segunda-feira, 18 de novembro de 2024

A luta pela redução da jornada de trabalho

 

“A experiência demonstra que a diminuição das horas de trabalho – evitando a fadiga – não acarreta prejuízo. O interesse dos patrões deveria contribuir para o estabelecimento de novas regras do trabalho”.

Evaristo de Moraes, Apontamento do direito operário, 1905

 

“... a produtividade do trabalho não é, em absoluto, assunto que incumba ao trabalhador”

Marx, O Capital, Tomo I

“...o verdadeiro reino da liberdade que, não obstante, somente pode florescer sobre aquele reino da necessidade como sua base. A redução da jornada de trabalho é a condição básica”

Marx, O Capital, tomo III

 

A característica dominante na luta de classes no Brasil é a ausência do movimento de massas. Com certa frequência, o reconhecimento do fenômeno é utilizado para justificar a orientação assumida pelos governos da esquerda liberal (governo petucano) e, não raro, também uma via rápida para responsabilizar as massas por sua própria miséria e exploração na mesma medida em que exime Lula e seu governo pela paralisia político-ideológica decorrente da antiga adesão ao programa da classe dominante. 

Ademais, as organizações sindicais e partidos políticos carecem de um programa de ação, que somente pode ganhar consistência e força como resultado da experiência de lutas dos próprios trabalhadores capazes de assegurar a independência política diante dos governos e do Estado. De resto, enquanto a fragmentação identitária tem sido um obstáculo importante, até o momento, para a realização da totalização das lutas no interior da esquerda liberal, somente a direita apresenta uma utopia reacionária como promessa de futuro para as maiorias.

É nesse contexto que a emergência de um “movimento” chamado VAT (Vida para além do trabalho) despertou certa atenção, que, de outra maneira e em outras épocas, seria tomado sem dúvida alguma apenas como mais um protesto desesperado de um trabalhador submetido ao tacão de ferro dos capitalistas. Com efeito, somente boa dose de generosidade e outra não menor de indigência poderia considerar o VAT um movimento real da classe trabalhadora. Não há desprezo na afirmação, posto que o VAT, antes de se firmar como movimento real, foi logo canalizado para seu curso natural diante das circunstâncias atuais: a representação parlamentar no âmbito municipal. O precursor do protesto que passou a ser designado com VAT – Rick Azevedo – é agora vereador pelo PSOL no Rio de Janeiro eleito com mais de 29 mil votos.

Em consequência, tampouco surpreende que uma deputada do PSOL – Erika Hilton – no embalo das redes digitais, logo transformasse o protesto solitário e desesperado de um trabalhador confinado numa farmácia em projeto de lei que, há pouco, logrou o número de assinaturas para começar a tramitar na Câmara federal a proposta de redução da jornada de trabalho para 36 horas semanais. O entusiasmo de distintas organizações sociais e sobretudo da concepção parlamentar de política é imenso e, a julgar pelo ambiente digital, o protesto realizado no dia 15 de novembro anunciado como o início da retomada das ações de massas, nas versões mais delirantes, autorizariam supor que, em breve, e com algum esforço militante estaríamos próximos de uma virada na correlação de forças atualmente sob comando da direita liberal. O entusiasmo digital é, de fato, imenso! Entretanto, funcionará nas ruas? O 15 de novembro provou aos iniciados que estamos longe de construir uma plataforma de lutas da classe trabalhadora e menos ainda de superar a concepção liberal de política dominante nos partidos da esquerda liberal. A propósito, no momento em que escrevo essa nota, há um silencio profundo sobre o completo esvaziamento da atividade de 15 de novembro, mas, não tenho dúvidas, logo surgirão avaliações positivas sobre “o primeiro ato” de uma longa caminhada...

Tampouco podem existir dúvidas sobre o apoio dos trabalhadores a qualquer iniciativa destinada à redução da jornada de trabalho. Todos os socialistas, comunistas e revolucionários devem apoiar qualquer projeto parlamentar destinado à redução da jornada de trabalho. Mas é igualmente uma obrigação dos socialistas, comunistas e revolucionários observar e analisar o contexto e as consequências de semelhante iniciativa, sobretudo quando está marcada pela origem parlamentar da proposta e conta com o ingênuo entusiasmo e a alienação inerentes ao “ativismo” midiático das redes digitais. Com efeito, já existem dezenas de propostas que favorecem os trabalhadores nas gavetas do parlamento (de deputados ativos ou não) que, quando consideradas, poderiam produzir o paraíso mesmo nas condições do sistema capitalista e, mais ainda, na periferia latino-americana. 

O governo Lula/Alckmin não possui qualquer iniciativa para mitigar o sofrimento dos trabalhadores. A Reforma Trabalhista anunciada em campanha como objeto de revogação ou revisão goza de boa saúde e nem em sonhos dourados o governo cogita rever qualquer uma de suas cláusulas. Acrescente-se a isso o fato de que, no momento, o governo petucano (Lula/Alckmin) sofre acentuado desgaste que até mesmo as pesquisas de opinião assinalam. Entretanto, não são necessárias as pesquisas para avaliar a grave situação do país e a debilidade do governo atual. A força da crise encontra um governo de tal forma dócil ao capital, que torna inútil a repetição maçante e impotente das políticas sociais  ademais, obrigando o governo da esquerda liberal a arrochar a classe trabalhadora em favor da coesão burguesa que dirige o país desde 1994.

Há dias, a esquerda liberal aguarda com angústia o anúncio de um “pacote econômico” destinado a cortar gastos sociais e precarizar ainda mais as condições de vida dos trabalhadores. Nesse contexto, as redes digitais da esquerda liberal explodiram em apoio ao VAT e rapidamente unificaram a data de 15 de novembro para uma manifestação em favor da aprovação da PEC na vã tentativa de mudar o foco da atenção pública e retomar a iniciativa política.

O melhor dos mundos possíveis

A exemplo de quase tudo que ocorre no país, o VAT não tem nacionalidade brasileira. A própria deputada Erika Hilton escreve na sustentação da proposta: 

“No Brasil, o programa piloto de implementação de jornada de 4 dias começou a ser realizado pela Reconnect Happiness at Work em parceria com a 4 Day Week Global e Boston College, e teve seu início em setembro de 2023. Cerca de 22 empresas com até 250 colaboradores aderiram à iniciativa, em que os resultados do projeto no país, apresentam projeções importantes para a transição das jornadas de trabalho para o modelo de 4 dias, em que é possível observar menor número de faltas dos empregados e produtividade em alta, em razão da adoção de estratégias de organizações funcionais para o modelo da empresa”.

A reconciliação entre trabalho e a felicidade (reconnect happiness at work) não deixa de ser boa nova tanto nos países centrais quando na periferia do capitalismo, uma vez que, aqui, o processo de acumulação de capital se sustenta na superexploração da força de trabalho. No Brasil – como na Alemanha – a adesão a semelhante programa é voluntária sem, portanto, obrigatoriedade na lei! Na maioria dos casos, a redução da jornada de trabalho foi produto de duras negociações entre sindicatos e empresas, ainda que reguladas pela legislação do trabalho e não fruto de ativismo midiático, regado a interesses eleitoreiros.

Entre nós, a luta pela redução da jornada de trabalho sempre esteve presente nos partidos de esquerda e nos sindicatos. Contudo, sua implementação depende, obviamente, dos ciclos de acumulação do capital que, como sabemos, alternam períodos de bonança com outros recessivos. Em tempos de crise, é normal que propostas semelhantes apareçam como a salvação da lavoura e não raro, os trabalhadores lançam mão de semelhantes propostas mesmo quando implicam simultânea redução salarial.

Na Alemanha, em 2017, o poderoso IG Metall, que representa a indústria metalúrgica e de engenharia com 3,9 milhões de associados e alcance em empresas tão importantes como Daimler, Bosch, Porsche, Audi, BMW entre outras, propôs a redução da jornada para 28 horas semanais distribuídas em 4 dias e sem redução salarial.  Válida por 27 meses, a proposta cobre aproximadamente 900 mil trabalhadores. As negociações se arrastaram em meio a muitas greves e paralisações de advertência especialmente importantes nos Estados da Baviera e Baden-Wrttemberg, no sul da Alemanha, responsáveis por prejuízos de até 200 milhões de euros às empresas. Assim, em meio a forte combate, a categoria conseguiu um aumento da massa salarial de 4,3%, ante a reivindicação de 6%, e a redução da jornada de trabalho semanal de 35 para 28 horas. Portanto, o acordo posterior até hoje celebrado como uma conquista foi fruto de lutas no chão da fábrica. A jornada de trabalho na Alemanha está regulada em lei nas 35 horas semanais.

Naquele período (2017), a economia da Alemanha apresentava taxa de crescimento positiva e as exportações exibiam sucessivos superávits. Na prática, há muitos anos, a Alemanha apoiada no poder do euro e sua considerável base industrial,  transformou-se numa máquina de exportação junto com Estados Unidos e China. Portanto, no momento favorável à acumulação de capital – mesmo considerando um período caracterizado como “de crescimento lento” por analistas de distintas orientações teóricas – os sindicatos atuaram na busca de melhores acordos com greves e paralisações que revelaram a força dos trabalhadores na busca também concentrada na reivindicação de reajuste e participação nos lucros. Nós sabemos que naquele país existe um sindicalismo integrado à ordem burguesa, mas capaz de buscar seu quinhão diante da crescente acumulação de capital. Na atualidade, a adesão à redução da jornada alcança principalmente empresas menores – entre 10 e 250 trabalhadores – que, em função da crise, lançam mão da redução da jornada em acordos variados que nem sempre se sustentam ao longo do tempo. Na periferia capitalista, ao contrário dos países centrais, o azul é sempre mais escuro. Em consequência, a resistência capitalista é ainda mais ferrenha, pois o fundamento da acumulação é a superexploração da força de trabalho que sempre foi considerada – e seguirá sendo – uma lei de bronze que ninguém poderá violar.

Na periferia capitalista

No Brasil, a redução da jornada de 48 para 44 horas semanais ocorreu na elaboração da Constituição de 1988, no início do regime liberal burguês que sucedeu a ditadura militar. A despeito de graves limitações políticas, o sindicalismo mantinha certa força nas reinvindicações de extração econômica, sobretudo porque as taxas de inflação eram elevadíssimas (hiperinflação) e não raro alcançavam 3 dígitos! Nesse contexto, as greves se sucediam como decorrência direita da luta entre preços e salários no interior das quais a politização dos trabalhadores ocorria mesmo sob o controle político ideológico dos líderes sindicais com Lula e suas conexões na Europa e Estados Unidos.  

Ao longo do tempo, especialmente após a implementação do Plano Real, as condições de luta em tempos de inflação baixa mudaram radicalmente. As greves inerentes ao período da corrida entre preços e salários dependiam de outros fatores e não foram poucos aqueles sindicatos que começaram a cobrar ganhos de produtividade nas negociações entre patrões e empregados. Mas ainda assim, em pouquíssimos casos, a pauta de reivindicações incluiu a redução da jornada de trabalho. Os sucessivos governos do PT durante longos 14 anos (Lula e Dilma), jamais ousaram sequer discutir um pacto entre capitalistas e trabalhadores inclusive quando as taxas de desemprego eram indiscutivelmente baixas e o ciclo da acumulação favoreceria os sindicatos, se a iniciativa do governo existisse. A razão para a omissão tanto dos sindicatos (especialmente a CUT), quanto dos governos petistas é conhecida: nada contra a burguesia!

No chão da fábrica e na solidão política, os trabalhadores amargam não apenas jornadas de 44 horas semanais, mas, inclusive, em não poucos casos, acima do limite legal. Aqui, na periferia capitalista, o mundo real conspira contra a lei, razão pela qual a violação da legislação trabalhista adquire feições particulares nada desprezíveis.

Em abril de 2010, por exemplo, o DIEESE informava que "ao se analisar os dados da PED (Pesquisa de Emprego e Desemprego - DIEESE/SEADE) observa-se que, em 2009, 36,1% dos assalariados trabalham mais do que a joranda legal de 44 horas. Esta realidade explicita que, no caso do Brasil, a hora extra perdeu a característica de ser uma hora a ser realizada em momentos excepcionais, passando a ter um caráter de hora ordinária". Na prática, a hora extara é uma forma de prolongamento da jornada de trabalho e, portanto, de extração de mais valia absoluta, mesmo quando os capitalistas pagam valores monetários superiores àqueles da hora regular.

Dados recentes do Tribunal Superior do Trabalho (TST) informam que o tema “hora extra” foi o mais recorrente em novas ações na Justiça do Trabalho de janeiro a julho de 2023, somando mais de 288 mil processos em todo o país. Entre as demandas, estão questões como “não pagamento das horas extras realizadas, falta de registro da jornada de trabalho, supressão das horas extras habituais, integração das horas extras em outras verbas salariais e invalidade dos cartões de ponto em razão de horários uniformes”. Ao contrário da luta pela redução da jornada de trabalho, nas condições atuais, parcela importante dos trabalhadores não possuem outro recurso senão a ... ampliação da jornada de trabalho!

