domingo, 7 de outubro de 2018

Gracias a la vida

Cid Benjamim escreveu Gracias a la vida. Memórias de um militante para dar alguns recados a todos nós. Eu não pertenço a sua geração mas tenho plena consciência de que ao abrir seu baú de memórias ele despejou sua herança sobre nosso destino sem pedir licença. Ademais, estou convencido que o militante das causas atuais não pode ignorar este inventário pois contém passivos que também são nossos, queiramos ou não.

Marx, num texto de inigualável riqueza literária, afirmou que "a tradição de todas as gerações mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um pesadelo". O alerta do genial mouro pretendia evitar que em tempos revolucionários os vivos não permitissem que os "espíritos do passado" pudessem, com o auxílio da velhice venerável, representar a nova cena histórica que emergia debaixo de nossos narizes com a força inexorável dos tempos de crise... Ocorre que Cid esta "vivo e coleando", como ensina aquele mexicanismo tao delicioso quanto útil para os que lutam e peleiam aqui e agora. Gracias a la vida não é, portanto, livro de quem bateu em retirada e pretende enviar mensagens em garrafas desde a autoridade da velhice venerável. De minha parte, não creio em velhice de ninguém, menos na de Cid. Gracias a la vida é livro militante, repleto de intenções. Portanto, leve a serio o subtitulo e não julgue tratar-se de testamento, pois Cid esta na ativa.
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Além de ter recebido o livro das mãos generosas do autor, eu acuso nestas linhas que nada pode ser pior do que a indiferença daqueles que estão ao alcance de nossos olhos mesmo consciente que a grande maioria dos autores que estudei jamais tomarão café comigo. Nem vinho. Li o livro em poucos finais de noite, em tempo não superior a uma semana, O trabalho, a política, a vida enfim, autorizou tardiamente este comentário. É tarde, bem sei, mas ainda é tempo.

Não serei exaustivo e longe de mim apresentar a obra; valorizo a polemica pois sofremos um tempo orientado pelo bom mocismo, de profundo desinteresse pela leitura; escrevo também porque observo por parte das novas gerações um esquecimento sobre as décadas passadas como se, de fato, aqueles anos ora badalados como rebeldes, ora ditos de chumbo, jamais tivessem existido.

Há, portanto, uma crônica da solidão na livro de Cid quem jamais renegou a luta armada embora afirme que o caminho político escolhido por ele e seus camaradas de armas representou um erro para sua geração. Não um erro qualquer, pois a opção pelos ferros contra a ditadura foi pago com sofrimento, tortura, mortes e longos anos de exílio (9 anos e três meses). Cid não é Gabeira, vamos ao ponto. Quanto ao nosso personagem, creio indispensável constatar sua bravura diante da tortura e, a despeito dos horrores inerentes, o relato com fino humor; definitivamente, um traço de afirmação de humanidade diante da barbárie.

Os recados da Historia
Os anos sessenta tem muitos encantos e enganos, não é matéria fácil. A classe dominante lançou mão da ditadura cívico-militar para derrotar o nacionalismo reformista de Jango e Brizola entre nós na pretensão de execrá-lo para sempre. As novas gerações, estas mesmo que frequentam o PSOL são muito pouco inclinadas a cultura nacional e ao apreço pela Historia. Em larga medida, em nosso partido - do Cid e meu - a História muitas vezes parece não existir e a luta política não raras vezes insinua-se como se tivesse iniciado com a rebeldia de alguns parlamentares em relação ao fracasso petista. É engano grave, consciência ingenua. Estamos avançando, ainda que no ritmo de nossa enfadonha lentidão.

Aos mais novos, informo que não há medo ou ousadia que o jovem Cid não tenho vivido: dos assaltos a banco ao sequestro do embaixador estadunidense - provavelmente a mais espetacular ação da luta armada - na qual empenhou grande energia e não menor carga utópica. O sequestro do embaixador gringo, por exemplo, nasceu por puro acaso, você poderá conferir; ademais, teria sido um retumbante sucesso não fosse Gabeira esquecer num restaurante o paletó feito a medida para Cláudio Torres, quem era nada menos do que o chefe militar da operação, não obstante ter vida legal. Na noite seguinte da negligência de Gabeira, Claudio foi preso em sua casa por agentes do Cenimar, sofreu torturas e manteve-se íntegro durante os setes anos de cárcere. Mas há muitas outras operações "menores", pois ao longo de 1969 ele participou "de mais de dez assaltos a bancos ou carros de transporte de valores, além da tomada de metralhadoras de policiais ou sentinelas das Forças Armadas, e do roubo a mão armada de dezenas de carros."

Qual o balanço da luta armada? Bueno, Cid Benjamim a reivindica porque compreende a decisão da juventude de tomar as armas na luta contra a ditadura como aquela típica fisgada num membro que já perdeu. Gosto do relato e do balanço final embora é muito provável que Cid não tenha lido Marini, quem fez rigorosa avaliação da luta armada (Subdesenvolvimento e Revolução), melhor do que aquela de Jacob Gorender (Combate nas trevas), talvez o mais conhecido livro sobre o período. Na real, Cid endossa com a densidade da experiência a crítica devastadora de Gorender ao PCB sob controle e influência de Prestes. O relato é tão bem feito que o leitor entra na trama e começa a pensar que, ao final do capítulo, terá que votar na célula em favor de um dos bandos nas intermináveis e inevitáveis divergências sobre o futuro imediato.


No exílio
Chile, México, Cuba e finalmente Suécia. No exílio, recomenda Cid, "a pessoa deve se integrar ao lugar em que está". O filósofo Adolfo Sánchez Vázquez recomendava após alimentar falsas ilusões sobre a eminente volta a Espanha enquanto vivia no México - que somente ocorreria duas décadas depois - que após muitos anos de exílio a vida ensinou que não importa onde estamos mas como estamos; são duas recomendações uteis. No entanto, creio que o curto período vivido na maior ilha do Caribe deixou grandes lições à Cid, maiores talvez do que o longo exílio sueco pois a diferença da realidade é abissal e o interesse dele pela América Latina e nossos dramas e possibilidades estão presentes vivamente em seu relato. "O  capitalismo escandinavo não tem nada a ver com o que conhecemos no Terceiro Mundo", anuncia. Enfim, o exílio europeu não amoleceu o caráter e as convicções do camarada como com frequência ocorreu com tantos outros, seduzidos pelas novidades das sociedades opulentas. Não obstante, a gratidão aos suecos é tão clara quanto aos demais povos que o receberam mas o interesse especial pela Pátria Grande, creio, domina o texto. 

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Bueno, abaixo pistas para despertar a curiosidade e estimular a leitura.

Sobre Lula e Briza
Na campanha de 1989 Cid foi colaborador estreito de Lula e o acompanhou na visita à Brizola para pedir o apoio do gaúcho no segundo turno das eleições presidenciais na qual o líder trabalhista mais lúcido do pré 64 ficou de fora por míseros 300 mil votos. São Paulo matou Briza naquela eleição pois, se a memória não falha, o gaudério não conseguiu 1% dos votos em terra bandeirante. Na disputa contra Collor, segundo Cid, Lula se acovardou. "O medo de ganhar - afirma Cid - tomou conta do candidato". Enfim, Lula amarelou. A sentença sobre quem seria melhor para enfrentar Collor de Melo não deixa dúvidas: "só tempos depois me dei conta de que, para o país, isso teria sido muito melhor. Apesar de seus defeitos, Brizola não se deixaria humilhar por Collor. Saberia se impor, colocar o playboy em seu devido lugar e venceria as eleições."  No entanto, este não seria o único erro grave do PT adianta o autor. O lançamento de Gabeira contra Darcy Ribeiro na disputa pelo governo do Rio em 1986 deu a Moreira Franco a vitória porque não existia ainda os dois turnos. Cid afirma que Gabeira "não podia ser comparado a Darcy - um dos maiores brasileiros de nossa época... A candidatura de Gabeira ajudou a dar a vitória ao direitista Moreira Franco." É bom ouvir Cid indicando para as novas gerações o quanto as novidades libertárias a época exibidas pelo desbunde de Gabeira representavam o falso brilhante.

Há também um elogio tardio e justo ao Briza feito por Milton Temer e apresentado por Cid: o golpe de 1964 poderia ter sido evitado se o fator subjetivo - a ousadia de Brizola demonstrada em 1961 - tivesse sido encampada por Jango em 1964. Jango, sabemos, não resistiu. Baita lição! No Brasil, a tradição nacional rende-se fácil as novidades embaladas pela indústria cultural e a política encomendada dos centros metropolitanos. Vale acompanhar a crônica e também a autocritica honesta de Cid sob as escolhas daquele tempo que, aos olhos da novidade, pareciam acertadas e, desde uma perspectiva histórica, revelaram-se um desastre. É um útil alerta a juventude do PSOL mas temo que tal como nos anos juvenis do PT não serão tomados em conta. A experiência, somente ela, comanda nossos passos e, muitas vezes, nem ela...

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As pendengas políticas entre Lula e Briza relatadas por Cid e a completa ausência de reflexão sobre a questão nacional e o nacionalismo - tão importante no marxismo europeu e latino-americano - produziram entre nós não somente equívocos decisivos mas também impediram a solução de questões centrais do programa e da práxis política nas décadas passadas. Este bloqueio ao debate sobre o nacionalismo, produzido pela presença de acadêmicos e intelectuais paulistas oriundos da USP, com seu cosmopolitismo bocó e alienante, é cúmplice de muitas de nossas misérias. O PSOL é, lamentavelmente, tributário desta herança e precisa entender este problema pois, caso permaneça este buraco, trilhará o caminho da repetição fatal.

As memórias familiares também aparecem e, sem minimizar o exemplo da professora primária Iramaya, creio, reluz a influência paterna do "velho coronel" Ney Benjamim, o "nacionalista socializante" e admirador de Jango e Brizola. "Meus pais eram de centro-esquerda", recorda Cid. Há, segunda creio, num envolucro de saudade inevitável, a certeza de Cid de que seus pais se orgulharam das opções tomadas pelos filhos e não atuaram somente na defesa da prole, especialmente nos dias mais difíceis e incertos no período de auge da repressão e tortura.


A tragédia petista
A origem da tragédia petista que culmina com a melancólica prisão de Lula tem no livro antecedentes importantes contados com riqueza de detalhes e ótima análise política. A primeira denuncia grave contra os donos do PT não foram oferecidas pelas delações de gente como Palocci mas por militantes de comprovado compromisso com a luta em nosso país. O relato das denuncias oferecidas no interior do PT por Paulo de Tarso Venceslau, quadro importante da Dissidência Universitária do PCB em São Paulo quem se deslocou ao Rio para o sequestro do embaixador estadunidense, atestam que nas origens, o PT tinha gente muito boa. Paulo de Tarso também foi preso e barbaramente torturado em 1969 cumprindo pena até 1974. Foi precisamente ele quem denunciou ao partido, longe da imprensa, nos fóruns adequados os graves indícios de corrupção (o caso CPEM). O relato minucioso releva até que ponto a degradação moral da alta cúpula petista chegava, fato que somente mais tarde e apenas marginalmente, seria reconhecido de maneira tímida por alguns de seus dirigentes muito antes que o judiciário sob comando de Sergio Moro inciasse a perseguição a Lula. Todos aqueles que com razão rechaçam a caça de Sérgio Moro a Lula, devem ler e julgar as palavras de antigos militantes na trama que levou ao assassinato de Celso Daniel e a resistência existente no interior do PT contra a corrupção que seria logo abandona para o partido assumir uma razão de estado. É episódio premonitório e muito importante. Segundo Cid, "Lula não aceitou o relatório da comissão Bicudo-Cardozo-Singer. Atropelou o partido e, por exigência sua, o trabalho foi desconsiderado sem ter sido avaliado pelo Diretório Nacional. Uma segunda comissão, com integrantes escolhidos a dedo, foi montada para reexaminar as denúncias. Como esperado, ela concluiu pela falsidade das acusações e recomendou ao diretório a expulsão de Paulo de Tarso do PT, o que aconteceu em fevereiro de 1998." Que tal? Barra pesada este relato.

Estes episódios revelam que nem tudo começou com o juiz Sérgio Moro e seu ativismo político. Há cadáveres no armário que o pragmatismo petista, rasteiro por natureza, a serviço de uma razão de Estado e apresentado como racionalismo possível, cedo ou tarde cobraria seu preço. Um partido que não trata de suas misérias será, inexoravelmente, tragado por elas.

Passado e futuro
O esquecimento é uma tragédia. A luta no PSOL padece desta grave limitação: a memória histórica é rarefeita! É possível - apenas possível - que o partido cresça com a crise e amadureça em poucos meses tudo que não amadureceu em anos de existência. Em 2005, após a decepção completa com o PT, Cid ingressou no PSOL: "... ao contrário de alguns correlegionários, não penso que o PSOL possa ter um crescimento exponencial ou um desempenho decisivo na política brasileira num futuro próximo, As condições não permitem. A conjuntura é muito diferente da que existia quando o PT foi fundado, em 1980. Naquela ocasião, havia um vazio na esquerda, e a sociedade saia da ditadura com enorme ânsia de participação política."

Bueno, quando meu camarada de partido escreveu estas linhas corria o ano de 2013 e o petismo sem brilho na estrela comandava o pragmatismo burguês e alienante que o condenou para sempre. Agora, a ação do tempo criou um cenário totalmente novo. Cid pensava que no dia em que o PT não mais estivesse no governo federal, o lulismo e seus satélites estariam obrigados a um "ajuste de contas interno", fato que não ocorreu e, em minha opinião, jamais ocorrerá. As memórias podem conter autocrítica e análises desinteressadas, mas um partido submetido a razão de estado não permite este luxo. O petismo seguirá incorrigível e submetido aos interesses de uma burguesia decadente e brutal em nome da caridade que pretende destinar a maioria do povo. Atua, portanto, como intermediário entre os interesses da classe dominante que simula enfrentar e o apaziguamento da rebeldia inerentes as classes populares sumidas no abismo social em que nos encontramos. No entanto, nada desabona o livro pois errar nas previsões e/ou avaliações é próprio de quem se implica na luta e não esconde seus desejos. 

A propósito, o livro esta repleto de pequenas confissões e importantes auto-criticas; mas não há autoflagelação, atitude religiosa comum, origem de danos irreparáveis na política. As opções de um tempo em que se decidia na lógica das situações extremas obriga a leitura das memórias militantes. As insuficiências teóricas, a falta de análise rigorosa em determinados períodos, as lições que o caminho tomado oferece e sobretudo como é possível manter-se integro e jogar a vida em suas opções, constituem recados do livro que devem ser tomados em consideração, especialmente agora, diante da ingenuidade política que domina os ambientes de esquerda no país. Portanto, os impasses atuais e nossas limitações políticas e intelectuais obriga certa humildade no juízo das lutas passadas relatadas por nosso camarada pernambucano que se fez carioca.
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Alguém pode ser consequente aos 21 anos? Esta provado que sim. Cid indica que não há razão para a renuncia cínica do passado censurando os chamados "erros de juventude". É preciso certa dose de heroísmo na política, artigo em falta nos tempos atuais quando a tribuna do parlamento parece seduzir a todos como se esse fosse o único jeito de "lutar". A despeito das pequenas conquistas, dos fracassos e das apostas que não resultaram, é preciso entender que a glória chega para poucos e, ainda assim, será passageira. Pensem no Che, em Ho Chi Minh, Emiliano Zapata ou Salvador Allende. O segredo da política jamais poderá ser encontrado na superfície das lutas eleitorais. Nem no conforto eventual de pequenas glorias passadas. O segredo da política esta na solução do conflito que virá e das próximas opções, muitas vezes já sob a mesa ainda que não somos capazes de percebe-lo. Gracias a la vida, o livro das memórias militantes, ajuda e muito nesta lenta e necessária descoberta de nosso passado recente. Leia! Ao contrário dos autores de moda que nos invadem pela força da industria cultural e do colonialismo intelectual, você ainda tem a enorme vantagem de bater na porta do Cid e tomar um café com ele bem ali em Botafogo.

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