sábado, 31 de dezembro de 2022

A união dos democratas

A questão democrática divide novamente a esquerda; é problema antigo, razão de muitas divergências e não poucos enganos. Entretanto, a hegemonia liberal a que estamos submetidos - da direita à esquerda - produziu enorme empobrecimento da reflexão teórica e da práxis política nas condições de um regime liberal burguês exaurido e em agonia. A banalização de temas cruciais é tanto consequência como causa dos enganos e desavenças no trato da questão democrática. Um exemplo notável - lamentavelmente não único - é a ligeireza com que se caracteriza atos, eventos ou circunstâncias como expressão do fascismo ou do nazismo. A denuncia constante e alarmista da ameaça fascista contra a democracia é, na verdade, expressão da incapacidade do progressismo em geral, e da esquerda liberal em particular,  em dar conta das reivindicações imediatas e históricas dos trabalhadores nos marcos da democracia restringida na realidade de um país subdesenvolvido e dependente.   

O abuso do recurso - a denuncia alarmista da "ameaça fascista" - não começou no mês passado. Em 21 de outubro de 2014 - portanto, há quase uma década - num ato de campanha em Recife, o mesmíssimo Lula comparou as críticas do tucano Aécio Neves à Dilma como expressão do "comportamento dos nazistas na segunda guerra". A declaração era óbvio exagero mas também exibição da impotência petista diante da ofensiva tucana concluída em agosto de 2016. De resto, o brado de Lula demonstrava a rachadura terminal do sistema petucano, aquela harmoniosa convivência que garantia vida mansa para a classe dominante e migalhas aos proletários.... De lá para cá, a superficialidade com que a esquerda liberal aborda a crise do regime político piorou muito. Agora mesmo, na última semana de campanha presidencial de 2022, Lula caracterizou o governo de Bolsonaro como "fascista". Não há dúvida sobre as convicções políticas de Bolsonaro, um filhote da ditadura, adepto de todo tipo de práticas típicas de regimes de terrorismo de estado e sempre disposto a qualquer atentado contra o regime liberal burguês. Entretanto, as convicções de um presidente não são suficientes para caracterizar um regime político nem sequer para garantir ações sistemáticas típicas de um governo fascista. Nas universidades, para dar apenas um exemplo, as ações do governo contra as instituições de ensino superior foram completamente insuficientes para afirmar um regime fascista. Afinal, FHC também indicou reitores não eleitos pela comunidade e os cortes orçamentários também ocorreram no governo Dilma. De resto, segundo a concepção liberal, um regime fascista teria avançado para o controle completo do parlamento, do judiciário, da imprensa mas nada disso ocorreu.

A raiz das profundas divergências sobre a questão democrática consiste, precisamente, na incapacidade da democracia restringida atender as demandas populares mesmo quando as massas exibem grau de consciência e organização muito baixos e, em consequência, escassa capacidade de reivindicação política organizada. A propósito, há muitas décadas, foi Francisco Weffort  quem afirmou categoricamente que o desafio brasileiro consistiria em "consolidar a democracia em meio da pobreza". O uspiano - então secretário geral do PT, trocou sem qualquer inibição a condição de dirigente do partido de Lula pelo cargo de ministro da cultura do primeiro governo tucano - não economizou cinismo e tampouco lucidez liberal diante da real situação das maiorias num país subdesenvolvido, sempre oscilando, segundo os economistas, entre a miséria e a indigência. Em resumo, democracia mesmo com miséria e exploração; democracia, mesmo com a corrupção do regime constitucional. A despeito do cinismo, Weffort foi incapaz de prever que seria seu ex partido - o PT - quem realizaria aquele vaticínio com enorme destreza ao produzir a maior digestão moral da pobreza de que temos notícia num regime democrático. Ao contrário, o sociólogo jamais imaginou que sua sentença então recebida com grande repulsa pela esquerda petista, se transformaria numa virtude inesperada que asseguraria mandatos sucessivos com a mesma força que multiplicaria o poder das classes dominantes.  