Há, além disso um dado relevante que o cretinismo parlamentar em voga ignora e a militância virtual também. O IBGE informa que “em 2023, dos 100,7 milhões de ocupados do país, 8,4% (8,4 milhões de pessoas) eram associados a sindicatos. Esse foi o menor contingente e o menor percentual da série iniciada em 2012, quando havia 14,4 milhões de trabalhadores sindicalizados (16,1%)”. A velocidade da queda não deixa de chamar atenção pois, segundo a mesma fonte, “na comparação com o ano anterior, houve queda de 7,8%, ou de 713 mil pessoas. Em 2022, eram 9,1 milhões de sindicalizados, 9,2% do total de ocupados”. Ora, o fenômeno alcança todos os setores e “em relação a 2012, as maiores quedas na taxa de sindicalização foram nos grupamentos de transporte, armazenagem e correio, com -12,9 p.p. (passando de 20,7% para 7,8%), indústria geral, com -11,0 p.p. (de 21,3% para 10,3%) e administração pública, defesa, seguridade social, educação, saúde humana e serviços sociais, com -10,1 p.p. (de 24,5% para 14,4%)”.

A reforma trabalhista de Michel Temer (Lei 13.647/2017) representou um grave e inédito ataque contra a CLT. A lei foi promulgada em julho de 2017 numa conjuntura marcada pela ofensiva burguesa contra os trabalhadores que jamais foi interrompida pelo governo atual a despeito das promessas de campanha. E, não custa lembrar, os capitalistas contam com a enérgica e sistemática ação do STF, que não cansa de decidir contra os trabalhadores e suas conquistas históricas. Em 11 de setembro passado, por exemplo, o ministro Cristiano Zanin pediu vistas do processo sobre o trabalho intermitente em análise naquela corte, que já conta com 4 votos favoráveis e três contrários. Em caso de aprovação seria outro duro golpe nos direitos elementares dos trabalhadores no contexto da reforma de Temer e uma via rápida para o aprofundamento da superexploração da força de trabalho, fundamento do capitalismo dependente rentístico.

Quando a redução da jornada entrou nas negociações permitida pela Medida Provisória 936/2020, posteriormente sancionada como Lei nº 14.020, de 06 de julho de 2020, previa de maneira clara a redução dos salários no âmbito do "Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda diante dos impactos da Covid-19", que assegurava elevada taxa de lucros aos capitalistas e passava o prejuízo para os trabalhadores. A medida era uma proteção da taxa de lucro e, naquele contexto, os trabalhadores não possuiam forças suficientes para se proteger da ofensiva do capital contra o trabalho. Portanto, é compreensível que uma PEC destinada à redução da jornada de trabalho desperte aprovação de milhões de trabalhadores e, de fato, mais de 2 milhões de brasileiros assinam a iniciativa parlamentar. Tampouco causa surpresa que a PEC tenha granjeado um número aparentemente surpreendente de assinaturas de deputados e senadores com direito a discursos em defesa da medida até mesmo por parlamentares de direita, que, na tribuna do covil de ladrões, defenderam sua imediata aprovação. A propósito, Cleiton de Azevedo, o senador Cleitinho (Republicanos/MG), fez um discurso tão radical em defesa da medida, que, aos desavisados, poderia parecer que se trata de esquerdista radical. Contudo, essa simpatia automática necessita ultrapassar a simples adesão midiática e transformar-se num momento real.

No setor de serviços (supermercados, farmácias, restaurantes, shopping e call centers, etc), existe um imenso proletariado submetido a jornadas de trabalho exaustivas e salários baixíssimos, que conta com o silêncio cúmplice do governo petucano e baixo nível de sindicalização. Até hoje, o governo não mexeu uma molécula para enfrentar a superexploração da força de trabalho e se limita tão somente à repetição enfadonha das antigas políticas sociais, incapazes de sequer mitigar o sofrimento das massas. A propósito, os programas sociais antes de redimir ou mesmo mitigar o sofrimento tornam-se, na prática, um pilar da superexploração da força de trabalho na forma de filantropia.

Dessa forma, no setor de serviços, a rotatividade da força de trabalho é igualmente intensa, superior a qualquer outro país do mundo capitalista. Eis as condições materiais que tornam toda medida destinada a enfrentar a superexploração da força de trabalho popular dócil aos patrões e incapaz de qualquer mobilização em favor dos trabalhadores sobretudo quando os sindicatos do setor de serviços estão dominados pela burocracia e priorização do enfrentamento jurídico em detrimento das ruas.

A descoberta da pólvora

Rick Azevedo – o festejado vereador do PSOL carioca – lançou o VAT num ato de solitário protesto. Não se trata, obviamente, de um movimento, mas de um recurso midiático com adesão exclusivamente eletrônica e que, portanto, não está isento de graves limitações. A mais eloquente evidência da situação se deve ao fato de que o vereador solicitou registro da marca (VAT) no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (!!) como uma forma de manter sob controle seus seguidores e, ao mesmo tempo, autorizar a eventual ampliação sob seu exclusivo comando. 

Em setembro passado – portanto antes do ativismo eletrônico da semana passada – a   Organização Comunista Internacionalista (OCI) publicou em sua página importante denúncia sobre a ofensiva do agora vereador Rick Azevedo, autor do VAT contra aqueles que queriam somar no movimento, dando-lhe não somente transparência, mas também organicidade e potência.

Qual era a suposta heresia proposta pela OCI? 

Em 3 de setembro, a OCI solicitou um encontro nacional destinado a avançar na organização e massificação da luta e a resposta de Azevedo foi a expulsão de todos aqueles que endossaram a petição. Então candidato a vereador, Azevedo não poderia ter reação mais ilustrativa do caráter do VAT e notificou extrajudicialmente a OCI proibindo o uso da marca!

https://marxismo.org.br/sobre-as-acoes-de-rick-azevedo-e-demais-membros-da-coordenacao-do-vat-contra-a-oci/

Ora, a organização propunha um encontro nacional com tirada de delegados pela base em escala nacional destinado a massificação e maior representatividade do moivmento. 

https://marxismo.org.br/por-um-encontro-nacional-do-movimento-vat-com-delegados-eleitos-na-base/

A resposta do vereador foi uma rara combinação entre ação extra judicial contra a OCI acusando-a de “uso indevido do nome, marca e identidade do movimento VAT, bem como na tentativa de apropriação indevida de sua liderança e propósito, sem qualquer autorização ou consentimento”. Na verdade, Rick lançou um movimento que, diante das circunstâncias do mundo real, logo escolheu como objetivo a conquista de um mandato na câmera de vereadores do Rio de Janeiro e, em consequência, não poderia abri-lo para a participação de todos os trabalhadores e muito menos se submeter às instâncias que todo movimento real exige, especialmente quando o objetivo é a redução da jornada de trabalho. Entretanto, ninguém tem dúvidas que somente uma unidade política de todos os trabalhadores poderá arrancar dos capitalistas a redução da jornada de trabalho. Além do mais, como a experiência ensina, o papel do governo nunca será de mero expectador, mas, ao contrário, de ativo participante em favor da classe trabalhadora! Não é de surpreender que Rick Azevedo chegou a publicar nas redes que não admitiria bandeiras contra o atual governo como expressou com clareza em seu twitter. A despeito da inocência, é claro que as forças, partidos e parlamentares que foram às ruas no dia da proclamação da república estão na sua maioria comprometidos com a defesa do governo petucano diante do que chamam “ameaça fascista”. Em consequência, creem atuar como espírito crítico do governo petucano na vã esperança de que Lula abandone as leis inerentes à política econômica do rentismo e mais do que colocar os “pobres no orçamento” rompa com as regras que alimentam o Plano Real desde 1994, entre as quais o teto de gastos.

A esquerda virtual 

Eis o segredo do ativismo midiático dos dias imediatamente anteriores à data nacional da proclamação da república: não foram poucos os ingênuos que consideraram a manifestação do interesse pela redução da jornada de trabalho no trending topics do Twitter e o número de “likes and views” como clara demonstração da virada na conjuntura, o inédito constrangimento da direita parlamentar incapaz de argumentar contra a PEC e inclusive, num arroubo delirante, indicar a eminente “virada do jogo político brasileiro” com a consequente retomada de um novo ciclo de lutas favorável a classe trabalhadora. Tudo a que assistimos no dia 15 de novembro foi uma demonstração contundente contra as pretensões de que o “mundo virtual” dirigia o “mundo real”, mas bastou o amanhecer do feriado republicano para observar o abissal contraste entre a expectativa exuberante das mídias e o esvaziamento das praças nas principais capitais do país. Com efeito, nenhum ato foi massivo! No Rio, talvez 3 mil pessoas na Cinelândia e em SP apenas um quarteirão. No Espírito Santo, gatos pingados não ultrapassaram o número de 300 pessoas. Em Floripa não mais do que 500 pessoas, em Pernambuco manifestação minguada e em Porto Alegre pra lá de modesto! Em muitas cidades o “ato” foi apenas simbólico. Em São Paulo, para dar um exemplo emblemático da natureza artificial da articulação, várias organizações que ajudaram na convocatória da manifestação sequer tiveram direito ao microfone. De fato, onde o VAT comanda, a ampliação não prospera.

No parlamento

No covil de ladrões não há surpresa! No parlamento, tanto parlamentares da esquerda quanto da direita liberal assinaram a PEC conscientes de que a proposta não tem a menor possibilidade de aprovação e caso avance em algum aspecto, será algo bem distante da proposta original. Observando iniciativas anteriores, alguém poderá ter dúvidas sobre os “acidentes” de seu trâmite? Nesse contexto, o PT assinou em massa na semana anterior as manifestações. Mas, na página do partido figurava o destaque de que as nobres deputadas assinaram a PEC sem menção aos homens! No PSOL, Boulos, convertido a linha lulista do “paz e amor”, jamais cogitou discutir o tema na última campanha eleitoral e, de fato, foi um dos últimos a assinar a iniciativa de sua colega de bancada. É um tempo duro para convicções...

O futuro da luta pela jornada de trabalho dependerá da capacidade de enfrentamento dos trabalhadores, todos sabemos. Portanto, não será fruto de eventual repercussão nas redes digitais, mas das contradições de classe próprias de nosso país. A esquerda identitária descobriu algo valioso na cartada recente: a classe, como expressão universal, tem lá sua força mesmo quando reivindicada por aqueles que expressam a soberania do eu de maneira permanente e não possuem qualquer compromisso com a revolução brasileira e o socialismo. O “debate” das redes digitais exibe não somente a pressa inerente ao meio técnico, a vocação parlamentar da esquerda (identitária ou não) mas, sobretudo, o completo desprezo pelas leis objetivas que governam o desenvolvimento capitalista na periferia latino-americana. Essa mesma esquerda liberal, treinada na estranha arte de insistir num caminho exaurido cuja expressão mais importante é o apoio ao governo petucano de Lula/Alckmin na persistente justificativa de que supostamente não temos outro horizonte possível, precisa despertar de sua letargia para tomar o céu de assalto.    

Na prática, o ativismo midiático responsável pela tentativa de massificação da campanha pela superação do 6 x 1 tinha um objetivo inconfessável: salvar o governo petucano de Lula/Alckmin. O delírio segundo o qual os atos de 15 de novembro constituem uma “virada no jogo” político não passa de uma tentativa de oferecer um salvo conduto para um governo que em cada medida acentua a dependência, o subdesenvolvimento e a superexploração da força de trabalho. Contudo, a esquerda liberal não é capaz de romper com as ilusões e passar a fazer radical oposição de esquerda ao governo que administra a economia política do rentismo na mesma medida em que arrocha os trabalhadores. Nesse momento, Lula elabora um “programa de ajuste”, reivindicado pela classe dominante à luz do dia. Programa esse que não poupará os mais miseráveis entre os miseráveis. Em consequência, o desespero e angústia da esquerda liberal em manter a fidelidade ao governo e ao mesmo tempo defender os interesses imediatos dos trabalhadores chega, finalmente, ao seu término: não é possível servir a dois senhores!

Tudo indica que o “pacote” curtido em negociações com banqueiros, latifundiários, grandes comerciantes e industriais decadentes pode, no papel, tocar nos interesses marginais dos capitalistas, mas certamente cortará fundo em algumas leis e programas relativos aos trabalhadores. O “pacote” será enviado ao covil de ladrões e a maioria folgada que a classe dominante possui no parlamento se encarregará de dar a devida “racionalidade” às medidas, eliminando eventuais “exageros” contra a propriedade e os lucros e dividendos dos capitalistas. Assim, o governo petucano simula fazer justiça social e a esquerda liberal seguirá com a ladainha de que Lula não possui maioria para aprovar outro programa. 

