixo mostra a evolução do superávit primário, do gasto financeiro e do resultado nominal até 2015 segundo os dados do Banco Central.

                Ano                primário        gasto financeiro       resultado nominal

2003
55,6
-144,6
-89,0
2004
72,2
-128,5
-56,3
2005
81,3
-158,1
-76,8
2006
75,9
-161,9
-86,0
2007
88,1
-162,5
-74,5
2008
103,6
-165,5
-61,9
2009
64,8
-171,0
-106,2
2010
101,7
-195,4
-93,7
2011
128,7
-236,7
-108,0
2012
105,0
-213,9
-108,9
2013
91,3
-248,9
-157,5
2014
-32,5
-311,4
-343,9
             2015                -111,2               -501,8                -613,0

Até 2013 os sucessivos governos do PT acumularam suculentos superávits fiscais (superavit primário). O gasto social era controlado com mão de ferro, a despeito da propaganda governamental sobre os programas sociais e a ideológica emergência de uma nova classe média num país subdesenvolvido.

Em 2014 apareceu o primeiro déficit em mais de uma década; ainda assim, cifra modesta: apenas R$ 32,5 bilhões. Na verdade, ao contrário do que afirma a oposição tucana, o minúsculo déficit não era sequer capaz de fomentar ações do governo para enfrentar um ano eleitoral, no qual, como manda o comportamento republicano vigente, o governo colocaria a máquina a funcionar em favor de seus candidatos. O reduzido déficit, no entanto, não pode ocultar tema relevante: neste ano, ocorreu fantástico crescimento do pagamento de juros, pois enquanto 2013 a orgia financeira consumia 157 bilhões, em 2014 exigiu adicionais 343,9 bilhões!! Esta rápida evolução dos gastos com o rentismo financeiro deve-se em primeiro lugar a decisão de Dilma em aplicar a ortodoxia neoliberal na condução da política econômica. Os banqueiros pressionaram como alegam petistas? Claro que sim! Mas quando foi diferente? Os banqueiros pressionam há séculos os governos e aproveitam toda crise para assaltar o Estado via dívida pública e empréstimos externos.

A situação já insustentável piorou ainda mais em 2015 com a política ultra neoliberal aplicada por Dilma. O déficit primário, ou seja, o gasto do governo sem a contabilização dos juros, alcançou 111,2 bilhões; mas o déficit nominal, aquela cifra que contabiliza o pagamento de juros, registrou importante acréscimo: saltou para 613 bilhões (501,8 bilhões com o pagamento de juros), quase o dobro do ano anterior.

Neste contexto podemos entender o giro a direita operado por Dilma quando, de maneira surpreendente para seus desavisados eleitores, adotou sem vacilação o programa defendido por Aécio Neves. Nenhuma surpresa, antecipo, pois a causa fundamental do giro à direita estava escrito nas estrelas. Numa economia dependente, comandada pelo rentismo, somente um estadista poderia convocar o povo e mudar o rumo da economia e do Estado. Dilma e a cúpula petista - Lula à frente, sempre - decidiram praticar a política do adversário derrotado com a certeza de que não poderiam deixar a burguesia sob hegemonia tucana. Ao adotar o programa liberal, Dilma julgou que mataria dois coelhos com uma cajadada: segundo seus cálculos, a direita estaria com ela na medida de seus interesses e a esquerda julgaria que tudo poderia ser pior com Aécio, aceitando, assim, a dura realidade. Não se deve esquecer a pressão quase pública de Lula para levar Meireles ao comando da economia, indicando a "necessidade" da rápida atuação para o insaciável apetite rentista. Enfim, é legitimo considerar que Lula queria mais rapidez no ajuste e todos podem recordar seu breve ativismo no meio sindical ao afirmar que a questão decisiva não era o pântano moral da cúpula petista mas a crise econômica.

A súbita guinada à direita não decorria, portanto, somente da suposta astucia e descarado oportunismo político da direção petista. Era, na verdade, uma imposição das condições concretas, das exigências da república rentista e especialmente da fração financeira da burguesia diante da minima ameaça de interrupção do fluxo financeiro a seu favor em caso de inadimplência do Estado. A redução da capacidade de pagamento permitiu a cena necessária para a mudança de rumo, o fim da breve e precária primavera keynesiana (nova matriz econômica) e a fatal imposição da volta à ortodoxia como se, de fato, os políticos tivessem finalmente recuperado a lucidez que as finanças reclamam.

