quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

As confissões de Zé Dirceu

 A completa integração do PT à ordem burguesa é assunto quase proibido entre as cabeças pensantes e independentes no país. Com frequência, quando a reflexão exige um pouquinho de rigor e duas moléculas de honestidade político-intelectual, a miséria partidária visível aos olhos de milhões de brasileiros, é tematizada como fruto de circunstâncias alheias à vontade de seus líderes. Supostamente, uma obra da contingência, jamais uma opção consciente de seus antigos dirigentes e especialmente da figura de Lula. A "ala esquerda" do PT - presença apenas testemunhal da decadência política, ideológica e programática do partido - reproduz ilusões sobre a real situação do outrora considerado o "maior partido dos trabalhadores da América Latina". Aquele militante de sentimento socialista há muito temperou suas antigas convicções com elevadas doses de pragmatismo cujo resultado pode ser identificado sem muito esforço no caráter confuso do governo, na miséria da maioria de seus ministros, na completa falta de iniciativa política e, sobretudo, na continuidade da economia política do rentismo sob condução de Lula/Haddad.

Em perspectiva histórica, a antiga capacidade de formulação do PT e seus dirigentes desapareceu para sempre pois agora as instâncias partidárias se encontram sob comando de deputados, governadores, senadores e todas as demais expressões do mais rasteiro cretinismo parlamentar e dos iniciados no submundo dos pequenos negócios. Nessas circunstâncias, não é exagero afirmar que o antigo partido nascido do duro combate operário contra a ditadura e forte presença da esquerda reformista e revolucionária - derrotada em abril de 1964 e mais tarde em 1974 com o fim da luta armada -, desapareceu para sempre. Entretanto, se muitos reconhecem os méritos de sua origem, são raros aqueles capazes de afirmar sua decadência na atualidade. No limite, sob o impulso de múltiplos interesses - todos distantes dos trabalhadores - um hálito de esquerda ainda permanece na jaula lulista. Em consequência, podemos observar apelos para a "volta às bases" e declarações em favor da "antiga militância aguerrida" quando o partido se encontra completamente capturado pelo carreirismo político-eleitoral sob a rasteira argumentação "gramsciana" segundo a qual é "preciso disputar a hegemonia" nos marcos do atual sistema político. Uma farsa completa!

Em consequência, a audiência aos atuais representantes do partido - nem em pesadelo poderíamos chamá-los de dirigentes! - constituiu um exercício inútil para a compreensão do conflito de classes de alta intensidade em curso no Brasil. O PT e especialmente Lula, repete enfadonhamente o bordão que alimentou a vitória eleitoral considerada por seus cardeais necessária para abrir as portas da volta à normalidade republicana perdida com a destituição de Dilma em agosto de 2016 e a vitória do protofascista Bolsonaro em 2018. Mas esse retorno, sabemos, é impossível sem uma mudança radical na correlação de forças que o resultado eleitoral de 2022 era como alertamos muitas vezes, incapaz de produzir. Contudo, o completo e irreversível controle liberal do PT e a dedicação resoluta de Lula em filiá-lo doutrinariamente ao Vaticano e ao Partido Democrata dos Estados Unidos, impede qualquer ação necessária para enfrentar tanto as transformações do capitalismo dependente em sua fase rentística quanto para regenerar a crença das maiorias no sistema político em crise profunda.

Aqui, precisamente aqui, reside a vantagem estratégica da direita protofascista comandada por Bolsonaro na conjuntura: a incapacidade crônica do PT e Lula em oferecer uma alternativa à dupla crise anunciada acima. Ademais, o governo e seu partido é notoriamente incapaz de pensar e implementar uma alternativa real para a crise da república burguesa, mas, inclusive, em função da composição e ação de seu governo, o petismo (seja lá o que isso quer dizer) não percebe o aprofundamento da crise e a completa repulsa da maioria da população às negociatas entre Lula e o covil de ladrões representado no congresso nacional. Os representantes do PT comandam, quando muito, comitês eleitorais e as disputas internas se resumem à busca de espaço nos ministérios cujo objetivo é a repartição de influências nos estados destinados à reprodução parlamentar e à conquista de governos estaduais. A função dirigente que o  partido pretendia em sua origem, não mais existe. 