A conjuntura exige lucidez antes que simulação. Uma PEC ou o mais intenso ativismo midiático são incapazes de mudar a correlação de forças. O problema não pode ser resolvido por um passe de mágica e menos ainda pelo mais intenso ativismo midiático, mas somente no terreno que as maiorias já identificaram: o governo eleito para “barrar o neoliberalismo”, “derrotar o neofascismo” e inverter a correlação de forças diante da ofensiva burguesa acelera o programa econômico da própria burguesia e segue alimentando a mais profunda corrupção do sistema político. Portanto, não há no governo programa econômico alternativo e menos ainda uma tímida “reforma política” para salvar da podridão a república burguesa! O vale de lágrimas se configura eterno diante dos trabalhadores e o povo acumula sua ira de maneira silenciosa até que por um motivo qualquer, num momento indeterminado, se manifeste com a força dos vulcões, varrendo tudo e todos. Haverá, nesse momento, alguma organização política ou liderança com completa independência diante do governo capaz de ganhar a confiança das maiorias e abrir as portas da revolução brasileira?

Revisão: Junia Zaidan

domingo, 27 de outubro de 2024

Na aba do chapéu

 

Na aba do meu chapéu
você não pode ficar
Porque, meu chapéu tem aba curta.
Você vai cair e vai se machucar
Como vai se machucar
Eu compro cerveja, você pede um copo
e bebe logo
Eu compro cigarro, você pede um
Como você pede um
Mando vir um salgado, o senhor come tudo.
Parece que nunca comeu
Pede tudo que vê, tu es um 171
Um tremendo 171

Samba cantado por Martinho da Vila


Um ciclo da política nacional exibe agonia terminal. Até mesmo para aqueles incapazes de pensar a política para além do estritamente eleitoral, é inocultável o mal-estar, a confusão e, não raro, o desespero. Nesse contexto, o sujeito vai para a urna como se estivesse diante de um ato extremo em que sua decisão de impedir a vitória de seu adversário está, na prática, destituída de sentido construtivo, longe de produzir um novo horizonte, limitada tão somente ao veto de seu adversário real ou fantasmagórico. A alegoria do eleitoral não é capaz, contudo, de ocultar a miséria do estritamente político em que a impotência é a marca mais eloquente, pois, diante do governo atual, nem mesmo o mais otimista pode afirmar que existe algo, de fato, relevante para conservar diante da “ameaça externa”, capaz de fortalecer uma política de “terra arrasada”.

Não podemos afirmar por quanto tempo o espetáculo mórbido da agonia permanecerá entre nós. Entretanto, basta observar o cenário de alianças e apoios nesse processo eleitoral que hoje termina no segundo turno das eleições municipais, para concluir que todos aqueles que buscam uma racionalidade para seu voto ou apoio via redes digitais não conseguem sequer ocultar misérias próprias e muito menos, exorcizar as alheias. Portanto, o exercício repetitivo da simulação seguirá dominante mesmo se quando a ordem que o criou desaparecer por completo.

Não estamos num deserto, longe disso, razão pela qual não desprezo cada movimento em círculo que aceita ou recusa o voto nesse ou naquele candidato, como se a vida estivesse realmente em jogo quando milhões se dirigem à urna e outros tantos permanecem em casa recusando a “festa da democracia”. De resto, o espetáculo midiático, controlado nos mínimos detalhes pela classe dominante – do uso enfadonho da camisa azul num cenário igualmente azul dos debates televisivos – constitui um contraste absoluto com o cinza que predomina na vida cotidiana de milhões de brasileiros subsumidos pela mais absoluta miséria sem esperança alguma na possibilidade de progredir nesse inferno que caracteriza a vida nas grandes cidades de nosso país. O otimismo alienante dos liberais de esquerda é incapaz de angariar apoios para qualquer mobilização imediata e menos ainda de acumular alguma força para os combates futuros. À sombra do liberalismo de esquerda, a direita administra em doses homeopáticas de seu irracionalismo – elucidando o caráter racional do irracionalismo – na medida em que ataca as instituições da república burguesa repudiadas pela ampla maioria do povo. O surrado bordão que no passado logrou simpatias no interior da consciência ingênua segundo a qual a esperança poderia vencer o medo, se enfrenta agora com um adversário mais difícil e de comprovada eficácia: o temor é quase um artigo de uso exclusivo da esquerda liberal pois se encontra sem capacidade de mobilização, destituída de horizonte utópico, na defensiva política e unicamente filiada à defesa inútil das conquistas passadas. Estas que derretem como gelo sob o sol, aniquiladas, portanto, não por um presidente protofascista, mas pela ação decidida do governo petucano cujas promessas da última campanha presidencial ainda subsistem nas anotações daqueles que alimentaram as ilusões diante de "compromissos de campanha" que sabidamente não poderiam ser honrados.    

No cenário eleitoral atual, portanto, tudo esta resumido como se, de fato, estivéssemos diante da clássica opção entre civilização e barbárie. Na tradição intelectual universitária, a síntese aparece sob a forma de escolha entre democracia e autoritarismo como último recurso para justificar o voto ou dar algum sentido, mesmo que difuso, às disputas digitais nas quais o irracionalismo tem um terreno incomparavelmente mais fecundo que os democratas de qualquer origem. É batalha perdida, sem dúvida!

A despeito do resultado medido por vitórias ou derrotas eleitorais em prefeituras, a verdade é que o saldo será positivo para a direita em larga medida. O abandono da disputa ideológica por parte da esquerda liberal em sua “ação eleitoral”, exibe agora o quanto pode ser nociva a recusa do radicalismo político cujo horizonte não é outro senão a defesa aqui e agora do socialismo. E isso na mesma medida em que o pragmatismo não tem a menor aderência de outros tempos quando Lula venceu a primeira eleição presidencial. Ora, cada ato “realista” praticado pela esquerda liberal orientada pelos “princípios” da administração democrática da ordem burguesa desde então, não fez menos que fortalecer o discurso da direita que opera com o horizonte de uma utopia reacionária na qual cada insuficiência de um país subdesenvolvido e dependente é acusada como suposta prova de que ainda não vivemos efetivamente num sistema capitalista pleno onde cada iniciativa e esforço individual seriam inexoravelmente recompensados com a glória no mundo dos monopólios.

No lado “oposto”, as promessas e “debates” entre a esquerda liberal diante da ofensiva da direita revelaram o quanto o sistema está azeitado para receber e turbinar o movimento em círculo nos estreitos limites do sistema político agonizante. É verdadeiramente impressionante que nesse redemoinho funcional aos interesses da direita, Marçal e Boulos – o primeiro como protagonista e o segundo como coadjuvante – praticaram um “diálogo respeitoso” que, ao contrário dos manuais de inspiração frankfurtiana, caiu como luva para os interesses da ultra direita com a ultrajante chancela do mais rasteiro oportunismo eleitoral da “esquerda democrática”. Até ontem, lembre que o bordão era “com fascista não tem papo” ou enunciava-se que o fascista era “inabordável”... Nesse contexto, obviamente fracassou a “ação midiática” do liberalismo de esquerda ao tentar um “corte” para alimentar o insaciável público da mass mídia, indicando que, como o aprendiz de feiticeiro, Boulos venceria o debate ou massacraria o fascista quando a verdade é exatamente oposta! Aqui, precisamente, a fronteira entre o oportunismo eleitoreiro e a irresponsabilidade social se encontram ao amparo do êxito individual.

Com efeito, se a direita não perdeu tempo e afirmou sua ideologia na disputa eleitoral, no lado da esquerda liberal restou o patético papel de afirmar sua filiação à Lula e a defesa aberta ou velada do governo petucano completamente funcional aos interesses da coesão burguesa que governa o país desde sempre, ainda que com interesses redefinidos radicalmente a partir do Plano real de 1994. Esse beco sem saída fazia supor que o inexorável eclipse de Lula na política constituiria o caminho seguro para a renovação vitalizada da esquerda liberal, mas, ao contrário do otimismo ingênuo, a cena não poderia ser mais clara: todas as versões emanadas do útero petista, incluindo Lula, não passam de modalidades deterioradas e empobrecidas de uma forma eficaz em outros tempos e completamente datadas diante das transformações do capitalismo no país. A propósito, é preciso dizer de forma clara que a fase rentística da dependência não admite ilusões. O manejo da política econômica pelo uspiano Fernando Haddad ou mesmo a paralisia da ministra Marina Silva enquanto o país ardia em incêndios, são demonstrações incontestes disso. Nesse contexto, a orfandade de todos aqueles que votaram por Lula nas últimas eleições presidenciais alegando motivações supostamente nobres, pode ser vista à luz do dia mesmo sob o disfarce da indignação e dos apelos tão sistemáticos quanto inúteis exigindo coerência de um presidente que não possui o menor compromisso com a redenção do país e do povo diante da miséria e da exploração a que estamos historicamente submetidos.

Não é exagero afirmar que o ciclo chega a seu término mesmo que novos espasmos possam ainda prolongar a agonia da esquerda liberal simulando alguma função defensiva. Na aba do chapéu de Lula e do PT nada brotará para enfrentar os dilemas da dominação burguesa na fase atual do desenvolvimento capitalista em sua fase rentística. Afinal, os tempos da administração democrática e “inclusiva” da ordem burguesa atingiram seus limites objetivos. Não há novidade nesse cenário ainda que muitos insistam que é preciso retomar as antigas promessas e imprimir conteúdo de verdade como forma de superação da desilusão e decepção. Ora, a antiga promessa em si não era capaz de oferecer qualquer horizonte para os trabalhadores exceto a surrada digestão moral da pobreza dos programas sociais completamente incapazes de redimir as maiorias da miséria e exploração e menos ainda de criar um movimento de massas destinado à atualização do radicalismo político indispensável num país dependente e subdesenvolvido como o Brasil. 


Revisão: Junia Zaidan

domingo, 6 de outubro de 2024

a função ideológica do "debate"

A potência técnica das redes digitais produziram um fenômeno relativamente novo, nocivo e profundamente deletério: a recusa da crítica. Na prática, a proliferação de "debates" eletrônicos - cuja maior expressão é um quadro da CNN denominado cinicamente "Grande debate" - no qual dois liberais cuidadosamente escolhidos tematizam quinquilharias ideológicas destinadas à alienação do grande público sob o manto protetor do jornalismo-propaganda.

A primeira vez que vi o "debate" - depois a detestável cena se repetiu ad nauseam - um liberal de direita chamado Caio Coppolla "debatia" com um liberal de esquerda, José Eduardo Cardozo, ex-ministro petista - reproduzindo ignorância e alienação durante 20 ou 30 minutos. Uma barbaridade alimentada por dupla via! Entretanto, trata-se de operação ideológica eficaz, uma peça de controle da opinião pública, de manufaturação do consenso em favor da burguesia. Na prática, o recurso jornalístico simula pluralismo mas pretende tão somente educar milhões de pessoas nos limites do permitido pelas ideias dominantes que, tal como ensinou Marx, são as ideias da classe dominante.

O recurso midiático dos monopólios praticado no atacado é repetido no varejo pelas mídias digitais de canais alternativos, reproduzindo a mesmíssima lógica com idênticos resultados. De resto, para os que acreditam nesse tipo de programa, bastaria revisar o atual processo eleitoral concluído há poucos dias com o estelar "debate da Globo". Quem venceu? Ora, a classe dominante e seu absoluto controle sobre o sistema político da república burguesa em frangalhos, porém sempre útil para a manutenção de seus interesses! Quem venceu? A pergunta do espectador angustiado se repete: Nunes, Marçal, Boulos, ou Tabata? Quem, afinal, venceu? Nenhum deles!! Não se trata apenas do formato ou regras de cada "episódio", mas da função de qualquer modalidade de "debate" nos marcos da podridão do sistema político e da ofensiva da direita nas disputas eleitorais e ideológicas! Na prática todos os "debates" reforçam a ideologia da classe dominante a despeito das intenções dos supostos protagonistas.

Ora, qualificar esse tipo de polemica como se fosse disputa ideológica é uma ofensa à memória e à inteligência. O recurso a "militância eletrônica" nas atuais circunstâncias atesta precisamente a ausência do protagonismo das massas, a decadência dos partidos políticos da esquerda liberal, a corrupção da prática parlamentar, a debilidade dos chamados movimentos populares, a renuncia e irresponsabilidade dos acadêmicos que constituem características essenciais da hegemonia burguesa que, nem mesmo em sonhos, podem ser superadas pelo ativismo midiático. Num passado não muito distante, os revolucionários aprenderam com muito estudo e intensa práxis, a importância da contradição, razão pela qual não me importa quando acusam meu diagnóstico de fomentar a apatia e desolação, como se fosse um convite à paralisia política numa terra arrasada, diante da qual não haveria qualquer alternativa. Jamais! As contradições - entre as quais a miséria do "debate" público midiático - deve ser encarada com seriedade e não uma via de reprodução da hegemonia burguesa.