A crise escancarou outro ritmo. A burguesia queria um ajuste rápido e profundo, sem a parcimônia petista que faria tudo exatamente igual, porém, de maneira "negociada". É claro que o ajuste praticado por Dilma foi violentíssimo! Milhões de desempregados em poucos meses, acelerado processo de decadência e desnacionalização industrial, agravamento da questão fiscal pela recessão, desvalorização da moeda e certa inflação para corroer o poder de compra dos salários. A crise financeira do Estado - diretamente proporcional a força da política de juros praticada pelo governo via Banco Central - era de fato inocultável, mas Dilma não somente vetou a auditoria da dívida como insistiu na natureza fiscal de um problema sob o qual já não tinha controle.  

Na cabeça dos keynesianos a política econômica deveria defender a industria nacional, mas eles parecem ignorar os efeitos destrutivos do Plano Real sobre a burguesia industrial. De fato, a participação da industria de transformação no PIB era em 2004 de quase 18% e declinou em 2015 para 9%. Tal como no poema de Drummond, "burguesia industrial já não há". E agora José?

Não é a força da burguesia mas precisamente seu raquitismo industrial a origem do protagonismo da FIESP na Avenida Paulista nas manifestações de massa contra um governo acuado moralmente e decidido a recompor o pacto de classe sem ativismo sindical e popular. Os economistas keynesianos estavam roucos de tanto gritar desde a UNICAMP por "outra política econômica" centrada no "fortalecimento do emprego e renda", mas sofriam a mesma solidão do planalto: quais forças sociais os apoiavam? A falta de realismo apareceu na tentativa tao desesperada quanto ingenua do "compromisso pelo desenvolvimento" no qual a CUT, Força Sindical, UGT, CTB, NCST e CSB pelos trabalhadores e a CNI, Anfavea, Abimaq, Abit entre outras entidades patronais defendiam o "melhor dos mundos possíveis" onde - alimentados por imensa ilusão de classe - supunham garantir o desenvolvimento do país. Era beco sem saída, a vida comprovou. Não é fácil tentar pacto com a lumpemburguesia.

O caminho de Guermantes - Proust

Um golpe de classe?
A burguesia brasileira - sempre dirigida pelo capital financeiro - não vacilou diante da oportunidade. Uma vez instalado o governo Temer colocou Henrique Meirelles e Ilan Goldfajn, dois falcões da rapina financeira, no comando dos postos mais importantes da republica. Com velocidade invejável, os dois trataram de convencer a opinião pública que o rombo das contas públicas era muito pior do que mentiam os petistas. Na mesma escala em que incluíam no cálculo todo tipo de dívidas com o claro objetivo de inflacionar a conta final, estavam conscientes que a profundidade do ajuste seria proporcional ao volume do déficit. A mágica cifra de 170 bilhões de reais recompunha parcialmente a necessidade de seguir financiando o rombo na exata medida em que alimentava ainda mais o rentismo e, de quebra, permitia ligeira margem de manobra para o governo gastar por conta alguns bilhões para as necessidades da "base aliada" num ano de eleições municipais.

Os dias atuais revelam, portanto, o crescimento do déficit e a austeridade caminhando juntas. Déficits para financiar frações do capital e austeridade sobre o povo. A ideologia do sacrifício, tal como no cristianismo dominante, acompanha a ideologia da austeridade como se após este período de ajuste - duro, porém necessário - todos seriamos agraciados com uma política de renda e emprego novamente. No entanto, as classes dominantes não escondem o jogo e o governo anuncia que o vale de lágrimas não será passageiro: nada de frouxidão ou excessos nos próximos 20 anos!

Keynes na periferia
Com a LRF o liberalismo de direita julgou que tinha assegurado um valioso instrumento contra os governantes, especialmente importante contra o "populismo", considerado inclinação natural dos latino-americanos a irresponsabilidade nos assuntos de Estado. No entanto, o sono tranquilho durou pouco porque as exigências da vida são mais fortes. 

Em 2007/2008, a crise abalou os países centrais, com epicentro nos Estados Unidos e exigiu que o Estado - sim, aquele mesmo ogro filantrópico da consagrada expressão de Octavio Paz - abandonasse a antiga ladainha da "não intervenção na economia" e aos olhos atônitos do discípulo liberal concedesse aparente razão ao keynesiano intervencionista. 

Nos Estados Unidos os déficits são permanentes ainda que em 2015 tenha sido o mais baixo em 8 anos, segundo dados do Departamento do Tesouro. A cifra tocou os 439 bilhões de dólares, quantia 9% inferior a 2014. As fontes indicam que é o mais baixo desde 2007, quando a crise eclodiu com força nos países centrais. Ninguém com duas moléculas de realismo defendeu nos Estados Unidos um "orçamento equilibrado" e o fim do "déficit" para arrumar a economia. Lá, a teoria é outra. Existe, obviamente a ideologia do combate aos déficits mas foi esclarecedor observar como Bush, um republicano avesso aos subsídios keynesianos, tirou o cheque e cobriu rombos bilionários dos grandes monopólios em 2007 e 2008 quando a General Motors, os bancos e as seguradores foram a bancarrota após a orgia da liberalização... É grande a diferença entre a burguesia dos países centrais e a lumpemburguesia dos países latino-americanos!