Mas, então, quem "dirige" o Partido? Ora, Lula no governo! Não é Lula quem dirige, mas Lula no governo. E quando Lula não está no governo quem, afinal, dirige o PT? Bueno, nesse caso Lula mantém o controle das decisões mais importantes porque é "o único que pode chegar" a presidência! O Partido não passa de uma plataforma eleitoral de acesso a postos nos ministérios, razão pela qual uma instância decisória jamais ousa ultrapassar os limites estreitos da linha traçada pelo presidente da república. Há muito o Partido renunciou sua autonomia frente ao governo e mantém disciplina total diante das determinações de Lula.  

A submissão do Partido à razão de Estado é, portanto, completa e definitiva. Não é ocioso recordar que  na periferia capitalista (latinoamericana), o Estado possui determinações que ninguém pode ignorar, menos ainda aqueles devotados à tarefa de lograr cidadania nos marcos da ordem burguesa. Aqui, o "comitê de negócios da burguesia" não pode sequer apresentar o mofado e anacrônico "estado de bem estar social" que a duras penas e de maneira caricata exibe reminiscências numa Europa completamente submetida aos Estados Unidos. A orfandade socialdemocrata é, inclusive para o mais ingênuo dos desenvolvimentistas, uma dura e amarga realidade.

Nesse contexto, o vice presidente nacional do PT - o deputado Washington QuaQuá do Rio de Janeiro - não representa anomalia, mas uma demonstração da vitalidade do partido na ordem burguesa; ele, de fato, não possui limites ou escrúpulos, como diz um zeloso e impotente moralista, reminiscência da juventude partidária em extinção. Entretanto, a atuação do deputado fluminense exibe a ausência das antigas virtudes que o petista exitoso (vereador, prefeito, deputado, senador ou governador) tampouco pode carregar, pois a necessidade de reprodução parlamentar tem que conviver com todo tipo de oportunismo eleitoral e um apetite insaciável típico do lúmpem a serviço da burguesia. Portanto, nada de injustiça, por favor: além de Quaquá, existem muitos outros, de igual estirpe e com semelhantes objetivos, atuando com mais requinte na mesma direção.

É nesse contexto que ainda dedico alguma atenção às analises do José Dirceu. O ex-todo-poderoso secretário geral e presidente do Diretório Nacional por muitos anos, responsável pela derrota da esquerda marxista então existente no PT e influente chefe da Casa Civil do primeiro governo Lula, caso não tivesse sido destituído, seria o candidato imbatível na disputa interna na sucessão do então presidente. A despeito de sua aptidão para o pragmatismo, Zé Dirceu mantém seletiva memória histórica e segue operando como uma espécie de "referência crítica" para os petistas mais sensíveis e desesperados com os rumos do atual governo. Ele voltou a circular na imprensa burguesa, com frequência é ouvido por empresários e parlamentares porque, como a vida ensina, ninguém sabe sobre o dia de amanhã... É claro que as ações dos tribunais contra ele limitam e de certa forma regulam uma atuação mais destacada nas instâncias partidárias, mas nem por isso ele deixa de indicar caminhos e ensaiar uma disputa mais intensa.          

Pois bem, numa recente entrevista ao Instituto de Brasilidade  (22 de fevereiro), Zé Dirceu confessa seu absoluto ceticismo sobre as possibilidade do governo petucano. Afirma sem rodeios - mas com o devido cuidado - que o governo vai fazer muito pouco nesse mandato e adianta que somente num prazo mais longo (8, 12 ou 16 anos!!) o petista angustiado poderia ter alguma esperança de um resultado melhor.  Ora, o argumento é pueril mas alimenta o apetite eleitoral enquanto tenta ganhar tempo para regenerar o PT cujo congresso esta previsto para o próximo ano. 

Zé Dirceu, maldito pela política burguesa da qual segue fiel servidor, tenta recuperar influência política e incidir na reconstrução do Partido porque conhece a trama que ajudou construir e da qual foi, talvez, a principal vítima petista. Ele fala, sugere caminhos, mas não tem instrumentos para fazer valer suas propostas no governo: nem poderá. O PT, como partido capaz de mobilizar e incidir na guerra de classes, está morto. Em 2016, diante da ofensiva burguesa sob comando da direita, ficou evidenciada a mais completa impotência para manter Dilma ou ao menos lutar sem temor e medida na defesa da ex-presidente. Foi uma derrota histórica com profundas consequências entre as quais a impossibilidade de uma mudança de rumo radical ou moderada diante da ordem burguesa e as exigências do sistema político em crise. Na ausência dessa revisão, emergiu a justificativa ideológica do "golpe", a denúncia do "anti-petismo", os brados contra a perseguição judicial de juízos corruptos (Moro), a produção midiática de um consenso contra Lula e o PT, como se os inimigos de classe estivessem abandonado um código de ética na luta política republicana!