A propósito, no auge da ofensiva sionista contra o povo palestino, diante de assassinatos em massa de crianças, mulheres e inocentes de todo tipo produzidos pela máquina de guerra de Israel, assisti um debate num canal qualquer em que um defensor da causa palestina e outro do sionismo discutiram durante uma hora quem tinha razão. Era, sem dúvida alguma, um debate estéril nos quais ambos saíram da disputa exatamente como entraram e certamente, entre os ouvintes, a situação se repetiu, pois tal evento é incapaz de mudar a posição de alguém ou ainda de aprofundar no conhecimento histórico sobre a questão nacional palestina e as razões pelas quais o imperialismo estadunidense apoia sistematicamente o estado terrorista sionista sabotando qualquer iniciativa de paz. Os debates midiáticos não foram capazes de produzir eventos de rua com forte participação popular ou mesmo nas filas da esquerda liberal; ao contrário, exibiam a apatia dominante nesse e em qualquer outro tema estratégico.
Nas universidades, supostamente a casa de ciência, da cultura e da crítica, o ambiente não é melhor. O "debate" - quando existente - esta determinado pela diminuta capacidade de convocatória das mídias eletrônicas e nem de longe exibe a vitalidade de outros tempos (15 anos atrás, mais ou menos). Os centros acadêmicos, sindicatos de técnicos e professores, prisioneiros de agenda que não tocam nos interesses das maiorias, são notoriamente incapazes de encher um auditório. Essa constatação não pretende ocultar misérias e oportunismos do passado e, portanto, descarto qualquer idealização do ambiente universitário em outras épocas pois a natureza da instituição num país subdesenvolvido e dependente não permite arroubos semelhantes. Mas o domínio do acadêmico sobre o intelectual é devastador, uma miséria, cuja expressão mais evidente - desde logo, não única - é o identitarismo decadente que sofremos como forma de interdição da crítica.

Na contramão do ambiente dominante, o IELA convidou o antropólogo Antonio Risério para atividade pública e um seminário interno destinado a análise de seu livro Em busca da nação (Topbooks). O baiano é raro crítico da cultura nacional além de estudioso das coisas do Brasil, portanto, intelectual atento às novidades impostas pela classe dominante para consumo das massas, além, é claro, de ser também zeloso revisionista de nossa História. Em consequência, diante do autor e da câmara, os membros do Instituto fizeram a crítica após a leitura do livro e ouvimos as respostas que você agora pode conferir no nosso canal e na TV UFSC. A experiência revelou o quanto é fecundo um debate diante do livro e do autor sem pretensão de procurar um vencedor, aquele que nos marcos das disputas eleitorais e dos chamados canais "alternativos" está em busca tanto de votos quanto "likes and views" para proveito particular. A propósito, a habilidade de Marçal na empreitada paulista foi elucidativa pois aproveitava o tempo de TV para reforçar suas redes de produção ideológica; os outros candidatos assumiram o mesmo comportamento com eficácia muito menor! Em qualquer caso, vence a classe dominante pois ninguém é capaz de superar a lógica imanente dessa estranha modalidade de "debate" em que o essencial não pode ser discutido.

Abaixo indico as três atividades que realizamos com Risério e faremos com outros tantos destinados a divulgar o debate que travamos com Antonio Risério sobre seu livro que, a despeito de diferenças aqui e acolá, eu recomendo à todos.

Seminário interno do IELA
https://www.youtube.com/watch?v=CNwoMkRiz04

Conferência aberta ao público
https://www.youtube.com/watch?v=dWoV-D5NRIs&t=6256s

Programa Pensamento Crítico
https://www.youtube.com/watch?v=r8Z7zHT_2j0&t=748s

Saludos!

domingo, 25 de agosto de 2024

A solidão identitária


Leo Huberman era leitura obrigatória para minha geração e hoje não passa de autor desconhecido para a juventude com algum grama de rebeldia e compromisso político com o socialismo. Naquele tempo, quem não lia História da riqueza do homem ou História da riqueza dos Estados Unidos não participava da discussão nem tampouco tinha direito a opinar sobre o imperialismo ianque. Entretanto, há pouco (2017) descobri mais um valioso livro do autor que nos ajudou a analisar os Estados Unidos: Nós, o povo. A epopeia norte-americana. Uma potência imperialista nunca possui - por definição - um desenvolvimento endógeno e, em consequência, necessita sugar do mundo tudo que o processo de acumulação exige. Nesse livro, Leo exibe a verdade elementar de todo império de maneira clara e fica fácil perceber que os Estados Unidos necessitam da imigração permanente para fazer funcionar a máquina imperialista de produção de riqueza.

A propósito da convenção do Partido Democrata dos Estados Unidos concluída na quinta-feira, 22 de agosto, eu recordei o livro de Huberman, no momento em que os democratas consagraram Kamala Harris como candidata presidencial. Na prática, foi uma repetição da convenção que escolheu Barak Obama porque também há 16 anos, a orientação da convenção e do partido foi a reivindicação do "povo" (american people). Nada de identitarismo! Os discursos de Michele, Obama e Kamala foram a negação completa do beco identitário que alimentou Bernie Sanders quando o senador pelo pequeno estado de Vermont enfrentou Hillary Clinton e amargou uma derrota da qual jamais se recuperou. Um veranico, nada mais. Entretanto, se não funcionou nas primárias democratas, a reivindicação identitária representa um produto ideológico de exportação capaz de render aliados para a potência capitalista e, de fato, foi terrivelmente fecundo para a América Latina, um continente estratégico para a dominação imperialista.

Em seu discurso final, Kamala anunciou de forma inequívoca "o privilégio e orgulho de ser americana". Noutro trecho, recordando sua atividade como juíza, repetiu que em toda sua carreira "eu só tive um cliente, o povo"; depois, marcou novamente que "os americanos, sem distinção de gênero, raça e língua" são uma potência, para, em consequência, declarar a origem de pai e mãe nascidos em outros continentes como motivo para afirmar sua opção de alma; Kamala, de pai jamaicano e mãe indiana e Barak Obama, de pai queniano e mãe americana, representam em larga medida as origens do povo estadunidense: a força da imigração que segue sendo uma potência para a riqueza do império e turbina seu expansionismo no mundo. Ambos, cuja nomeação pelo Partido Democrata dista 16 anos, repetem a afirmação de algo essencial na sociedade gringa: a importância estratégica da imigração e o valor supremo do nacionalismo. Ninguém - rigorosamente ninguém - chegará à Casa Branca, se não for nacionalista de profunda convicção, embora americano de primeira geração. Entretanto, o nacionalismo gringo é invisível aos olhos latino-americanos porque a indústria cultural e a ideologia “from the United States” rechaça o nacionalismo de todos os demais povos como doença muito semelhante à lepra. 

A convenção democrata relegou a reinvindicação identitária para a esquina. Na prática, good bye indentitarismo!! A notícia ainda não chegou aqui entre outras razões porque o sistema de corrupção e cooptação via fundos medidos em milhares de dólares da Open Society, Fundação Ford, Fundação Rockefeller, Embaixada, sindicatos filiados a FLCIO e do próprio Partido Democrata - além é claro, do Departamento de Estado e das empresas multinacionais - segue jorrando. Não são cifras bilionárias mas para as condições de um país apoiado na superexploração da força de trabalho, bastam algumas centenas de dólares ou alguns poucos milhões para reunir um batalhão importante nas universidades, nos partidos, nos sindicatos e nos chamados "movimento sociais".   

A receita de Kamala, portanto, é a repetição da fórmula vitoriosa de Barak Obama. O primeiro negro na presidência dos EUA jamais flertou com o identitarismo desde seu primeiro mandato como senador; ao contrário, para chegar ao senado, derrotou sem piedade um antigo líder negro identitário. Na disputa presidencial, afirmava sem vacilação ou concessão o valor supremo de ser americano. Venceu duas presidenciais e ensinou a lição com tanta eficácia que obrigou os democratas a reescrever o programa do partido. Há coisas que não se dizem, se fazem, ensina uma antiga lição revisionista.  

Nos Estados Unidos, a força da ideologia nas condições de um país imperialista, consiste em afirmar o desafio de todo imigrante: tornar-se americano! No discurso democrata, é preciso agregar o horizonte da classe média, pois sem ela não se alcança a promessa do nível de consumo típico da sociedade opulenta. Aos deserdados, especialmente a pequena população negra (12,4% no Censo de 2021), restou a marginalidade e a invenção do identitarismo como forma específica de integração à ordem burguesa. Na medida em que a potência industrial estadunidense foi diminuindo por várias razões que aqui não posso enumerar, o Partido Democrata valorizou a agenda identitária, mas amargou derrotas eleitorais sucessivas para os republicanos, embora pudesse garantir alguns deputados e senadores para fazer maioria no Congresso. 

Em resumo, o identitarismo é mais do que nunca apenas um produto ideológico de exportação da potência imperialista que, entre nós, garante fidelidades políticas e nos divide profundamente. Não mais o povo brasileiro (Darcy Ribeiro) mas o "povo negro" (Abdias do Nascimento). Não mais a saga brasileira de João Ubaldo Ribeiro, mas a "diáspora africana" de Djamila. Não mais o povo novo, mas a valorização fictícia dos "ancestrais". No conjunto da obra, a reivindicação identitária não passa, nas condições nacionais, de um meio de mobilidade social num país marcado pela superexploração da força de trabalho. Entretanto, como em toda mobilidade social, a fórmula funciona para poucos e, num país dependente e subdesenvolvido, para pouquíssimos. Com uma boa dose de cinismo e outra de malabarismo acadêmico (anti-intelectual), pode simular alguma virtude política por um tempo, mas tem fôlego curto.   

No Brasil, a boa nova democrata foi transmitida ao vivo pela CNN em inglês (em trechos pela filial em português), mas ainda não alcançou a militância virtual dominante na esquerda liberal, especialmente aquela apegada à concepção parlamentar de política. Por aqui, a reivindicação identitária ainda fomenta fidelidade eleitoral porque o mercado de trabalho é uma vala interminável do sofrimento de milhões de brasileiros. Não obstante, está com os dias contados. Ademais, a força da direita ultra liberal conta com o identitarismo para seguir na toada da moral conservadora que simplesmente não pode ser vencida pelos apelos "tolerantes" da moral "progressista". Nada há de conservador no DNA brasileiro! Basta alguns átomos de lucidez para "valorizar a família, a moral, deus e os bons costumes" nessa selva terrível reservada aos trabalhadores. As instituições de uma miragem do estado de bem estar social se degradam sob o comando da esquerda liberal - Lula e seu governo petucano - razão suficiente para explicar o recurso de muitos trabalhadores aos deuses e à família. Elementar! 

As razões da crise identitária são inequívocas, embora ainda dissimuladas. Ao contrário de alguns anos atrás, já é possível ver as fissuras no interior desse mangue identitário e de maneira mais clara muita gente balbuciando nas redes digitais reparos aqui e ali ao identitarismo. No Rio, uma candidata a vereadora do PSOL afirma que "não basta ser mulher" é preciso ser "combativa". Logo ouviremos "não basta ser negro" e "não basta ser gay"... É um reconhecimento ainda molecular do fracasso de uma política que alimentou o liberalismo de esquerda como se a agenda identitária fosse uma espécie de antessala da consciência crítica e não a cristalização da consciência ingênua em favor da classe dominante. 

Em consequência, a agenda das "opressões" já não possui o antigo poder de sedução não somente por força da oposição da ultradireita, mas sobretudo pelo raquitismo do governo petucano e sua completa adesão ao programa ultraliberal mais do que visível no terceiro mandato de Lula. É óbvio que o distanciamento ainda tímido em relação ao identitarismo por parte de autodeclarados socialistas e comunistas ao simular o "desencanto" e, em outros casos, até mesmo enorme "surpresa" com a orientação "neoliberal" do governo Lula/Alckmin apenas começaram. De resto, os desavisados e oportunistas que apostaram suas fichas na defesa de Lula "contra o fascismo" (no primeiro ou no segundo turno da última disputa presidencial), agora reconhecem não somente o caráter filantrópico e impotente das políticas públicas mas o fomento do capitalismo dependente rentístico nas questões estratégicas de Estado por um governo supostamente eleito para fazer exatamente o contrário!

Ocorre que a crise terminal do identitarismo entre nós é medida - como quase tudo aqui - como expressão do resultado das urnas. O voto é o critério miseravelmente definitivo. Não importa que algumas "conquistas eleitorais" ocorram mesmo se a correlação de forças se apresente cada dia mais favorável à direita e o horizonte se revele terrível; mas se alguns mandatos garantem o espaço cinicamente chamado de "resistência", o identitarismo se justifica e ainda navega na tormenta como se não tivéssemos outra opção. A consciência e organização dos trabalhadores diminui - não importa - se um lugar no parlamento estiver assegurado. Ademais, a caça de "likes" e "views" com o consequente fomento das "tretas" eletrônicas ainda justificam o "debate" sobre as questões identitárias, mas não passam de reforço consciente ou não da ideologia burguesa importada dos EUA. 