Num breve texto de 1925 (Am I a liberal?), Keynes declarou a impossibilidade de assumir o Labour Party na Inglaterra porque este representava uma classe antagônica à sua origem social. Esperto, na mesma medida em que evitou o trabalhismo britânico, Keynes simulou distancia do conservadorismo e adiantou-se na defesa do que chamou "Justiça e o bom senso". Neste contexto, alegou que "... the class war will find me on the side of the educated bourgeoisie" (a luta de classes me encontrará sempre ao lado da burguesia educada), bordão abre-alas para certo ativismo keynesiano de corte progressista.

Agora, os keynesianos - Luiz Gonzaga Belluzzo talvez seja o mais visível deles - se dizem "heterodoxos" e de certa maneira a auto-definição serve como caminho fácil para ocultar - por conveniência ou ignorância - as raízes ortodoxas de seu mestre mais famoso. Tal comportamento evita o tema da conversão, tao decisivo na fé quanto na ciência. Enfim, Keynes nem sempre foi um keynesiano, tal como o reconhecemos agora. Ao keynesianismo brasileiro lhe falta dentes para morder e, de fato, eles assumiram há tempos a ideia ortodoxa segundo a qual os "fundamentos da economia" devem ser sólidos e não convém brincar com política fiscal (déficits fiscais). Por esta razão toleraram durante uma década a LRF pois, apesar dela, conseguiam vender suas ilusões por meio de governos petistas com reduzidos programas sociais e a feliz suposição de uma "nova matriz econômica". O pacto de classe funcionou e os programas sociais permitiram aos "heterodoxos" fazer de conta que os custos do processo não dependiam da superexploração dos trabalhadores sem a qual nada funciona.

Durante todos estes anos, os keynesianos silenciaram sobre a guerra de classes, ao contrário de seu mestre mais ilustre. O famoso tripé - política monetária austera, cambio flutuante e taxa de juros elevada - considerada expressão da racionalidade científica representa, na verdade, os interesses das distintas frações de classe racionalizadas pelo economista. A ideologia dos economistas não raro é produto de deficiências teóricas graves mas é decisivo entender o limite do keynesianismo nacional também como manifestação da ausente base material, ou seja, a inexistência de uma burguesia industrial ascendente. Temos exatamente o oposto! Aquela tirada de Keynes segundo a qual "a luta de classes me encontrará sempre ao lado da burguesia educada" é até simpática em termos literários mas rigorosamente falsa no solo histórico latino-americano. Aqui, uma burguesia educada - que, de fato, tampouco existiu nos países centrais! - seria um luxo não fosse apenas um desejo irrealizável do bom mocismo político brasileiro e seu corolário, a colaboração de classes em prejuízo dos trabalhadores. André Singer, ex-porta voz de Lula, manifestou como ninguém a "descoberta" nas vésperas da votação contra a presidente: segundo o professor da USP era muito significativo que a luta de classes tivesse voltado à cena "trazida pela direita e pelo capital". Arrematou atônito: "Isso é surpreendente. Por que essa ofensiva diante de um projeto, de um governo que o tempo todo tentou conciliar, desde 2003 até agora, e jamais apostou na ruptura e no enfrentamento?"

Nas condições do capitalismo dependente latino-americano, a crise evidenciou a margem de manobra reduzida para os pactos róseos que a maior parte do sindicalismo e dos economistas heterodoxos defenderam. A realidade atropelou todas as ilusões. Não sabemos por quanto tempo estas mesmas ilusões podem ainda comandar as esperanças ingenuas dos homens. Não oculto certo otimismo neste difícil momento pois, diante da ofensiva do capital, os trabalhadores podem entender que nada devem esperar da lumpemburguesia brasileira e, em consequência, nada tem a perder. Exceto, é claro, aqueles velhos grilhões que os mantém atados ao sistema que os explora e oprime.


PS: agradeço a Mauricio Mulinari os dados da tabela e também as permanentes conversas que temos mantido nos últimos anos. 