Quais as confissões mais importantes de Zé Dirceu na entrevista mencionada?

Em primeiro lugar Zé Dirceu confessa a ausência de um "núcleo de governo claro". Ademais, não deixa de acusar o "desastre em certas áreas" de atuação e registra a incapacidade de Lula em mover a militância mesmo quando denunciou as elevadas taxas de juros: as "bases" não se moveram e a "sociedade" ignorou completamente os reclamos presidenciais. Ora, ao contrário do que afirma ZD, o governo tem um núcleo racional cujo comando é de Lula e Haddad. Na prática é o "núcleo dirigente" ordenado pelo respeito absoluto da economia política do rentismo responsável pelo "desastre de certas áreas" cada dia mais visível para milhões de brasileiros na insuficiência das políticas públicas restringidas pelo teto de gastos e a política de austeridade praticada com total zelo até aqui. Haddad, com profunda convicção, faz a defesa do déficit zero! De resto, supor que uma base fiscal distinta - colocar os ricos no imposto e os pobres no orçamento - e uma baixa gradual dos juros, poderiam alargar as estreitas margens nas quais navega o barco petista é pura mistificação. 

Na segunda confissão Zé Dirceu recusa o ônus do identitarismo. Ele descobriu que a pauta ambientalista (Environmental, Social and Governance - ESG), LGBT e da igualdade de gênero é uma política dos capitalistas. Eureka!!! As empresas multinacionais adotam e multiplicam a ideologia liberal ao redor do mundo mas aqui, no Brasil, segundo suas próprias palavras, o "ônus ficou com a esquerda". É uma descoberta motivada pela baixa densidade eleitoral do identitarismo, a despeito de imensa propaganda diária dos monopólios dos meios de comunicação! Eis a razão pela qual Lula exigiu discretamente candidatos com alguma liderança popular e não alguém preto, gay ou mulher! De fato, o identitarismo rasteiro e alienante - expressão particular de mobilidade social de extração individualista - divide o que restou da esquerda e permite a agitação ideológica da direita na imprecisa e conveniente "guerra de costumes". É a deriva identitária denunciada e analisada com certa precisão por Elizabeth Roudinesco. O reconhecimento do problema por Zé Dirceu é tardio, porém útil para um gradual descolamento da agenda identitária; de resto, o PT já resolveu em larga medida o problema ao terceirizar o identitarismo via PSOL, (PC do B também) cada dia mais assemelhado a sublegenda no "horizonte" lulista.

Ora, o identitarismo é ideologia importada dos Estados Unidos, mais concretamente do Partido Democrata, mas o apetite eleitoral e o financiamento externo manteve fidelidade de muito "movimento social" e algumas "lideranças" a quinquilharia ideológica gringa. No entanto, a análise da disputa eleitoral no país imperialista revela de maneira cristalina as razões pelas quais Obama venceu nos Estados Unidos recusando abertamente o identitarismo em defesa astuta e realista da condição americana! Contudo, em sua sucessão, o Partido Democrata viveu breve primavera identitária nas internas de 2016 quando o senador Bernie Sanders tentou mas perdeu para Hillary Clinton. Na ultima disputa o identitarismo de Sanders ensaiou mas sequer chegou à convenção final. O Partido Democrata amargou uma fragorosa derrota para Trump e Biden seguiu a fórmula de Obama para vencer, mas a notícia apenas começa a chegar aqui...   