Como anunciei há meses, a vitória eleitoral e ideológica da direita nas eleições municipais esta assegurada. Em quantidade de votos, tudo indica que sairá muito fortalecida e, talvez, com alguma folga; mas a vitória ideológica está igualmente garantida não somente porque não existe candidatura de esquerda com firmeza política e ideológica em nenhuma capital importante do país, mas porque o deboche e escracho contra o processo eleitoral, é eficaz para desacreditar as eleições ao mesmo tempo em que seus protagonistas lutam pelo voto!! O exemplo mais claro é um tal Pablo Marçal em São Paulo, a despeito de seu êxito ou fracasso eleitoral no próxima dia 6 de outubro. Portanto, a atuação de Marçal assinalada como "bizarra" ou mesmo "criminosa" pela esquerda liberal, não passa de uma declaração de impotência diante da ofensiva burguesa em curso desde 2018. Nesse contexto, a reivindicação de um "debate sério" sobre políticas públicas no processo eleitoral destinadas à melhoria do transporte, da saúde, da educação, da cultura, etc., é declaração de impotência e falta de leitura crítica do processo político em seu conjunto. Ora, quem pode realizar tantas promessas de melhoria senão apenas e exclusivamente aqueles municípios financiadas pelos royalties do petróleo? Ademais, no contexto do capitalismo dependente rentístico, quais as alternativas reais de uma gestão democrática da ordem burguesa em escala municipal? De resto, grande parte do "debate público" ocorre nas redes digitais, um suculento negócio que alterou radicalmente as normas legais de uma eleição considerada até ontem como expressão da democracia liberal.

Voltemos à convenção do Partido Democrata. 

Nos EUA, a convenção democrata recordou Huberman: o povo estadunidense se faz com "gente de fora". Não apenas os pais do Obama e Kamala, mas milhões de trabalhadores que fugindo do subdesenvolvimento e das guerras promovidas pelo imperialismo criam, com seu trabalho, submetido à alta taxa de exploração, a riqueza capitalista em favor dos monopólios. A contrapartida é a promessa de um green card e o reconhecimento de cidadania para todos aqueles que sabem por sofrimento que ninguém nasce americano, mas se torna americano. Logo, o sistema ideológico e a força das instituições (polícia, universidades, sistema de saúde etc.) os tornará cativos do nacionalismo estadunidense a ponto de recusar sua própria origem. Portanto, nada de apreço pela "diáspora" pois o elogio desmedido às origens é um bloqueio objetivo ao combustível da potência imperialista: o nacionalismo! Lá, como aqui, o lamento extemporâneo à diáspora e aos ancestrais, é artigo pra acadêmicos...

Obama declarou na convenção que os EUA não deveriam ser a polícia do mundo, mas Kamala não pode cultivar as bondades reservadas aos ex-presidentes e, de maneira lógica, anunciou que seu país possui a força armada "mais forte e letal" destinadas a enfrentar as ameaças desse mundo incerto. Em política externa, o acordo entre republicanos e democratas é mais do que visível pois ninguém brinca de ser imperialista no sistema capitalista. 

O Partido Democrata está mudando de pele para ficar com a mesma função no sistema político estadunidense. O discurso de Kamala afirmou que o interesse americano está "acima dos partidos" não somente para captar os republicanos descontentes com o domínio de Trump no tradicional adversário dos democratas, mas sobretudo para angariar a simpatia de milhões que desacreditam abertamente na "democracia americana". Ao espetar Trump, acusando-o de estar mais preocupado com sua riqueza e seus amigos do que com o povo americano, Kamala seguiu a orientação de Obama para quem o republicano "está focado no seu próprio interesse". O recado serve para Trump, mas também para os antigos interesses especiais (trabalhadores, latinos e negros), que, excluídos na administração Clinton, ganharam posteriormente espaço renovado via identitarismo. Porém, agora, precisam ser devidamente arquivados. Portanto, os temas dominantes na convenção do Partido e no discurso de Kamala foram a saúde pública, a escola, os baixos salários, o respeito aos direitos humanos - incluindo, os imigrantes que devem receber um tratamento "humano". O escritor mexicano Carlos Montemayor - autor de Guerra en el paraíso -, elucidou de maneira lapidar o segredo da xenofobia de Trump quando escreveu há muitos anos: nos Estados Unidos, a economia capitalista "necessita nosso trabalho, mas não nos querem!" Eis o núcleo racional da xenofobia que não se pode encontrar em questões culturais ou num racismo abstrato mas na economia política!

A troca de Biden por Kamala não assegura a vitória dos democratas, a despeito do entusiasmo da convenção embalada nas pesquisas de opinião iniciais e dos recordes de arrecadação de fundos milionários dos Super PACs. Entretanto, a redefinição programática do Partido Democrata já ocorreu na prática. O identitarismo se manterá um mero produto de exportação da indústria cultural estadunidense, com capacidade de cooptação por algum tempo de certos setores marginais no Brasil (e América Latina) em favor do imperialismo, mas seu poder de iludir já é uma peça de museu. A notícia chegará aqui com algum atraso não por força da enorme ignorância sobre as acirradas disputas eleitorais no interior da potência imperialista, mas em função dos limites ideológicos e políticos da esquerda liberal que aqui habita. Até lá, os reparos ao identitarismo e à sua cumplicidade objetiva com a opressão e exploração de milhões de trabalhadores na periferia capitalista se manifestará a conta-gotas. Mas sua queda no Brasil, sob outras circunstâncias e diante de outras exigências, é também inevitável. 

Revisão: Junia Zaidan

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Delfim Netto e o orgulho burguês dos desenvolvimentistas

A morte de Delfim Netto dividiu novamente o país: de um lado, os democratas e de outro, os autoritários. Não há surpresa na divisão como discutimos no meu O colapso do figurino francês (Editora Insular) ao explicar as oposições binárias constitutivas da sociologia uspiana que, finalmente, comandam as cabeças "pensantes" dos partidos políticos da esquerda liberal brasileira (tucanos, petistas, psolistas, pecedobistas, etc.). Lula fez oposição sindical a Delfim, mas bastou pisar na arena propriamente política do parlamentarismo burguês para render-se a uma reconciliação rápida, sincera e duradoura com o ex-ministro da ditadura. A nota presidencial publicada hoje expressa o sentimento sincero de Lula sem contradição com declarações do passado.

O protesto dos democratas oculta algo essencial: os mesmos que condenam o passado "autoritário" de Delfim - que assinou com convicção o AI-5 - são exatamente aqueles que com absoluta frequência manifestam esperanças e apostam firme na capacidade do capitalismo dependente rentístico promover a cidadania plena à massa de trabalhadores atualmente condenados à superexploração da força de trabalho. A propósito, na transição da ditadura de classe implantada em 1964 para o regime liberal burguês iniciado em 1985, a hegemonia burguesa apareceu sob a forma de "dívida social". Os liberais democratas orientaram Sarney na linha filantrópica do "tudo pelo social" com o aceite de muito bom grado dos conservadores, uma vez que as energias populares contra a ditadura eram fortes e poderiam cair na mão de um aventureiro qualquer. O bordão lulista de "colocar os pobres no orçamento" é filho da mesma filantropia destinada a assegurar tanto a apatia dos miseráveis quanto a superexploração que alimenta os super lucros da burguesia e sua associação carnal com as multinacionais e banqueiros de toda espécie e origem.    

Os economistas de oposição - assim eram chamados os economistas de "esquerda" - disputavam com Delfim a condução da política econômica sem jamais romper com a economia política que já orientava o desenvolvimento capitalista no país. Os decibéis aumentavam um pouco na imprensa liberal burguesa - Folha de São Paulo à cabeça - quando o tema era inflação, dívida externa e taxas de juros mas silenciava nas questões de fundo. No máximo, um "debate" superficial sobre "modelo de desenvolvimento" na linha celso-furtadiana. Nada além! Na verdade, até mesmo Gustavo Franco repetiria mais tarde e sob outras circunstâncias, uma inocultável e atávica convicção: "somos todos desenvolvimentistas". Afinal, não são os antigos adversários de Delfim que reclamam sob a luz do sol que o "dinamismo do desenvolvimento brasileiro" cedeu a partir de 1980? Não foi o general Geisel o promotor do II PND que tanta saudade deixou entre os desenvolvimentistas quando as promessas de um sonho de uma noite de verão desapareceu para sempre?  Acaso, não estava Delfim no comando do "milagre brasileiro" com as taxas do PIB capazes de fazer inveja aos chineses?

Delfim, na prática, mantinha a hegemonia e permitia alegremente a existência de uma "esquerda" ao seu lado, especialmente no período da Constituinte. O "gordo" - como era tratado por desafetos e admiradores em ambientes exclusivos - não perdeu a lucidez diante do encanto democrático: "com essa constituinte o país é ingovernável" afirmou ao término do período constituinte. De fato, após sua aprovação, a burguesia lançou seu ímpeto reformista contra os arroubos dos constituintes de 1987 que todavia não termina nem terminará jamais! A esquerda liberal começava seu périplo impotente contra a "era neoliberal". Entretanto, o deputado com amplas conexões nos Estados Unidos e o empresariado paulista, jamais perdeu a lucidez burguesa necessária para manter o controle ideológico e político tanto das decisões de Estado quanto do debate público. Venceu todas! Não raro, era contemplado com elogios desmedidos sobre sua cultura e erudição sem, contudo, exibi-las a luz do dia num confronto com críticos de estatura. Ao contrário, os elogios eram produto de um reinado solitário em programas de TV e entrevistas sem contestação, afiançado no seguro da imensa ignorância e oportunismo dos jornalistas que exibiam naquela época a mesma sabedoria responsável pelas enfadonhas entrevistas atuais na abordagem da economia.   

A propósito, na atualidade, o "debate" sobre economia é inexistente nos partidos e sindicatos. A imprensa burguesa cumpre a função da manufaturação da opinião pública em favor do capitalismo dependente rentístico e conta com o bom comportamento de eventuais "críticos" orientados pelo bom mocismo em busca de um lugar ao sol no debate público. A covardia intelectual é imensa! Na prática, a reflexão sobre economia está confinada à universidade, totalmente incapaz de uma contribuição efetiva para o público ilustrado ou semi-letrado. A agenda do último encontro dos estudantes de economia - ENECO - expressa de maneira melancólica o ambiente intelectual e ideológico decadente destinado aos estudantes, diga-se de passagem que os encontros de área dos profissionais da área não são melhores, ao contrário.    

Delfim venceu, devemos reconhecer. Não à toa recebe as honras presidenciais, as condolências dos organismos da burguesia, o reconhecimento das instituições da republica burguesa, os elogios da imprensa monopólica e, finalmente, também de seus pares. A hegemonia burguesa é completa. Quem sabe agora, quando "tudo está dominado" e a república burguesa exibe suas vísceras sem constrangimentos nem oposição, os brotos da rebeldia política e intelectual necessárias para uma radical ruptura com o passado e o presente possam merecer a atenção e o trabalho de todos os interessados em romper com as ilusões que Delfim alimentou durante sua longa e confortável existência.

Revisão: Junia Zaidan

terça-feira, 25 de junho de 2024

A lumpemburguesia brasileira: o pragmatismo lulista e a produção da miséria nacional

 

A burguesia latino-americana é lúmpen! A burguesia brasileira também é lumpem! A sacada foi de André Gunder Frank num livrinho antigo quase esquecido, publicado no Chile em 1969 (Lumpem burguesía: lumpem desarrollo). Os economistas formados na Unicamp e na USP - especialmente na primeira - acreditam que, ao contrário da antiga lição, mais vale ler Schumpeter, Ignacio Rangel ou Conceição Tavares, cada qual à sua maneira, apologéticos da natureza "dinâmica e contraditória" do sistema capitalista. Em consequência, ignoram as valiosas lições da teoria marxista da dependência e seguem com maior ou menor grau tributários do espírito e orgulho burguês que vagueia errante entre nós sempre ávido por uma boa oportunidade. Não por acaso esses economistas inclusive desprezam totalmente o caráter parasitário do desenvolvimento capitalista na periferia, o que é possível ler num Manoel Bomfim, médico sergipano culto, igualmente esquecido das letras nacionais. 


Enquanto os economistas agraciados nas filas do liberalismo de esquerda alimentam a ideologia burguesa simulando a administração democrática da ordem burguesa e iludem o povo com o propósito de criar aqui um país de classe média quando o comando é da superexploração da força de trabalho, os liberais de direita não vacilam: o Estado é sempre um estorvo para a acumulação de capital. Ademais, de maneira aparentemente surpreendente mas em larga medida previsível, a conversão burguesa da esquerda liberal deixou o caminho livre para a crítica de direita sobre as imensas insuficiências do capitalismo dependente latino-americano, outrora um monopólio da esquerda revolucionária em disputa com o estruturalismo cepalino de orientação reformista, típico dos anos 1960 e 1970. A direita, em consequência, não vacilou em nova conquista ideológica num terreno que, em passado não tão distante, já era ocupado pelos economistas monetaristas estilo Friedman e tantos outros ideológicos de menor valor e presença acadêmica, mas úteis no jornalismo e ao sistema de propaganda. Assim, a direita ultraliberal comandou a crítica radical às "insuficiências" e às supostas "anomalias" do capitalismo periférico enquanto a esquerda liberal pretendia o milagre da redenção das maiorias nos marcos da ordem burguesa. Ora, se o Estado não é capaz de assegurar direitos elementares e os próprios governos progressistas estão no comando das "reformas" favoráveis aos capitalistas nacionais e estrangeiros, então não há mais recursos para as vítimas do sistema além de apostar na iniciativa individual. 