A democracia restringida é regime eleitoral que garantiu até agora lucros extraordinários às classes dominantes e, mais importante ainda, rendeu também um reforço decisivo de sua consciência e poder de classe. Em consequência, a capacidade de intervenção da burguesia na vida cotidiana e nas decisões de estado parece surpreender até mesmo experimentados militantes que até bem pouco tempo supunham - não sem inocência ou oportunismo - que a democracia era o terreno onde os socialistas teriam melhores condições de luta em relação aos reacionários ou conservadores. Grave erro! Com certa frequência ouço que uma democracia - mesmo miserável e sob controle completo das classes dominantes - é melhor que uma ditadura. Ora, essa afirmação é tão ridícula quanto nociva pois sempre esteve destinada à validação dos piores regimes políticos; tal como alertou Marx, "é muito fácil ser liberal a custa da Idade Média"!

Há, de fato, enorme retrocesso na reflexão sobre a questão democrática. 

Da transição à democracia restringida

Na transição da ditadura para o regime liberal burguês, no debate teórico sobre a democracia, a esquerda era convocado a responder questões candentes de um regime militar agonizante mas ainda no comando das ações (transição lenta, gradual e segura). Ademais, a oposição à ditadura estava também sob controle de liberais conservadores como Ulisses Guimarães, Tancredo Neves e, finalmente, José Sarney. Ainda assim, a existência do "polo operário" e das tensões inerentes à transição para o capitalismo dependente rentístico que apenas iniciava, permitiu muitas iniciativas as classes subalternas a despeito de seu marcado caráter economicista. Depois, num regime eleitoral consolidado, o horizonte democrático caiu sob controle dos liberais de esquerda sem interesse e capacidade para transitar em direção à uma democracia de massas

A união dos democratas

As classes dominantes, entretanto, jamais perderam o prumo; quando destituída de sua longa ditadura de classe, a burguesia inaugurou de imediato intenso reformismo contra a "constituição cidadã" aprovada em outubro de 1988 sob seu próprio domínio e condução. A esquerda liberal, mesmo dispondo de forte movimento das classes subalternas, rejeitou o horizonte do socialismo e também a luta por uma democracia de massas, adotando os bordões acadêmicos e estéreis da "democratização da democracia", a "socialização da política" e outras quinquilharias ideológicas que descansam no merecido lixo da História. Os porta-vozes da burguesia, ao contrário, proclamavam com franqueza as dificuldades da vida sem sua ditadura e, em consequência, anunciaram a boa nova: com a Constituição o país seria ingovernável. 

Um dos futuros conselheiros de Lula - o ministro da ditadura Delfim Neto - anunciou em alto e bom som no início do Plano Real (1994) que "o Plano FHC começou reconhecendo que, com a atual Constituição, o país é ingovernável" (Plano e reforma, FSP, 18/05/1994) Alguns anos mais tarde (2008), outro aliado de Lula - o ex presidente José Sarney - afirmaria sem rodeios que "foram incluídos na Constituição todas as reivindicações corporativas, tornando o país ingovernável, com um desbalanço entre seu poder e seu dever". (Constituição do país tornou o país ingovernável, Consultor Jurídico, 14/09/2008). Enquanto as classes dominantes moldavam o regime político orientado pelo mais absoluto exclusivismo burguês, a esquerda liberal, aferrada a concepção parlamentar de política, renunciava o horizonte estratégico do socialismo por considerá-lo "doutrinário" e, finalmente, incapaz de armar o seu partido (PT) para a "grande política" e os "combates reais" exigidos pelas disputas eleitorais em nome dos "interesses populares". 

A decisão estratégica apresentada como exigência pragmática, consolidou num único movimento o liberalismo de esquerda e condenou a antiga esquerda combativa a chafurdar num regime eleitoral sob domínio burguês simulando que nada estratégico estava realmente em jogo. Entretanto, a administração democrática do estado burguês possui exigências particularmente importantes na periferia capitalista latino-americana! Portanto, a ladainha atual de Lula e do petismo segundo a qual a função do novo governo é retomar o "espirito de 1988", afirmar e defender a democracia, re-constitucionalizar o país, preparar políticas públicas para atender as principais reivindicações das maiorias, etc., combina ignorância histórica com enorme dose de oportunismo necessário para garantir um papel coadjuvante na crise do regime atual.

A renuncia ao socialismo produziu um mundo onde as massas estavam reduzidas ao surrado bordão da "resistência ao neoliberalismo", portanto, sem iniciativa política real. Após 2002 - com a conquista da presidência da república - o PT pretendeu tirar leite de pedras: conceder cidadania plena nos marcos da ordem burguesa num país da periferia capitalista e contra os interesses imediatos defendidos a luz do sol pela burguesia. O resultado foi o abandono do antigo orgulho burguês da burguesia paulista de extração tucana nos dois mandatos de FHC ("enterrar a era Vargas") e a cínica  adoção da digestão moral da pobreza ("inclusão social") que finalmente caracteriza os sucessivos governos de Lula e Dilma. A classe dominante acumulou riqueza e poder durante o período democrático enquanto a classe operária - após a renuncia do socialismo por seus dirigentes - perdeu consciência, organização e, sobretudo, capacidade de intervenção na vida política.  

Assim, destituída de horizonte estratégico, a esquerda liberal atua basicamente orientada pela redução da política à moral e a defesa abstrata da democracia. Em consequência, no primeiro caso - a redução da política à moral - pretende mitigar o sofrimento e a exploração de milhões de trabalhadores por meio da apologia de políticas públicas de caráter compensatório; no fundo, logra apenas a digestão moral da pobreza responsável por esterilizar até o fundo e o fim a potência da luta pela hegemonia política. A moral, tal como afirmou Marx, "é a impotência em ação". No segundo - a defesa abstrata da democracia - joga águas no moinho da classe dominante pois, ao contrário dos tempos em que a simples evocação do valor universal da democracia tocava no nervo do regime militar agonizante agora, no interior de um regime político exaurido, termina por validar a podridão do regime político atravessado pela degradação das instituições republicanas e pela corrupção permanente da atividade parlamentar aos olhos de milhões de brasileiros. É um caminho suicida! Na prática, a esquerda liberal deixa a crítica do regime político à direita que, a despeito dos crimes cometidos pelo governo do protofascista Bolsonaro, segue na busca de uma alternativa para os "desmandos" permanentes e as "tenebrosas transações" cotidianas que produzem indignação de milhões de trabalhadores e acumulam pressão que exigirá, cedo ou tarde, para bem ou para mau, uma resposta radical.

O eleitor lulista e/ou petista, atônito e confuso, cativo de uma época em que as ilusões liberais foram adotadas como se fosse um programa potente, se pergunta sobre as razões pelas quais a direita, a despeito dos crimes cometidos e dos super lucros concedidos a classe dominante pela política ultra liberal de mister Guedes, conseguiu 58 milhões de votos e quase virou o jogo no segundo turno da última eleição presidencial. Incapaz de pensar fora do sistema em crise, a resposta invariável segue o roteiro dos sonhos dourados do ritual republicano supostamente violado por bárbaros que se recusam a aceitar "eleições limpas e democráticas". Em consequência, a lamúria denuncia o "uso da máquina estatal na eleição", as "fakenews", a ação autoritária dos capitalistas, a manipulação do sentimento religioso das igrejas evangélicas, a mídia (!), etc. A esquerda liberal admite tudo, exceto a suposição de que milhões de brasileiros - proletários superexplorados, desempregados desalentados, setores empobrecidos das classes médias assalariadas e/ou proprietárias, trabalhadores informalizados, os sem teto e também os sem terra - repudiam completamente a podridão do sistema eleitoral e não guardam ilusão alguma a respeito do "regime democrático". Essa é, portanto, a questão central! A reafirmação da fé na democracia e a simples condenação da pulsão "totalitária" existente entre nós (via ditadura ou uma modalidade qualquer de terrorismo de estado) é incapaz de disputar a hegemonia nas classes proletárias! De resto, uma vez mais no governo a partir de janeiro de 2023, a esquerda será identificada por milhões de brasileiros como a representação máxima do regime eleitoral decadente; no lado oposto, a direita, na oposição ao governo e ao regime, manterá seu discurso "anti-sistêmico". 