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Um certo Samuel Pinheiro Guimarães

Não recordo com precisão a data, talvez tenha sido em 2010; mas lembro do recado para um encontro com Samuel Pinheiro Guimarães, quem estaria interessado em conhecer o trabalho do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA). Na época ele ainda mantinha grande influência em Brasília e estava de passagem pela UFSC. Numa tarde discutimos longamente a situação política nacional e a orientação da política externa construída em larga medida sob sua influencia. Samuel tem incomum paciência. Não aquela paciência cosmética, própria do cretinismo parlamentar ou do diplomata cínico, simulação de ouvidos ao interlocutor. É paciência de quem sabe a disputa pelo futuro da nação marotônica e não prova de 100 metros rasos.Talvez por isso ele exibe parcimônia na exposição de idéias e na disputa teórico-política como se fosse um monge dotado de serenidade secular. Ele sabe que poderá não colher os frutos de sua pregação - afinal a Revolução Brasileira não ocorrerá em outubro próximo - mas tal realismo não diminui seu interesse ou força discursiva sobre os destinos do Brasil. Lá vai Samuel pelos auditórios ensinando soberania, conceito inexistente na formação do corpo diplomático.

Nos últimos anos tivemos vários encontros no Brasil e em outros países da Pátria Grande, sempre em atividades destinadas a criar consciência sobre nossa condição de país subdesenvolvido e dependente. Antes de conhecê-lo, eu havia lido 500 anos de periferia (1999), livro no qual imediatamente apreciei a heresia do embaixador ao adotar o conceito "periferia" tão hostilizado pelo corpo diplomático afeito ao colonialismo dominante quanto decisivo para a política de um país verdadeiramente independente. Basta imaginar a preocupação das classes médias com "nossa imagem lá fora" para perceber sua idêntica ojeriza aos conceitos "periferia" ou "subdesenvolvido" sem os quais qualquer interpretação de nossa realidade é impotente. Por isso mesmo, ele pode exibir no currículo vários editoriais da imprensa burguesa contra suas exóticas idéias. Samuel sabe do efeito destrutivo das multinacionais numa economia dependente, razão pela qual não poupa os auditórios sempre treinados na arte de receber o capital externo como se fosse ar fresco para um asmático. A voz calma e por vezes irônica revela aos poucos o efeito corrosivo na consciência ingenua dos ouvintes, empurrando-os para o incomodo e inevitável terreno da consciência crítica.

No nosso jargão - na esquerda - Samuel é considerado "governista". De fato, ele é um governista. Ainda assim - governista - Samuel não perdeu a lucidez. No entanto, esta posição é matizada em perspectiva histórica, ou seja, no espelho do entreguista FHC, feito aqueles liberais que afirmam as virtudes do capitalismo a custa da Idade Média. A elegância de seus argumentos não oculta afinidade maior com Lula e molecular diferença substantiva com a política externa de Dilma só perceptível para quem se liga nas sutilizas da política, na riqueza do detalhe. O real não se vê, ensina José Martí. É a segunda vez que dividimos uma mesa de debates após a vitória de Dilma nas últimas eleições presidenciais. Eu disse a ele e escrevo aqui: Samuel era útil para o antigo governo mas é muito melhor quando está na oposição. É fácil imaginar quanta angústia ele acumulou para tentar - por dentro do governo - avançar na afirmação da soberania e independência da política externa que se revelou, ao fim, vã. É drama comum a muita gente boa que acreditou estar mudando o mundo na defesa de governos assemelhados como se estes fossem, de fato, o único horizonte possível para o Brasil e a América Latina neste mundo incerto.

No encontro dos economistas da região sul realizado aqui em Floripa na semana passada, o embaixador chegou mesmo as raias da diversão ao responder sobre o papel de Serra no governo Temer. Trata-se de um neófito, nada mais, disse Samuel. Na verdade, fosse a imprensa minimamente apegada a verdade, Serra já seria objeto de escárnio público. No entanto, o senador paulista é um homem de Washington na disputa presidencial brasileira e conta com aquela imunidade "natural" do jornalismo (TV, rádio e jornal). Na verdade, Serra é funcionário público estadunidense com mandato de senador, atualmente desenvolvendo funções na chancelaria. A diferença é, além da benevolência da imprensa, o fato de Serra saber mentir com método e praticar o discurso que os editores tomam como música. O conceito imperialismo não existe na cabeça da elite brasileira e, em consequência, tampouco surge na redação de jornalões e/ou jornalecos. Não existe na cabeça porque na real, para os sabichões de plantão, imperialismo não existe mais. Existe globalização...

O futuro é sempre incerto e não poucas vezes a escolha dos povos conta com a falta de juízo histórico severo, especialmente no curto prazo. Não obstante, em breve - creio eu - amplos setores da população abandonarão o ceticismo conveniente à ordem dominante e, mais cedo do que tarde, serão arrastados pelo turbilhão da política, superando assim a aparência de situação sem saída agora sentida como verdade eterna. Neste tempo futuro, com a serenidade necessária, observaremos então a importância do combate e a solidão política do embaixador, confinada nos estreitos limites do sistema petucano onde os dois bandos  - petistas e tucanos - em aparente antagonismo revelaram, cada qual a seu modo, as misérias da classe dominante que fez do país um horror para as classes populares e um paraíso para seu completo e exclusivo deleite.