Na medida em que a crise mundial sob controle dos monopólios e dos governos dos países capitalistas centrais eclodiu primeiro em 2001 e, mais tarde, em 2008/2009, o terreno para o avanço político e ideológico da direita e da ultradireita liberal estava completamente livre e encontrava, ademais, uma esquerda apegada à defesa moral dos trabalhadores e limitada a políticas de inclusão social, sem capacidade sequer de mitigar o sofrimento das massas no continente. Eis a razão pela qual o "conservadorismo" avançou na América Latina e, de quebra, deslocou a outrora esquerda reformista para o terreno da direita no qual não poderia nem poderá vencer jamais. A direitização do ocidente não é fenômeno novo, revelou meu amigo e mestre Agustín Cueva no distante 1987. Eis a razão pela qual desprezo completamente o pânico cínico e cúmplice daqueles que denunciam o "avanço da direita" e a "ameaça do fascismo" como um novidade no intuito de isentar Lula e seu governo medíocre da crítica além, é claro, de modular o comportamento de uma ainda diminuta e vacilante oposição de esquerda. 


Ora, diante do fracasso do Estado em assegurar salários com carteira assinada, previdência social, redução da jornada de trabalho, formação profissional, segurança, educação de qualidade e saúde decente, ocorreu uma perversa mas real adequação da realidade ao ideário liberal e ultraliberal, orientada pela máxima do "self-made man" típico das "sociedades opulentas" mas completamente irreal para as massas na periferia. Com efeito, se o Estado não é capaz de assegurar direitos elementares e os próprios governos progressistas estão no comando das "reformas" favoráveis aos capitalistas nacionais e estrangeiros, então nada resta além de apostar na iniciativa individual, cuja expressão pode ser vista na apologia do "empreendorismo periférico" e na afirmação cúmplice das múltiplas e inúteis formas de empoderamento individual. Os liberais de direita agradeceram! Afinal, a própria esquerda liberal - caso eloquente do Lula na reforma da previdência realizada em seu primeiro mandato em 2003 - exibia um realismo maior do que o do rei liquidando ou limitando direitos conquistados pelos trabalhadores ao longo de muitas décadas de luta! 


A esquerda liberal não possui diagnóstico algum sobre a natureza da crise global e nem em pesadelo consegue observar os contornos específicos da crise do desenvolvimento capitalista na América Latina. No Brasil a crise é profunda e será mais intensa quando comparamos com os demais países da região, pois aqui o progresso burguês industrial foi maior em termos relativos. O México solucionou em termos imperialistas sua crise quando a burguesia assinou o Tratado de Livre Comércio com os EUA e Canadá em janeiro de 1994, atualizando-o em 2020, o que vinculou sua sorte aos desígnios do imperialismo estadunidense de maneira direta. A Argentina não teve semelhante alternativa e seguirá oscilando em crises intermináveis  que redefiniram a combativa tradição peronista das décadas de sessenta e setenta e fortaleceram uma direita liberal que enterrou para sempre o papel dos antigos Radicais, hoje apenas um registro literário. O peronismo não passa de uma caricatura trágica na administração burguesa e oportunista do sentimento popular e da tradição política reminiscente. O Brasil descobriu tardiamente a crise final dos partidos tradicionais e de todo o sistema político pois a lenta, gradual e segura transição da ditadura de classe àa democracia burguesa exigia certa estabilidade dos partidos e o MDB cumpriu o papel coadjuvante à perfeição. Entretanto, após 1994, a força da economia política do rentismo (Plano Real) foi lenta e inexoravelmente queimou certa margem de manobra antes que todos os governos assumissem na plenitude das teses liberais, confirmando que não há remissão para os trabalhadores nesse eterno vale de lágrimas da periferia capitalista.


Crise estrutural?

A indigência teórica da esquerda liberal é expressa quando afirma a existência de uma "crise estrutural" cuja primeira definição li em István Meszáros. O discípulo de Lukács esboçou em Para além do capital (capítulo 18) uma "explicação" para justificar a substituição  da noção de crise cíclica - essa com amparo em Marx - para uma "crise estrutural", que não possui o menor sustento teórico mas, curiosamente, ganhou enorme legitimidade nas filas da esquerda liberal (partidos, sindicatos e movimentos populares). Estimo que a mais completa ausência de reflexão sobre economia nos partidos políticos (PT, PSOL, PCB, PC do B, PSB, etc) - cujas manifestações mais eloquentes qualquer um pode constatar na programação medíocre e eleitoreira das fundações Lauro Campos e Perseu Abramo do PSOL e PT, respectivamente. Nesse contexto, aquela "definição" do húngaro caiu como uma luva na miséria intelectual dominante no terreno da análise do capitalismo no Brasil porque é tão indeterminada que permite manter a aparência de crítica ao capitalismo e, ao mesmo tempo, conviver com todas as suas misérias! De resto, não oferece nenhum diagnóstico da crise em curso tanto nos países centrais como nos periféricos. Agora, qualquer professor que pretende audiência repete a "coincidência de crises" (climática, ambiental, política, econômica, democrática, ética, psíquica, etc) que supostamente exibem o "caráter estrutural" da "ordem do capital"!!!!! Ora, essa "interpretação" não é um refúgio porque é uma farsa!


Assim, o apelo à "crise estrutural" constitui um bloqueio teórico e político completo para a análise do desenvolvimento capitalista no Brasil nas últimas décadas, afinal, se a crise é estrutural e mundial, nem sequer os efeitos na periferia podem ser concretamente analisados a partir de uma linha tão geral quanto estéril, o que não é circunstancial, obviamente. Ademais, o suposto combate ao "neoliberalismo" empobreceu ainda mais a reflexão teórica sobre o desenvolvimento capitalista, a transformação do Estado e das classes sociais nos países periféricos, as alianças de classe e o nacionalismo, entre outros temas estratégicos que, bem ou mal, informaram a análise da antiga tradição reformista, hoje praticamente extinta. Em consequência, a miséria teórica e a demagogia acadêmica floresceram a partir de expressões tais como "reformismo de baixa intensidade", "reformismo sem reformas", "políticas de inclusão social" e outras quinquilharias destinadas a justificar os governos petistas mas sem qualquer capacidade de mobilização capaz de fazer frente à ofensiva burguesa no Brasil e, mais importante, incapaz de mobilizar uma força revolucionária, a única capaz de conter ao avanço da direita. 


Os dois movimentos - a adesão à ordem capitalista pela esquerda que se tornou liberal e a ofensiva burguesa motivada pelo ultraliberalismo - cancelaram a distinção entre centro e periferia, atualizando uma antiga e certeira denúncia de Ruy Mauro Marini contra FHC e José Serra, indicada em 1978!! De fato, aquilo que na atualidade podemos chamar generosamente de "pensamento econômico brasileiro" elimina a diferença específica da periferia no sistema capitalista mundial e, no limite, permite a importação da "racionalidade" implícita dos manuais de macroeconomia ou mesmo do keynesianismo restrito à denúncia dos limites e perigos do "neoliberalismo" para a civilização ocidental. Eis a razão pela qual as novidades teóricas da Europa e dos Estados Unidos aterrissam entre nós com enorme autoridade política e teórica destinada a nos alertar a respeito dos riscos sobre nossas cabeças, como se, de fato, o Brasil fosse um laboratório mundial das experiências da classe dominante em escala mundial. Nada mais ideológico, tosco mesmo, ainda que útil, uma vez que  produz a impressão de que a sorte do capitalismo mundial depende do rumo que os governos de nosso país possam tomar e confirmam as razões aparentemente sólidas de que Lula é supostamente uma figura estratégica da luta de resistência dos trabalhadores e jamais um obstáculo a ser vencido aqui e agora. A propósito, apenas começam a surgir, ainda que timidamente, as vozes que finalmente confirmam nossa hipótese de que devemos construir uma radical oposição de esquerda a Lula, proposta que a organização Revolução Brasileira lançou ainda durante a campanha eleitoral passada quando defendemos o voto nulo tanto no primeiro quanto no segundo turno. A fé lulista é, não obstante, resistente e não cansará de justificar a redução da política ao eleitoral segundo a qual "somente Lula e ninguém mais venceria Bolsonaro". Aqueles que supunham que a vitória eleitoral de Lula permitiria a "mudança na correlação de forças" se encontram agora pasmados diante dessa sabedoria que cabe numa casca de noz. De resto, a repetição enfadonha de que somente Lula venceria Bolsonaro é apenas expressão da redução do conflito de classes ao comitê eleitoral, razão da esquerda liberal cativa da visão parlamentar de política exibida sem rubor na face pelos "marxistas" de todos os partidos.


Há, obviamente, breves alertas dos adeptos recentes e vacilantes da teoria marxista da dependência que, ou votam em Lula ou recordam os alertas do mestre de Barbacena sobre os perigos do reformismo mas, não sem motivo, o inscrevem de maneira redutora e oportunista no "espírito crítico do lulismo". Os novos adeptos da antiga tradição crítica - o melhor que já se escreveu entre nós sobre o subdesenvolvimento e a dependência em que nos encontramos cada dia mais afundados - operam uma perversa "mediação" entre o senso comum de Lula e as necessidades urgentes da luta de classes para ao qual a massa de trabalhadores e suas organizações estão completamente desarmadas. Na prática, estão mais interessados em salvar a reputação pessoal diante da miséria que ajudam a construir do que efetivamente acelerar a passagem da consciência ingênua para a consciência crítica. Nesse particular resgate, a teoria marxista da dependência funciona como um eco solto no ar mas sem aderência porque segue cativa da defesa do governo Lula diante do chamado "avanço da direita" e do "neofascismo". Entretanto, o núcleo racional da teoria marxista da dependência - a impossibilidade de soberania, de elevação do nível de vida das massas, de fortalecimento institucional do trabalho e, sobretudo, a via revolucionária como única alternativa capaz de superar o subdesenvolvimento - é completamente esterilizada no altar da imaginária "correlação de forças" adversa destinada a confirmar Lula e o governo petucano como o único horizonte alegadamente possível.


A crítica certeira e as notáveis contribuições de Marini - para dar apenas um exemplo entre tantos - funciona, nesse contexto, como um verniz marxista para liberais de esquerda descontentes e/ou decepcionados com o rumo "inesperado" do terceiro mandato de Lula, os quais julgavam que o vulgar político seria outro após a prisão injusta, agora adepto e interessado na leitura, homem que descobriu a interferência direta do imperialismo (via Departamento de Justiça dos EUA) na Operação Lava Jato que o teria levado e superar as contumazes ilusões na democracia que sempre alimentou. O verão das ilusões pequeno-burguesas foi breve. As primeiras manifestações das desilusões emergiram logo na primeira semana (8 de janeiro) diante das decisões presidenciais em relação à "ameaça golpista" e a inequívoca timidez presidencial frente aos militares e a hegemonia da direita no interior das forças armadas. O brado da esquerda liberal não poderia ser mais transparente, dando a ver sua própria desilusão e impotência: "sem anistia", gritavam em pequenas manifestações longe dos ouvidos de Lula, que, obviamente, tinha outros planos e atuou exatamente na direção oposta!


O respeito absoluto à economia política do rentismo terminaria cedo ou tarde por exigir uma crítica mais forte e, então, o despertar de setores da esquerda liberal de todos os partidos avançou dois milímetros ao identificar alguns ministros como alvos preferidos também como forma de poupar Lula de responsabilidades que somente o presidente possui. Considerando a formação acadêmica dos "dirigentes" da esquerda liberal de todos os partidos, o ministro da Educação foi obviamente o primeiro a entrar na lista dos indesejáveis. Um pouco mais tarde, Haddad entrou no radar da crítica quando promoveu o teto de gastos do PT, não sem receber reconhecimentos de que a iniciativa do governo petucano era melhor do que aquela aprovada no governo Temer. Um passinho à frente, diziam. O teto de gastos do PT apenas confirmava de maneira clara o acordo fundamental com a coesão burguesa que, de fato, dirige o país. Agora, ainda de maneira tímida e vacilante, as críticas se dirigem na forma de "alertas" ao Lula a despeito de ignorar que ele - e somente ele - é o principal personagem central da trama. O pior desse enredo cínico e eleitoreiro está por chegar, mas devo aguardar outubro...


O sistema centro-periferia

A eliminação da diferença entre centro e periferia, considerada anacrônica e mecanicista pela maioria absoluta dos economistas de todas as universidades é, de fato, uma regressão intelectual enorme e de largo alcance e consequências. Vez ou outra nossa condição periférica emerge, não como expressão do real funcionamento da economia mundial mas, ao contrário, como se fôssemos um laboratório para experimentos da classe dominante mundial. Assim, o Brasil saiu da condição de um "elo débil" da cadeia imperialista para um valioso laboratório de testes, que, uma vez vitorioso aqui, poderia ser exportado para outros países. Nesse contexto, o Brasil aparece como um "elo estratégico" a ser batido, razão pela qual a apologia lulista emerge como comprovação de que os governos da esquerda liberal constituem um obstáculo efetivo da dominação imperialista em escala mundial. É fácil observar a apologia da "política externa ativa e altiva", mesmo que não passe de completamente submissa à política hemisférica de Washington e do Partido Democrata estadunidense. A esquerda liberal atua, portanto, cativa do domínio burguês e da ordem liberal democrática.


A direita tem rumo, programa e metas estabelecidas. Em primeiro lugar mantém enorme vantagem na luta ideológica, que, nas filas da esquerda, está limitada ao famigerado identitarismo (individualista) funcional à ordem burguesa e à defesa moralista dos pobres via "inclusão social". A direita, ao contrário, não vacila e acusa o corporativismo do Estado (patrimonialista), sua crônica ineficiência; aponta a incapacidade de oferecer serviços médicos dignos e educação necessária para enfrentar os desafios cotidianos das amplas massas. Com frequência e método acusam o Judiciário em todas as suas instâncias de gozar de uma vida privilegiada, com ministros e juízes ganhando super salários que consomem 1,5% do PIB anualmente. A orientação anti-estatal é obviamente um recurso ideológico, pois o capitalismo não sobreviveria um dia sem Estado, mas nas condições atuais, conta com alto grau de aderência nas massas, pois ninguém acredita que os sistema de saúde pública pode oferecer serviços melhores e a educação seguirá sendo apenas formal e à distância, sem capacidade de promover a mobilidade social destinada a criar uma imensa classe média. As baixas taxas de desemprego são acompanhadas de salários de fome e as políticas sociais - antes de redimir o povo da miséria e da exploração - constituem peça fundamental para a manutenção da superexploração da força de trabalho. Na atualidade, em 13 estados da república o número de beneficiados pelo Bolsa Família é maior do que o número de trabalhadores com carteira assinada!


Os liberais de esquerda, ao contrário, seguem desarmados: clamam pelo Estado e, por má fé ou oportunismo, afirmam a importância da intervenção estatal em favor do bem comum, mesmo quando sua ação imediata favoreça prioritariamente distintas frações do capital. Ademais, os liberais de esquerda respeitam escrupulosamente o rentismo cujo epicentro é o pagamento religioso dos juros da dívida interna e a permanente renegociação longe da atenção pública, prática que termina por tornar a política social do governo mera expressão da filantropia. 


No Brasil - e na maior parte da América Latina - os economistas "marxistas" são... keynesianos!! É claro que se trata de um Keynes adaptado ao caráter lumpem da burguesia "brasileira" porque os keynesianos confinados majoritariamente nas universidades sabem que os recados de Schumpeter em Business cicles, especialmente sua teoria da inovação (capítulo III) e com mais razão a análise da crise de 1929 (capítulo IX) não constituem amparo para a preservação do caráter "dinâmico" do capitalismo via "políticas anti cíclicas". Portanto, o tradicional e pálido recurso a Keynes e seu esforço bom moço para salvar o capitalismo não encontra resposta nos fatos. Nem mesmo Minsky, um keynesiano relativamente lúcido sobre questões essenciais teve vida longa nos cursos universitários e sequer é recordado pela maioria dos economistas que atuam nas políticas de estado ou nos partidos políticos na defesa da intervenção estatal diante do avanço das políticas de "mercado".


Na verdade, o debate sobre economia e as classes sociais no Brasil permanece confinado no miserável terreno sob domínio da teoria neoclássica, expressão da hegemonia burguesa e rentista; em consequência, limitado tão somente à busca da melhor combinação possível entre as variáveis próprias do interesse capitalista (metas de inflação, cambial flutuante e superávit fiscal) apresentadas como se fossem ciência certa e jamais como a política econômica dos capitalistas. A manufatura da opinião pública, como nos lembra Noam Chomsky, não é apenas um artificio da imprensa burguesa (CNN, Globo, jornais, sites, eventos de bancos e corretoras, controle dos programas de pós-graduação nas universidades públicas e privadas, etc) ainda que ali tenha um poderoso instrumento para controle da opinião pública e dos políticos profissionais. A hegemonia burguesa conta, desde de 2002, com a valiosa adesão de Lula e do PT, que, por puro oportunismo, pretendiam apenas dar um "rosto humano" à política econômica do rentismo orientado pela filantropia católica e as políticas identitárias sustentadas no moralismo inerentes às políticas de "inclusão social". 


Os keynesianos na América Latina e especialmente no Brasil, praticam acentuado ecleticismo teórico e não menor malabarismo político destinados a "sustentar" a expansão do capitalismo dependente rentistico da mesma forma que pretendem a administração democrática da república burguesa em profunda crise. Há muito, os keynesianos mais desinibidos assumiram as premissas neoclássicas de maneira geral e do Plano Real em particular. É claro que poderemos encontrar um ensaio aqui e acolá com alguma dose de heresia mas na absoluta maioria dos casos as "contribuições de extração keynesiana" respeitam escrupulosamente as premissas de seus supostos adversários (os "neoliberais") de bom grado e tão somente disputam na margem aspectos ideológicos destituídos de importância teórica e menos ainda capazes de influenciar os trabalhadores num país em que 94% da População Economicamente Ativa (PEA) recebe até 2,5 salários mínimos e meio! Observem, por exemplo, o tema da dívida pública. A cumplicidade dos keynesianos com o rentismo é completa e, em consequência, recusam terminantemente a eutanásia do rentista recomendada por Keynes e Minsky e fogem como o diabo da cruz de uma simples auditoria da dívida. Em oposição, apostam sempre na necessidade de praticar a política de juros mais baixas na vã tentativa de compatibilizar a política fiscal e monetária para favorecer o "crescimento econômico". É uma picaretagem insuportável ainda que facilmente detectável por um estudante de economia de segundo período, caso o caráter lúmpem da burguesia no Brasil entre em consideração. 

 

Não é necessário muito esforço para observar que o aclamado "crescimento econômico" não toca nos pilares da posição do país na divisão internacional do trabalho mas, ao contrário, no caso do Brasil, aprofunda a dependência e reforça a coesão burguesa que mantém sob rédeas curtas cada medida ensaiada pelos sucessivos ministros da economia. Ora, precisamente quando o país exibia taxas de crescimento do PIB elevadas em alguns anos do petismo com Lula ou taxas próximas ao pleno emprego com Dilma, a dependência se aprofundava de maneira acelerada e, em consequência, tanto o latifúndio quanto os banqueiros acumulavam mais poder e força nas disputas políticas e eleitorais. O antigo desenvolvimentismo sequer é um fantasma há mais de 3 décadas e jamais figurou como projeto nos sucessivos governos do PT. Jamais! Qual a razão de tamanha impotência? Não há dúvidas: um projeto desenvolvimentista exige uma burguesia industrial efetivamente nacional inexistente na periferia latino-americana. 

 

Uma perspectiva de governo desenvolvimentista não pode prescindir da aliança estratégica com a burguesia. Nessa aliança, não há dúvidas de que a burguesia industrial possui enorme centralidade e a ação do Estado deve avançar no controle das finanças tanto numa perspectiva cepalina quanto de um keynesiano ao estilo Minsky. Entretanto, a iniciativa governamental petucana da neo-industrialização sob comando de Alckmin é uma farsa completa. Não passa de simulação com apelos ecológicos (transição energética) que não encontrará apoio nas amplas massas cada dia mais exploradas e desesperadas! A neo-industrialização anunciada pelo governo é uma farsa completa que não permite sequer um estudo aprofundado diante de tamanha miséria! 


Mas se a análise do "programa da neo industrialização" representaria perda de tempo valioso, o mesmo não ocorre quando observamos a reação dos setores da burguesia e suas representações de classe - a FIESP, por exemplo - em relação aos planos governamentais. Acaso, encontramos uma adesão consciente e apoio decidido? Nada, rigorosamente nada! Mais importante ainda é observar as posições da fração mais importante no interior da burguesia industrial, aquela capaz de elevar a produtividade do trabalho em escala necessária - a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (ABIMAQ) - para verificar efetivamente as razões pelas quais Gunder Frank continuará como um autor proscrito tanto nas faculdades de economia quanto nos partidos políticos da esquerda liberal. 


A ABIMAQ afirma que  


[...] para re-industrializar o país, é preciso anular os fatores estruturais que tiram competitividade do produto nacional, estabelecer um cenário macroeconômico favorável ao desenvolvimento. Isso abrirá espaço para o investimento, que precisa ser baseado em novas tecnologias e direcionado à sustentabilidade. Passa, portanto, por reduzir o "custo Brasil" promovendo a reforma tributária, reduzindo as taxas de juros e incentivando as exportações por meio de seguro de crédito e financiamentos a custos competitivos. Também é importante que as indústrias se adaptem às novas demandas dos consumidores, às exigências ambientais e sociais. (ABIMAQ)


O núcleo avançado da burguesia industrial repete a ladainha "neoliberal" numa clara combinação do assalto permanente ao Estado aliado ao aumento da exploração do trabalho ("custo Brasil") fomentando uma economia exportadora


Portanto, é preciso deixar claro de uma vez por todas que o caráter de centro-direita do atual governo não é produto de uma suposta correlação de forças adversa e menos ainda resulta da miserável ladainha petista sobre a composição do congresso nacional e a autonomia do Banco Central. A orientação do governo esta determinada pelo desenvolvimento capitalista rentístico que o próprio PT alimentou em 14 anos de seus sucessivos governos! A propósito da composição do Congresso Nacional, Lula em pessoa tem repetido que o governo aprovou todas as reformas que enviou ao congresso com folgada maioria! Portanto, o programa, a orientação e as opções do governo que a esquerda liberal caracteriza vez ou outra como "erro" do governo ou determinada pela "chantagem" de parlamentares contra Lula ocultam, na verdade, precisamente a ausência da análise da transição do antigo desenvolvimento capitalista de base industrial para o desenvolvimento capitalista rentítisco no qual a fração industrial é, obviamente, cada dia mais débil e impotente. Portanto, o deslocamento à direita do governo não é apenas uma estratégia para captar a base eleitoral potencial da direita representada por Bolsonaro mas, antes, uma decorrência da nova composição de classe derivada da fase rentística do desenvolvimento capitalista que não será passageira mas constitui um novo estágio da dependência que liquida na raiz toda e qualquer ilusão desenvolvimentista. Essa é a questão central ausente em todas as análises que pretendem explicar a natureza do governo petucano!


Esse reconhecimento elementar é inaceitável para os keynesianos que comandam a "crítica" aos governos do liberalismo de esquerda, que resta completamente ineficaz diante da ofensiva burguesa em seu constante assalto ao Estado e no aprofundamento da superexploração da força de trabalho. Gunder Frank e Ruy Mauro Marini eram proscritos no passado e seguem indesejáveis no presente porque tocam precisamente no nervo das ilusões desenvolvimentistas. A nota dominante no "debate econômico" põe de um lado os ultraliberais com enorme força e, de outro, os desenvolvimentistas totalmente impotentes. A propósito, não é obra do acaso a recente apologia à trajetória política de Maria da Conceição Tavares, tanto no MDB como no PT sem análise crítica dos enormes erros teóricos que produziu em sua longa vida acadêmica e política. De fato, as questões centrais da dependência e do subdesenvolvimento não encontram nos escritos de Conceição Tavares amparo algum e a apologia póstuma sobre sua contribuição teórica é uma enorme sucessão de erros que passou batida entre nós em função do domínio que a oposição liberal ganhou durante a ditadura - especialmente importante no período da transição do regime militar para a democracia burguesa - e no qual os teóricos marxistas estavam completamente impedidos de participar. De resto, mesmo a crítica de Marini (Ganancia extraordinária y acumulación de capital) aos graves erros de Conceição Tavares ou a detalhada crítica de Nilson Araújo de Souza em sua tese de doutorado (Crisis y lucha de clases en Brasil 1974-79), jamais foram sequer levadas em consideração entre os especialistas. O reinado absoluto dos economistas da oposição liberal ao regime militar seguiu intacto mesmo quando a democratização finalmente superou os limites impostos pela censura e a falta de liberdade intelectual. 


Portanto, não me surpreendeu a apologia póstuma à Conceição Tavares pelas novas gerações de economistas, o que somente foi possível devido à ausência absoluta de uma revisão crítica de suas ideias para a superação dos graves problemas inerentes a um país subdesenvolvido e dependente como o Brasil. Até mesmo os elogios que ela verteu aos planos de estabilização (Cruzado e Collor) caíram em total esquecimento! Entre os economistas "heterodoxos" foi precisamente Conceição Tavares quem, de maneira enfática, afirmou que o Plano Collor era "tecnicamente perfeito" e segundo suas próprias palavras "muito melhor que o nosso (Plano Cruzado)". A despeito da oposição a governo de Collor, Tavares arrematou: "o plano é fabuloso e pode salvar esse país" (Quem, afinal, apoiou o Plano Collor? Alexandre Andrada, REP, 38, 2018). A despeito de eventuais preferências intelectuais, as homenagens póstumas que recebeu por parte da esquerda liberal - especialmente dos economistas da nova geração - revelam enorme ausência da reflexão sobre a política econômica e seu total descolamento da economia política do rentismo. Mas é também um produto da prostração completa da esquerda liberal a classe dominante em sua vã tentativa de representar os interesses burgueses nos marcos da legalidade democrática. 


