domingo, 14 de outubro de 2018

Sobre o ódio e a tolerância na politica

   Não é fácil ranger os dentes no terreno da política, reconheço. Mas não haverá outra saída para nós. Em termos sociais será lenta a reconstrução de um sentido e sentimento classista, a afirmação de uma identidade de classe, aquela mesma que era apresentada como ultrapassada pelo pensamento conservador e reacionário, que iludiu muita gente boa. No entanto a pressão que se exercia socialmente nos sindicatos combativos, na defesa partidária do socialismo, era, mesmo quando pálida, a unica capaz de tornar mais aceitáveis e racionais todas as desavenças pessoais e justificar, em ultima instancia, o ódio individual ao vizinho de porta ou de bairro. E agora?
dezembro de 2014



Advertência
Há alguns anos ouço a denúncia contra a "política de ódio" e os apelos abstratos à tolerância e ao amor como instrumentos necessários da política. Neste processo eleitoral de 2018 o lamento aumentou a ponto de tornar-se não somente inútil eleitoralmente mas inclusive exibição de traço infantil nas disputas sociais. O artigo abaixo escrevi em dezembro de 2014, véspera da eleição de  Dilma Rousseff para seu segundo mandato, quando votei nulo. Para os que possuem memória seletiva ou rarefeita, recordo que naquela disputa o abuso do adjetivo fascista era bem estendido.

Depois, todos sabemos, Dilma foi destituída e juntamente com Lula desceu a rampa do planalto sem oferecer resistência popular ao que os petistas chamam "golpe". A passividade era manifestação eloquente de impotência política alimentada durante mais de uma década de governos petistas, mas era também o ápice da crise do sistema petucano. Agora, após o tsunami eleitoral em favor do proto-fascista Bolsonaro, esta linha de argumentação em defesa de uma "política sem ódio" ressurgiu com mais força revelando a impotência do liberalismo de esquerda, razão pela qual resgatei o artigo para meu blog. Creio que vivemos o eclipse da inocência política. Torço e trabalho para seja rápido.

A publicação original apareceu na Revista Subtrópicos #14, então dirigida pelo meu amigo Fábio Lopes.


A violência na política
A violência é uma característica constitutiva do Estado e, em consequência, também da política moderna. No mundo moderno, simplesmente não existe política sem violência, razão pela qual tampouco existe  política sem ódio. No entanto, na eleição presidencial brasileira, os dois principais partidos denunciavam a política de ódio do adversário, numa tentativa de legitimação, omo se, de fato, pudesse existir uma "política do bem". O comportamento equivale a clamar por justiça social numa reunião de banqueiros. A redução da política ao ritual da disputa eleitoral cada dia mais previsível levou o Tribunal Federal Eleitoral à proibição da crítica ao adversário como forma legítima de toda atividade política. Neste contexto, tanto o bem comportado comentarista da TV quanto setores das classes subalternas, sentindo-se "desprotegidos" ou "vulneráveis" bradam pelo principio da tolerância, que, segundo a ideologia dominante, deveria reger toda atividade entre os civilizados.
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Lulinha paz e amor

Há certo invólucro moral no apelo ao amor e ao respeito como regra da política, mas a vitalidade do artificio deve-se sobretudo a operação ideológica pela qual será possível evitar a violência e o ódio numa sociedade organizada a partir do ódio e da violência. Não se trata de determinação atávica, mas de um instrumento sem a qual a política moderna não funcionaria. Em termos vulgares, há certa reivindicação de trato cordial na arena cuja regra fundamental é o conflito de interesses, particularmente acentuado nas sociedades dependentes e subdesenvolvidas, que contara, na esteira da expansão do capital comercial europeu do século 16, com a necessária violência e racismo em sua formação, marca indelével de nossa evolução histórica e de nosso presente incerto.

Nas condições particulares da sociedade brasileira, é preciso reconhecer que, a partir do evanescimento da identidade classista dos sindicatos combativos e dos partidos de esquerda - PT e CUT na cabeça - as classes subalternas ficaram não somente desarmadas para enfrentar o conflito inerente a sociedade burguesa, mas, sobretudo, permaneceremos ativas do discurso liberal - especialmente forte nos setores da classe média -  para o qual não possuem outro recurso senão o apelo retórico à tolerância e ao "fim do ódio", ignorando o caráter utópico do discurso. Contudo, no lado da classe dominante, são setores da classe media que exibem sem constrangimento, com suas mãos delicadas, o ódio de classe contra os pobres, os proletários, contra os camponeses e contra tudo que lhes parece fora da normalidade burguesa ou da sociedade tradicional. Mais grave: no contexto atual, parece que os proletários e os camponeses já não existem, pois o governo petista - com o silencio cúmplice dos tucanos - insiste no caráter classe me'dia da sociedade brasileira. como se Marx não fosse mais do que um retrato na parede, uma reminiscencia histórica talvez lúcida, valente a apropriada para os séculos 18 ou 19 europeus, mas completamente sem sentido na atualidade.

