sexta-feira, 23 de maio de 2014

Pra não dizer que não falei do Che

A historia é deliciosa. Ocorreu há alguns anos e revela o quanto um reitor pode ser miserável intelectual e politicamente. Era um reitor provisório, é verdade. Mas era um reitor. Com a pretensão de tomar medidas de impacto logo de assumir a função, armado com a ilusão de marcar para sempre sua fugaz gestão, decidiu eliminar uma enorme figura do Che há anos ilustrada na parede de um edifício central da Universidade Nacional de Colômbia, em Bogotá. Algo assim como quem diz, "a moleza acabou, agora há aqui, finalmente, uma autoridade". Ele julgou seu ato protegido pelo clima dominante no país que sempre garantiu larga margem de impunidade a qualquer autoridade, mesmo as mais insípidas e pouco influentes. No entanto, no dia seguinte o retrato do Che brilhava na parede novamente. De quebra, desafiados, os estudantes não somente rapidamente reconstruíram a enorme gravura, mas reproduziram centenas de minúsculos retratos do Che Guevara nas calçadas, muros, prédios, como se uma especie de febre guevarista tivesse afetado a estrutura física da universidade após a decisão da autoridade. Diante da ausência de vacina para tal enfermidade, o reitor esqueceu a disputa rapidamente como se nada tivesse acontecido e muito provavelmente, no íntimo, aceitou de bom grado a volta da imagem consagrada pela fotografia de Korda. Talvez tenha julgado adequada a "troca" inesperada imposta pelos estudantes.


Foi por esta pequena disputa que o retrato do Che ainda descansa na parede de um importante edifício na Universidade Nacional. Não tenho saudades de 68 pois, entre outras razões, foram anos que não vivi. Não os fantasio e tampouco os ignoro. Há, de fato, grande importância na década de sessenta, pois foi uma época onde compromisso militante, movimento de massas, horizonte utópico e importantes contribuições teóricas coincidiram. Sem saudade, repito, considero que todos aqueles que conseguem respirar no esterilizado ambiente acadêmico que sofremos, deveriam olhar e quem sabe estudar algo sobre o período. De minha parte, entre os autores daquele efervescente tempo, li com devoção Marcuse, pois era evidente tratar-se de um dos intelectuais frankfurtianos nada disposto a deixar "mensagens em garrafas", para usar uma feliz expressão de sua autoria. O filósofo radicalizou, foi considerado "profeta" pela armadilha midiática e provou também o amargo sabor de uma derrota histórica. No entanto, jamais perdeu a lucidez e muito menos arregou, o que não é pouco. Antecipou com invejável precisão o fim das barricadas, a partir do qual a vida se reduziria a "larga marcha através das instituições" e na qual o trabalho educativo seria o mais importante ainda que menos sedutor. Vaticínio certeiro, afinal, o antigo militante compromissado de outras épocas cedeu espaço para o "agitador" eletrônico, e as novas lideranças estão mesmo de olho numa candidatura a deputado ou numa assessoria parlamentar, antes que arregaçar as mangas em projetos educativos de resultados mais lentos, menos visíveis e com efeitos mais duradouros. O deputado e o sindicalista querem, quando muito, melhorar o sistema na ilusão de que tal meta é possível.   

Este inicio de século pinta distinto. O pragmatismo comanda a vida política e mesmo entre aqueles com inclinação "critica", predomina certo ceticismo funcional à ordem dominante. Não creio que um retrato na parede possa mudar alguma coisa e tenho plena convicção de que os estudantes - aqueles mesmos que reafirmaram o lugar do Che de maneira tão vistosa - tampouco alimentam qualquer ilusão a respeito. As paredes da universidade lá em Bogotá estão bem animadas, como vocês podem ver. De minha parte, trocaria a limpeza geral dos edifícios por uma boa reforma curricular que enfrentasse a paralisia intelectual,a repetição canônica, o eurocentrismo, e a mais completa falta de contato com a realidade que orienta a formação universitária em todo o continente.

Estudantes pintam edificios na UNC
Os estudantes também aceitariam esta troca, estou seguro. É óbvio que nenhum reitor ou reitora na atualidade possui a coragem intelectual suficiente para mexer numa linha da grade curricular, um tema praticamente proibido entre nós. Ministro algum arriscaria seu cargo num projeto semelhante. Os pro-reitores silenciam também... Os estudantes, o únicos interessados em tal mudança estão demasiadamente partidarizados (não politizados!) para tematizar o currículo e os métodos de ensino como um problema político central. Nestas circunstâncias, o que pode uma gravura na parede diante de aulas enfadonhas e alienantes que ocupam diariamente a imaginação na sala de aula com o intuito de aliena-la? Nada, obviamente. Os professores que ditam o ritmo nas universidades se julgam sábios superiores aos doutores escolásticos do século XVI ou simulam a autoridade dos catedráticos da antiquada universidade colonial latino-americana que finalmente foi enfrentada em 1918, em Córdoba, Argentina. Em consequência sentem-se - e atuam - com pedagogia reacionária. As pinturas acima funcionam como alegoria, sem potencia reformadora e menos ainda revolucionária. Recordam, no entanto. E alguém tem que recordar porque afinal, esta é também a nobre função da filosofia. Ainda que o tempo presente pareça ter condenado para sempre uma possibilidade radical de mudar o estado das coisas. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário