domingo, 6 de outubro de 2024

a função ideológica do "debate"

A potência técnica das redes digitais produziram um fenômeno relativamente novo, nocivo e profundamente deletério: a recusa da crítica. Na prática, a proliferação de "debates" eletrônicos - cuja maior expressão é um quadro da CNN denominado cinicamente "Grande debate" - no qual dois liberais cuidadosamente escolhidos tematizam quinquilharias ideológicas destinadas à alienação do grande público sob o manto protetor do jornalismo-propaganda.

A primeira vez que vi o "debate" - depois a detestável cena se repetiu ad nauseam - um liberal de direita chamado Caio Coppolla "debatia" com um liberal de esquerda, José Eduardo Cardozo, ex-ministro petista - reproduzindo ignorância e alienação durante 20 ou 30 minutos. Uma barbaridade alimentada por dupla via! Entretanto, trata-se de operação ideológica eficaz, uma peça de controle da opinião pública, de manufaturação do consenso em favor da burguesia. Na prática, o recurso jornalístico simula pluralismo mas pretende tão somente educar milhões de pessoas nos limites do permitido pelas ideias dominantes que, tal como ensinou Marx, são as ideias da classe dominante.

O recurso midiático dos monopólios praticado no atacado é repetido no varejo pelas mídias digitais de canais alternativos, reproduzindo a mesmíssima lógica com idênticos resultados. De resto, para os que acreditam nesse tipo de programa, bastaria revisar o atual processo eleitoral concluído há poucos dias com o estelar "debate da Globo". Quem venceu? Ora, a classe dominante e seu absoluto controle sobre o sistema político da república burguesa em frangalhos, porém sempre útil para a manutenção de seus interesses! Quem venceu? A pergunta do espectador angustiado se repete: Nunes, Marçal, Boulos, ou Tabata? Quem, afinal, venceu? Nenhum deles!! Não se trata apenas do formato ou regras de cada "episódio", mas da função de qualquer modalidade de "debate" nos marcos da podridão do sistema político e da ofensiva da direita nas disputas eleitorais e ideológicas! Na prática todos os "debates" reforçam a ideologia da classe dominante a despeito das intenções dos supostos protagonistas.

Ora, qualificar esse tipo de polemica como se fosse disputa ideológica é uma ofensa à memória e à inteligência. O recurso a "militância eletrônica" nas atuais circunstâncias atesta precisamente a ausência do protagonismo das massas, a decadência dos partidos políticos da esquerda liberal, a corrupção da prática parlamentar, a debilidade dos chamados movimentos populares, a renuncia e irresponsabilidade dos acadêmicos que constituem características essenciais da hegemonia burguesa que, nem mesmo em sonhos, podem ser superadas pelo ativismo midiático. Num passado não muito distante, os revolucionários aprenderam com muito estudo e intensa práxis, a importância da contradição, razão pela qual não me importa quando acusam meu diagnóstico de fomentar a apatia e desolação, como se fosse um convite à paralisia política numa terra arrasada, diante da qual não haveria qualquer alternativa. Jamais! As contradições - entre as quais a miséria do "debate" público midiático - deve ser encarada com seriedade e não uma via de reprodução da hegemonia burguesa.

A propósito, no auge da ofensiva sionista contra o povo palestino, diante de assassinatos em massa de crianças, mulheres e inocentes de todo tipo produzidos pela máquina de guerra de Israel, assisti um debate num canal qualquer em que um defensor da causa palestina e outro do sionismo discutiram durante uma hora quem tinha razão. Era, sem dúvida alguma, um debate estéril nos quais ambos saíram da disputa exatamente como entraram e certamente, entre os ouvintes, a situação se repetiu, pois tal evento é incapaz de mudar a posição de alguém ou ainda de aprofundar no conhecimento histórico sobre a questão nacional palestina e as razões pelas quais o imperialismo estadunidense apoia sistematicamente o estado terrorista sionista sabotando qualquer iniciativa de paz. Os debates midiáticos não foram capazes de produzir eventos de rua com forte participação popular ou mesmo nas filas da esquerda liberal; ao contrário, exibiam a apatia dominante nesse e em qualquer outro tema estratégico.
Nas universidades, supostamente a casa de ciência, da cultura e da crítica, o ambiente não é melhor. O "debate" - quando existente - esta determinado pela diminuta capacidade de convocatória das mídias eletrônicas e nem de longe exibe a vitalidade de outros tempos (15 anos atrás, mais ou menos). Os centros acadêmicos, sindicatos de técnicos e professores, prisioneiros de agenda que não tocam nos interesses das maiorias, são notoriamente incapazes de encher um auditório. Essa constatação não pretende ocultar misérias e oportunismos do passado e, portanto, descarto qualquer idealização do ambiente universitário em outras épocas pois a natureza da instituição num país subdesenvolvido e dependente não permite arroubos semelhantes. Mas o domínio do acadêmico sobre o intelectual é devastador, uma miséria, cuja expressão mais evidente - desde logo, não única - é o identitarismo decadente que sofremos como forma de interdição da crítica.

Na contramão do ambiente dominante, o IELA convidou o antropólogo Antonio Risério para atividade pública e um seminário interno destinado a análise de seu livro Em busca da nação (Topbooks). O baiano é raro crítico da cultura nacional além de estudioso das coisas do Brasil, portanto, intelectual atento às novidades impostas pela classe dominante para consumo das massas, além, é claro, de ser também zeloso revisionista de nossa História. Em consequência, diante do autor e da câmara, os membros do Instituto fizeram a crítica após a leitura do livro e ouvimos as respostas que você agora pode conferir no nosso canal e na TV UFSC. A experiência revelou o quanto é fecundo um debate diante do livro e do autor sem pretensão de procurar um vencedor, aquele que nos marcos das disputas eleitorais e dos chamados canais "alternativos" está em busca tanto de votos quanto "likes and views" para proveito particular. A propósito, a habilidade de Marçal na empreitada paulista foi elucidativa pois aproveitava o tempo de TV para reforçar suas redes de produção ideológica; os outros candidatos assumiram o mesmo comportamento com eficácia muito menor! Em qualquer caso, vence a classe dominante pois ninguém é capaz de superar a lógica imanente dessa estranha modalidade de "debate" em que o essencial não pode ser discutido.

Abaixo indico as três atividades que realizamos com Risério e faremos com outros tantos destinados a divulgar o debate que travamos com Antonio Risério sobre seu livro que, a despeito de diferenças aqui e acolá, eu recomendo à todos.

Seminário interno do IELA
https://www.youtube.com/watch?v=CNwoMkRiz04

Conferência aberta ao público
https://www.youtube.com/watch?v=dWoV-D5NRIs&t=6256s

Programa Pensamento Crítico
https://www.youtube.com/watch?v=r8Z7zHT_2j0&t=748s

Saludos!

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