Trata-se da banalização do política como expressão do conflito, para a qual contribuem não somente a renuncia precoce do PT e da CUT ã identidade classista - levando consigo os comunistas e socialista da base aliada - mas também a redução da política a moral (vulgarmente tratada como se fosse uma simples udenicação dos discurso político) cuja bandeira mais importante seria o combate a corrupção. Nesses termos, a tematização da corrupção chegou para ficar porque diz respeito a real degradação dos partidos e, portanto, do governo. Mas chegou para ficar porque a corrupção  é constitutiva do Estado e, em consequência, é impossível ocultar seu caráter sistêmico. Ora, a astucia do monopólio televisivo é clara, pois apresenta a estrutura como se fosse apenas evento! O ódio a corrupção, no entanto, é quase residual em relação aos empresários, pois se destina prioritariamente ao genérico "político". Trata-se, sem duvida, de ardil liberal para não enfrentar o vaticínio de um barbudo suspenso em alguma parede: o Estado é  mesmo o comitê de negócios da burguesia. O político vulgar, o ex-sindicalista, o empresários exitoso, o liberal bem comportado, o acadêmico no conforto do campus e tantos outros podem merecer o desprezo e ainda o ódio da classe média: esse luxo da política não poderá, de maneira alguma, servir senão como álibi para a próxima operação de assalto ao Estado, no qual o capital também acumula.

Consciência e inimigo de classe 
Não é fácil ranger os dentes no terreno da política, reconheço. Mas não haverá outra saída para nós. Em termos sociais será lenta a reconstrução de um sentido e sentimento classista, a afirmação de uma identidade de classe, aquela mesma que era apresentada como ultrapassada pelo pensamento conservador e reacionário, que iludiu muita gente boa. No entanto a pressão quer se exercia socialmente nos sindicatos combativos, na defesa partidária do socialismo, era, mesmo quando pálida, a unica capaz de retornar mais aceitáveis e racionais todas as desavenças pessoais  e justificar, em ultima instancia, o ódio individual ao vizinho de porta ou de bairro. E agora?

Agora resta o confinamento parlamentar do conflito político e o exercício cínico da cordialidade tipica do cretinismo parlamentar, enquanto nossos condenados da terra sangram em silêncio nas favelas e no itinerário do sistema carcerário, no assassinato do líder camponês e nos milhares de mortes violentas tipificadas de maneira conveniente como "violência urbana", seja no transito, seja no boteco da esquina.

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Perplexidade e inocência na conciliação de classes
Claro que a digestão moral da pobreza é ingrediente necessário da política da tolerância e do amor. Afina, o que pode o minguado bolsa-família num país em que apenas 5% da população concreta quase 50% da renda? A esquerda liberal acredita, de fato, que a cidadania esta em construção quando o índice de Gini se move em décimos? A eliminação de um horizonte utópico - o socialismo - cuja defesa deveria ser feita aqui e agora, alimentou ainda mais o irracionalismo d apolítica  em curso e exibe suas vitimas a luda do dia.

Ódio de classe e fascismo
Em resumo, enquanto o velho ódio de classe desaparece do horizonte dos pobres, dissipando a antiga consciência de direitos, e no momento em que ganha destaque a ideologia da ascensão social nos maricos do capitalismo (seríamos finalmente um após de classe media), é necessário acusar de engodo a possibilidade de fascismo entre nós. Ora, o fascismo é fenômeno histórico que emerge como arma da classe dominante, quando esta já não é mais possível unicamente por meios parlamentares. Não estamos, portanto, as portas do fascismo. No entanto, essa conclusão não autoriza a falsificação histórica, especialidade do jornalismo. Uma ditadura cordial, ou "ditabranda, jamais existiu. A violência e o ódio de classe existentes no Brasil são suficientes para manter as coisas no seu devido lugar, sem necessidade de recurso ao programa fascista, razão pela qual seguirá orientando a ação do Estado e, certamente, contará com a tolerância, a aceitação dos governos e, no limite, a recusa calibradas dos mecanismo institucionalizados da repressão.

Nas condições brasileiras, o mais provável, no curro prazo, é que o rechaço abstrato ao ódio e/ou a evocação abstrata a tolerância naveguem sem obstáculos, ideologia necessária para tudo mude desde que permaneça exatamente igual. Assim, o pressuposto ingenuo de que o Brasil é um país da delicadeza perdida"seguira', também, gozando de popularidade , ainda que não passa de tirada literária falsa. A despeito da delicadeza que ainda podemos encontrar em pessoas, a norma política nos assuntos públicos e mesmo a violência. Enquanto a, maioria aceitar que "um mau acordo é sempre melhor do que o bom combate"- peça do conformismo político sempre apresentada como virtude e sabedoria política -, a política e a democracia serão sempre lembradas como a arte de engolir sapos. De resto, a democracia liberal admite em seu interior a manifestação e o exercício da violência por parte do Estado e das forças sociais comprometidas com a ordem dominante. Não há anomalia alguma, muito menos ovo de serpente, quando um liberal desavisados ou grande parte da esquerda domesticada  acusa que o ódio e a violência estão saindo dos trilhos. O antidoto real para os "excessos" produzidos pelo liberalismo não brotará da consciência social sem dentes para morder implícita na defesa dos pobres, mas de um projeto de classe - o socialismo - e o correspondente movimento de massas em sua defesa.

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O texto original pode ser visto abaixo na versão eletrônica da Subtrópicos
(https://issuu.com/ayrtoncruz/docs/subtropicos_n14)


6 comentários:

  1. Bom texto caro Professor! Sempre nos tirando do senso comum. Muito obrigada.

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  2. Mas nessa eleição tb defende voto nulo, professor? Ou vai num 13 crítico?

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    1. Votarei contra Bolsonaro. Votarei Haddad. Voto crítico não existe. O petismo - parte do petucanismo - acabou. Espero que para sempre!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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