A terceira confissão não é uma novidade mas nem por isso deixa de ter importância: ZD declara o governo petucano de Lula/Alckmin como centro-direita; um governo de centro-direita com participação da esquerda! É uma pancada de realismo na cabeça do petista ingênuo e também do lulista religioso. É óbvio que a declaração não desperta consciência alguma no sentido crítico pois os dois bandos estão treinados na estranha arte do pragmatismo capaz de justificar qualquer ministro ou aliança desde que mantenha Lula na cadeira presidencial. Zé Dirceu pretende que o congresso do partido no próximo ano retome algo da iniciativa política a ponto de poder influenciar tanto na composição do governo quanto na orientação das políticas públicas na suposição de que é possível recuperar a capacidade de mobilização da sociedade com o despertar do PT. Entretanto, o compromisso de vida de Lula com a economia política do rentismo aliado às transformações do capitalismo no país que seus sucessivos governos produziram, a derrota histórica de 2016 e a renúncia do projeto socialista em nome da miserável administração democrática da república burguesa e da crise de seu sistema político impedem na raiz qualquer esperança nos mais otimistas.

A quarta confissão é uma novidade, pois reconhece que os países capazes de garantir certa estabilidade política e com alguma capacidade de intervenção nas disputas mundiais possuem uma coesão interna que aglutina forças sociais e, quando necessário, é também capaz de reprimir seus adversários reais ou potenciais com eficácia. Na linguagem cifrada, são países que lograram um sistema político centralizado, uma verdadeira miragem nas condições atuais nas quais Lula e o PT reforçam abertamente uma modalidade perversa de parlamentarismo e, em consequência, sabotam em nome do "realismo político" todas as virtudes potenciais do presidencialismo reconhecidas historicamente pelo povo brasileiro. É a defesa abstrata da democracia contra todas as formas totalitárias imaginárias! A despeito das evidências que qualquer um pode ler no jornalão burguês, Zé Dirceu se mantém cativo da criatura que ajudou a fortalecer e concluiu que somente Lula pode liderar um projeto de transformação e mudar o rumo do país. A contradição não poderia ser mais evidente: Lula atua decididamente nos marcos da podridão do sistema político e reforça todos os seus vícios, como se fosse virtude e sabedoria governar em aliança com Lira ou Pacheco, com Alexandre de Moraes e Campos Neto. De fato, não há uma só medida destinada a revisar as "amarras" herdadas dos governos de Temer e do protofascista Bolsonaro. Nem haverá! Não se trata de limitações impostas pela "correlação de forças" mas de convicções profundas do liberalismo de esquerda.    

Na entrevista, Zé Dirceu aposta no debate público - sua única "arma" na conjuntura - e parece jogar sua sorte na reconstrução militante do PT destinada a criar ou influenciar em alguma medida um governo  incapaz de enfrentar a gravíssima situação nacional que Lula/Alckmin não fazem menos que agravar. No entanto, a linha dominante no governo petucano é avançar nas bases da direita na tentativa de neutralizar ou mesmo capturar apoios até bem pouco fiéis ao protofascista momentaneamente inabilitado pelos tribunais para disputas eleitorais. Há, contudo, um obstáculo insuperável: a economia política do rentismo turbina o desespero da classe trabalhadora submetida à superexploração (salários baixos e precários), políticas públicas em saúde e educação notoriamente insuficientes, taxa de investimento pra lá de modestas, teto de gastos e seguidas promessas de déficit zero. De resto, o improviso é uma marca do terceiro mandato de Lula, a tal ponto que segundo ZD o anúncio da "nova indústria Brasil" pegou até mesmo Lula de surpresa, razão pela, qual numa reunião pública, pediu metas e prazos para um "programa" sem fonte de financiamento (exceto o limitado BNDES) e sem plano algum capaz de ganhar algum grau de credibilidade. A coesão burguesa segue auferindo lucros extraordinários e nem de longe sofre alguma ameaça de natureza política; em consequência, a classe dominante dispõe de Lula e Bolsonaro. Tudo depende das circunstâncias e das exigências do momento. 

Nesse contexto, Zé Dirceu mantém a antiga pretensão de organizar o capitalismo no país com "inclusão social" a luz de um projeto de Brasil "grande". Ao contrário de janeiro de 2021 quando defendeu que o caminho para derrotar Bolsonaro era "reconstruir a consciência social na classe trabalhadora" e trazer de volta ao vocabulário a ideia de revolução social "sem medo" e "explicitando o que ela é", o ceticismo expresso na recente entrevista indica recuo radical. Mas indica também que Lula - altar onde ele deposita todas suas esperanças - não é menos que um beco sem saída!