Crescimento e austeridade.

Nesse contexto, a oposição entre crescimento e austeridade - o enfoque mais cômodo para os interesses burgueses e mais perverso para os trabalhadores - propicia as migalhas ideológicas oriundas da Europa errante a autoridade suficiente para ensinar aos ouvidos ávidos da esquerda liberal lulista os mistérios e os meios pelos quais "os economistas inventaram a austeridade e abriram o caminho para o fascismo" no velho continente. Eis o caminho por onde a ideologia é vendida como se fosse ciência! É também um meio - impotente - de manter em alta o orgulho burguês que sempre dominou a reflexão em economia em nosso país como se, no limite, nossa "complexidade" fosse nos afastar das malhas férreas da dependência e do subdesenvolvimento típicos dos demais países latino-americanos.


Entretanto, o orgulho burguês na periferia capitalista tem custos elevados. Ao contrário dos liberais de direita, os capitalistas sabem que sem o Estado, a vida fica bem difícil. Eles também sabem que nos EUA o Estado dá as cartas e orienta as ações estratégicas com apoio nos imensos déficits estatais e o apoio indispensável da política externa imperialista. Na China, o Estado criou uma burguesia que só não é motivo de inveja porque a luta ideológica deve espetar os comunistas durante todo o dia e a direita se esforça em provar que as "economias de mercado" são mais eficiências que o "dirigismo estatal". Quinquilharia ideológica de quinta que, não obstante, anima a plateia tanto à esquerda, quanto à direita liberal.


Na periferia, o empresariado não abre mão do Estado Na prática, todo capitalista semi-alfabetizado sabe que é impossível competir com a produtividade do trabalho da China e dos Estados Unidos. Entretanto, o ataque ideológico à intervenção estatal lá fora é apenas um artificio destinado a ocultar o assalto permanente ao Estado que praticam aqui dentro com sumo esmero. Eis a razão da aparente contradição entre execrar a intervenção estatal na imprensa burguesa e o recurso permanente à proteção estatal e ao assalto aos recursos públicos em nome do "emprego e da renda" do proletariado. Os exemplos abundam mas a esquerda liberal em combate contra seus fantasmas, ignora o chão que efetivamente pisa pois, de um lado, justifica a intervenção estatal para motivar o "espirito animal" dos capitalistas como se tivéssemos aqui uma burguesia industrial disposta a reproduzir a via clássica do desenvolvimento capitalista  inglês; de outro, execra a defesa ideológica do "mercado" exibida pela direita e ultra direita liberal. Não sai jamais de seu labirinto, a despeito dos sucessivos exemplos com os quais se depara todos os meses!


Lula reencontra a lumpemburguesia.

Há poucos dias Lula recebeu um informe da ministra Simone Tebet divulgado com ares semelhantes a uma enorme descoberta científica: o estado nacional destina R$ 646 bilhões de reais todos os anos aos capitalistas. Na verdade, a revelação consta no Relatório do TCU que aprovou com reservas as contas de Lula e onde se lê que "em 2023, estes benefícios atingiram o montante projetado de R$ 646,5 bilhões, correspondendo a 34,0% da receita primária líquida e a 5,96% do PIB. Foram 519 bilhões de benefícios tributários e R$ 127,6 bilhões de benefícios financeiros e creditícios". Não é mesmo uma contundente demonstração da imensa capacidade produtiva da burguesia?


A revelação presidencial não é obra do acaso: ocorre no momento em que a imprensa burguesa exige estrito apego à "disciplina fiscal" e, em consequência, cortes adicionais em todos os ministérios e, especialmente, em saúde e educação, áreas com orçamentos expressivos. A cifra é, de fato, uma montanha de dinheiro dos impostos drenados por meio de subsídios, renúncias fiscais, crédito barato, etc., que todos os anos garantem a acumulação capitalista e a saúde financeira das empresas, especialmente as nacionais.


Quando começou a farra?

Ora, iniciou... com Lula e ganhou vitalidade com Dilma!!! Portanto, não há novidade alguma pois o tema frequentava as manchetes de jornais desde sempre exibindo a sabedoria keynesiana de Lula e Dilma. Em 2015, por exemplo, o Ministério da Fazenda informava que os estímulos fiscais concedidos entre outubro de 2008 e dezembro de 2009 acançavam R$ 26 bilhões. Em 2010 outros R$ 17,5 bilhões foram concedidos, totalizando R$ 43,5 bilhões no governo Lula. (FSP, 15/09/2015). A mesma fonte informava que segundo os cálculos da Receita Federal, as desonerações concedidas pelo governo da presidente Dilma em 2011 somariam aproximadamente R$ 458 bilhões em 2018, final de seu mandato. O jornalão burguês informava ainda que "a maior parte das desonerações" geraria impactos ao longo de vários anos. As medidas adotadas em 2011, para dar um exemplo, representaram renuncia de R$ 66,38 bilhões. Ademais, "em 2012, o governo Dilma atingiu o auge das desonerações, com renuncia de R$ 142,5 bilhões". De fato, as desonerações produzem efeito devastador ao longo do tempo. No primeiro governo Dilma, por exemplo, entre 2010 e 2014, as desonerações começaram com modestos R$ 2,5 bilhões e seguiram subindo de maneira acelerada: R$ 9,8 bi (2011), R$ 46,5 bi (2012), R$ 75,4 bi (2013) e, finalmente, R$ 96,5 bi (2014). Portanto, nenhuma novidade: marmita requentada! Não é uma política anti cíclica genial?


No governo Lula, o festejado PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) continha também importantes renuncias fiscais em favor dos capitalistas pois, "dentre as medidas propostas, estão desonerações tributárias para estimular o investimento privado e aumentar o consumo. As desonerações previstas envolviam o setor da construção, indústrias, infraestruturas pesadas e setor de alta tecnologia (computadores, produção de semicondutores, equipamentos para televisão digital.) Somente as medidas de desoneração fiscal contidas no PAC representam um montante de R$ 1,41 bilhão em 2007. Se forem incluídas todas as medias de desoneração no período, o total foi de R$ 6,6 bilhões em 2007 e R$ 11,5 bilhões em 2008 (Ministério da Fazenda, 2008 segundo Melina de Souza Lukic, Revista Sequencia, Florianópolis, 2015). A surpresa presidencial, portanto, não pode ser atribuída à ignorância, mas, ao cinismo burguês. Na prática, basta a coesão burguesa - via imprensa - apertar o governo exigindo respeito sacrossanto ao déficit zero defendido por Haddad e Lula descobre a "novidade" para mostrar a distribuição desigual do excedente econômico. Entretanto, os monopólios midiáticos não brincam em serviço e dobram a aposta, razão pela qual a campanha segue com força e o governo se prepara para cortes nos orçamentos de educação e saúde. Afinal, na relação de Lula com a burguesia, essa aprendeu ao longo de 14 anos do petismo, a força e sabedoria do ditado popular: "cachorro que late, não morde"! Em consequência, as manchetes "favoráveis" à Lula duram 24 horas e logo caem no vasto deserto da palavra sem ações! O silêncio sobre o manejo rentístico das finanças públicas permanece confinada aos bastidores secretos e silenciosos dos acordos palacianos como meio eficaz de manter a antiga submissão ao rentismo e o compromisso marginal com os pobres!


Afinal, como a lumpemburguesia conquistou os R$ 646 bilhões anuais de subsídios agora apresentados como revelação divina? Bueno, basicamente com decisões de Lula e Dilma! Os desembolsos suculentos foram realizados na grande crise de 2008/2009 destinados a confirmar a sabedoria econômica do atual presidente (e seus assessores keynesianos) para confirmar a "tese" que o "tsunami mundial" aqui, na periferia, não passaria de uma "marolinha", como então afirmou Lula. A burguesia sorriu, agradeceu, encheu os bolsos com dinheiro público e crédito tão barato quanto farto e, em troca, não avançou para uma corrida contra a moeda nacional. A estabilidade estava mantida e a economia política do rentismo também! A sabedoria econômica do ex-metalúrgico aparentemente era ciência certa quando medida no indicador mais miserável entre os economistas convencionais (PIB): 7,5% em 2010, o suficiente para emplacar a desconhecida Dilma Rousseff no terceiro mandato presidencial petista. Por sua vez, Dilma, a discípula da pós-graduação da UNICAMP, não vacilou em potencializou a política anticíclica na veia: bilhões de reais transferidos aos burgueses em programas destinos a garantir "emprego e renda" aos trabalhadores. A crise, entretanto, corroía lentamente o solo na qual a primeira mulher na presidência da república fazia gala de sua suposta capacidade gerencial e autoridade política pouco afeita a tapinhas nas costas de deputados e senadores.


No embalo da política anti-cíclica destinada a manter o "crescimento, o emprego e a renda dos trabalhadores", Dilma, de fato, não economizou: bilhões de reais transferidos à lumpemburguesia! Entretanto, o PIB desabou: em 2011, 3,9% e, em 2012, míseros 0,9%. Em  2013, modestos 2,3% e, finalmente em 2014, desprezíveis 0,1%. A taxa de desemprego bateu em 4,8% motivo de imensa alegria aos keynesianos, mas, os salários estavam na lona e, em consequência, as greves explodiam no chão de fábrica, assemelhando o período petista ao de FHC no que se refere ao humor do proletariado: mais de 1.000 greves ao ano! No segundo mandato a fraude anti-ciclica cedeu e as detestáveis políticas de "ajuste" chegaram com força: a queda - ideologicamente tratada como "golpe" - foi inevitável.


lumpemburguesia não poderia trair sua natureza a despeito dos bilionário subsídios e, em lugar de encabeçar um esforço para a redenção econômica do país, apoiada num governo progressista, mandou o dinheiro para contas bancárias no exterior protegida pelo regime cambial e a conta de capitais aberta considerados por gregos e troianos ainda hoje como sabedoria incontestável. Aos petistas religiosos, sempre prontos para negar evidências, apresento a confissão da própria presidente algum tempo depois:

 

"Vou te falar, acho que cometi um erro importante, o nível de desoneração de tributos das empresas brasileiras. Reduzimos a contribuição previdenciária, o IPI, além de uma quantidade significativa de impostos. Com isso, tivemos uma perda fiscal muito grande. Nossa expectativa era evitar que a crise nos atingisse de forma pronunciada. Por isso, aumentamos também o crédito, mas acho que aí não erramos. Erro foi a desoneração porque, ao invés de investir, eles aumentaram a margem de lucro às custas de mais fragilidade nas contas públicas. Se for olhar o nível de despesas de pessoal no meu governo, é menor do que nos anteriores. A crise fiscal não derivou de excesso de gastos, mas essa renúncia tinha a intenção de beneficiar o conjunto da economia, o que não ocorreu". (grifos meus, NDO).


Os programas anunciados por Dilma em 27 de maio de 2014 desoneravam a folha de 56 setores que já eram beneficiados por decisões anteriores da presidente, entre os quais, construção, automotiva, pneumáticos, têxtil, naval, aérea, material elétrico, meios de comunicação, móveis, brinquedos. Não é uma beleza de política industrial? O ministro Guido Mantega - um dos principais detratores de Gunder Frank e Marini num livro que gozou de imensa simpatia nos bancos escolares - indicou que os benefícios aos burgueses naquela decisão alcançavam a casa dos 22 bilhões de reais! Que tal? Mas Dilma e seus ministros sabichões somente muito mais tarde "descobririam" a natureza lúmpem da burguesia!  


Agora, as transformações do capitalismo dependente rentístico não mais permitem as soluções relativamente fáceis utilizadas pelo petismo no passado. Há que cortar na carne dos pobres, da maioria do povo, dos trabalhadores. O malabarismo político praticado em outras épocas já não conta com a antiga margem de manobra apoiada por doses consideráveis de cinismo disfarçando a submissão à classe dominante. Ademais, o caráter lumpem da burguesia é cada dia mais saliente até mesmo para os disciplinados e esperançosos aprendizes de Keynes. Mas, afinal, qual a alternativa possível, gritam em completa angústia? "Com Lula é ruim, sem ele seria muito pior!", bradam à beira do abismo! O petismo é a versão cínica do "realismo" e do "pragmatismo" burguês, expressão da servidão completa e irremediável à classe dominante. Aqueles que permanecerão na triste e patética posição do cobrar do governo políticas que jamais estiveram no horizonte de Lula ou ensaiar a "crítica" com a velada intenção de salvar a própria reputação como se estivessem, de fato, defendendo os interesses da maioria da população, não são menos que cúmplices desse imenso fracasso histórico.


Revisão: Junia Zaidan