A união dos democratas

Nas circunstâncias atuais, até mesmo o democrata aprendiz percebe a ofensiva da direita a despeito da derrota eleitoral do protofascista. Não obstante, esses milhares de jovens - filiados ou não nos partidos da esquerda liberal - assumiram certo compromisso "militante" num período de decadência ideológica da esquerda liberal, orientados pelo sentimento de injustiça da prisão de Lula e sem a menor possibilidade de influenciar nos rumos dos partidos convertidos em meras máquinas eleitorais de relativa eficácia. Ademais, os chamados movimentos sociais se transformaram em comitês eleitorais cujo horizonte não é a transformação radical da ordem burguesa mas a mera representação parlamentar e a "conquista" de reivindicações por meio de políticas públicas do estado (municípios, estados e união). Nesse contexto, a práxis política se tornou quase estéril, pois, a adesão ao partido não forma um militante, mas um eleitor cativo; não fortalece o senso crítico, mas alimenta um moralista; não estimula a batalha iracunda da juventude, mas estimula a resignação diante das decisões do "líder"; não fomenta a rebeldia, mas potencializa a valorização moral da filantropia católica.

Ainda assim, o jovem militante percebe que a derrota do protofascista não alterou a correlação de forças e tanto sua angustia pessoal quanto seus íntimos temores não desapareceram. Na prática, antes de figurar como genuíno militante de um "partido em disputa", ele "circula" em grupos eletrônicos que lhe rouba tempo e potência. Não poucas vezes se depara com a orientação de "voltar as bases" e trabalhar junto ao povo "em territórios" como se com tal "orientação" pudesse encontrar as bases políticas para sua práxis. 

Ademais, a partir de janeiro, a repetição rebaixada das políticas sociais praticadas nos longos 14 anos de administrações petistas não podem assegurar apoio político ao governo e menos ainda sustentar legitimidade ao regime político. Num contexto de inflação e da radical mudança da legislação trabalhista, a digestão moral da pobreza praticada no passado não será capaz de criar sequer apoio eleitoral que a esquerda cativa da concepção parlamentar de política tanto preza. Afinal, quem pode assegurar vida digna adotando o critério do Banco Mundial segundo o qual um trabalhador deixa a linha de miséria se receber qualquer valor acima dos U$ 2,15 dólares diários?

A luta pela democracia no interior de uma república burguesa exige, portanto, a afirmação da perspectiva de classe e do socialismo! A renuncia do socialismo deixou o terreno da disputa político-ideológica completamente livre para o liberalismo de direita pois as "mediações" pretendidas pela esquerda liberal na perspectiva de mitigar os efeitos mais nocivos do que denominam "neoliberalismo" foi incapaz de bloquear a aprofundamento da dependência; foi igualmente incapaz de fortalecer o estado para cumprir tarefas num hipotético projeto (neo)desenvolvimentista. 

Aos que ainda se aferram a busca permanente do consenso com a classe dominante nos marcos da política de "resistência" - portanto, sem horizonte estratégico - basta  observar o desastroso resultado do lento e eficaz controle que a burguesia exerce sobre funções decisivas do Estado. Nos anos de FHC, a fração financeira incrementou com força a campanha pela independência do Banco Central; nos governos petistas, a famosa "autonomia operacional" garantiu suculentos dividendos a todas as frações do capital durante longos 14 anos como se fosse, de fato, sabedoria e astúcia das "mediações políticas". Finalmente, em fevereiro de 2021, durante o governo do protofascista Bolsonaro, o parlamento concedeu as garantias constitucionais necessárias para o pleno exercício da hegemonia da fração financeira no interior da coesão burguesa capaz de enfrentar qualquer governo nos marcos do regime vigente. Ora, esse é um caso exemplar de convicção burguesa e atuação estratégica que não encontra paralelo na esquerda liberal! 