Não há surpresa e sim repetição. Há muito ambos perderam o encanto dos tempos áureos em que eram carne e osso operando o giro à direita do PT e sua integração à ordem burguesa, jogada considerada sábia pela classe dominante. Agora, somente por conveniência o presidente ainda mantém um otimismo cosmético sem sustento na economia, na política e na luta ideológica, porém, ao custo de imenso sofrimento e exploração do povo. Ambos, cada qual a seu modo, seguem sendo uma fonte valiosa para exibir os limites históricos e políticos intransponíveis do petismo diante da ofensiva burguesa. Agora, Zé Dirceu, ao embalo ingênuo e impotente da geração de 68 da qual declara filiação, brada, de maneira dissimulada, que, de fato, o sonho acabou.

Revisão: Junia Zaidan

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Nos tempos do Américo

Américo Ishida pertenceu a geração dos anos 80 forjada no combate à ditadura e igualmente hostil a transição lenta, gradual e segura do regime militar ao liberal burguês. Perdeu a batalha, mas o combate não foi em vão. Uma andorinha não faz verão: Américo participava do nutrido grupo de trotskistas especialmente forte na Arquitetura num tempo no qual o academicismo agora dominante não tinha vez, pois na intensa batalha das ideias o título de doutor não conta. Fletes, o atual moderadíssimo presidente da APUFSC, turbinava o PC do B. Marcos Cardoso e outros exibiam certa força do PCB. O primo pobre ideologicamente sempre foram os professores militantes ou alinhados com o petismo numa época em que a filiação partidária não rendia cargos ou financiamentos para elaboração de “políticas públicas” e, portanto, ainda continha duas moléculas reais de compromisso com o povo. 

Foto: Coletivo SOMA do CAU

Naquele tempo existia um embrião de “comunidade universitária”, agora reduzido a um bordão destinado a mendigar orçamento em Brasília de duvidosa eficácia. Em consequência, a proximidade entre profes e estudantes era de tal ordem que o almoço (no RU) não estava separado pela conta bancária. Fala mansa, Américo tinha convicções embora seus argumentos eram não raras vezes perguntas; mas não se engane, o japa não cultivava dúvidas como se fossem virtudes. Ao contrário, suas perguntas estavam sempre carregadas de intenção! Na conversa sempre reservou doses comedidas de bom humor temperadas com fina ironia. Ao longo do tempo se manteve íntegro e creio que na exata medida em que a esquerda se fez liberal – com a completa integração do PT a ordem burguesa – Américo se entregou cada vez mais a reflexão sobre a estética marcando certa distância da disputa partidária notoriamente empobrecida. Também estava sempre preocupado e refletindo sobre a questão pedagógica, nas condições atuais um artigo de luxo na universidade brasileira.     

Com Lino Peres, elaborou um lindo projeto para a sede definitiva do IELA que haveremos de realizar. Muitas horas de debates e reflexão sobre o projeto, a América Latina, a luta de classes, a política, a arquitetura, a cultura, etc... Há tempos não sabia dele pois com a letargia da vida sindical somado ao academicismo alienante e de pequenos grupos, o encontro entre professores tornou-se raro e rarefeito. Entretanto, ainda mais raro é o encontro entre profes, técnicos e estudantes unidos numa luta comum; o identitarismo nos divide completamente. O último espasmo coletivo foi o rechaço ao “Future-se”, um adversário tão fácil de bater quanto fugaz para fomentar a unidade política. Talvez por isso não recordo a presença de Américo naquela batalha embora não tenha dúvidas sobre seu compromisso. Tampouco lembro se estava nas marchas até o centro da cidade e nas assembleias de estudantes, mas tenho certeza da natureza de nosso desencontro: o tempo do Américo já tinha passado. Era o tempo da luta contra a ordem, da batalha das ideias que moveu varias gerações na UFSC e em outras universidades, quando a maioria não estava limitada tão somente à administração “democrática” da ordem burguesa com todas as misérias possíveis e imaginárias. Aos 75 anos Américo nos deixa. É uma morte precoce, sem dúvida. Mas o exemplo de seu combate e mesmo as tarefas inconclusas, atualizam a verdade e a necessidade de novo esforço. O tempo do Américo passou? Bueno, o tempo do Américo voltará. Creio, saberemos honrar seu nome.