A análise da situação atual não poderia ser mais adversa para o povo sob condução da esquerda liberal. Na prática, orientada por um liberalismo republicano que existe apenas na cabeça de seus "dirigentes", a esquerda liberal não somente busca a conciliação de classe em todas suas ações mas, ao contrário do que alguns julgam, não faz menos do que fortalecer a direita na exata medida em que não afirma as ações militantes necessárias para constituir um força proletária-popular no lado oposto a completa hegemonia da burguesia. A coligação partidária organizada por Lula é um arremedo de "frente ampla", incapaz de conquistar graus de organicidade necessários para constituir um contra peso no interior da hegemonia burguesa. Eis a razão do caráter conservador do terceiro mandato de Lula na presidência e também o álibi implícito na denuncia alarmista do perigo ou ameaça "neofascista" como exigência para soldar fidelidades partidárias azeitadas com postos e posições no futuro governo.  

Os militares e o regime liberal burguês

Nas condições de um país periférico na América Latina, a luta pela democracia impõe a reflexão sobre os militares. A esquerda liberal antes, durante e após seus 14 anos de governos revelou completa impotência para enfrentar a questão militar num país marcado por histórico protagonismo das forças armadas. É notória sua incapacidade de elaborar e apresentar ao povo uma doutrina militar compatível com as condições de um país dependente e subdesenvolvido numa região sob controle estratégico dos Estados Unidos. A contrário do que alguns liberais progressistas sustentam - tardiamente, é claro! - não se trata apenas de propor uma doutrina militar compatível com a democracia. Não basta! É preciso uma doutrina militar como instrumento de soberania nacional capaz de ganhar margens crescentes de autonomia diante do imperialismo estadunidense com hegemonia reforçada nas ultimas décadas. 

A omissão da esquerda liberal no governo diante da clara espionagem da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos na correspondência eletrônica da ex-presidente Dilma (o organismo grampeou 29 telefones de membros do governo e inclusive do avião presidencial) revelou a prostração completa do petismo à Washington quando teria o mundo a seu favor para enfrentar a potência imperialista e, de quebra, expor a submissão e/ou impotência dos militares brasileiros diante de semelhante violação de nossa soberania. Não foi o único caso de submissão política de caráter estratégico da esquerda liberal pois o mesmíssimo Lula foi o responsável pela promoção de um acordo de cooperação no apagar das luzes de seu governo (12  de abril de 2010) mais tarde  promulgado pela presidente Dilma (18 de dezembro de 2015) via o decreto número 8.069. Quando Bolsonaro anunciou em dezembro de 2021 o inicio de exercício militares bilaterais em Lorena, recordou que a presença de tropas estadunidenses em território nacional por primeira vez, era produto dos acordos assinados pelos governos petistas razão pela qual não restou à esquerda liberal o silêncio cumplice sobre esse terrível precedente.

https://nildouriques.blogspot.com/2021/12/as-tropas-estadunidenses-no-brasil_1.html?spref=tw

O acordo assinado por Lula, regulamentado por Dilma e praticado por Bolsonaro prevê exercícios até 2028 e são destinados - segundo o Maj.Gen. William L. Thigpen - a atuar em caso de "crises humanitárias e desastres naturais".  Acaso, o Brasil não possui recursos para enfrentar com as próprias forças "crises humanitárias e desastres naturais"? Acaso a China ou a Rússia permitiria algo semelhante? Cuba ou Venezuela assinariam semelhante acordo?

(https://www.southcom.mil/MEDIA/NEWS-ARTICLES/Article/2865017/bilateral-military-exercise-southern-vanguard-22-begins-in-brazil/)

A prostração diante da potência imperialista é completa e expressa a hegemonia pró-imperialista que comanda as Forças Armadas, responsável pela formação de centenas de oficiais sob o controle ideológico, político e operacional do Comando Sul dos Estados Unidos.  

A união dos democratas

Portanto, nesse início de governo, o desafio não se limita - como desejam setores de esquerda - a necessidade de passar à reserva dezenas de generais comprometidos com o governo Bolsonaro. A situação chegou a tal ponto que medidas dessa natureza - ainda que possam ser tomadas - são incapazes de tocar no controle político, ideológico e estratégico do Comando Sul dos Estados Unidos no interior das Forças Armadas. A renovação imediata e de larga escala do atual comando militar, a aplicação zelosa do regimento em relação a eventuais indisciplinas, a nomeação de um civil para o cargo de ministro, a investigação criteriosa sobre a corrupção nas filas militares, a revogação de vantagens salariais e de carreira inaceitáveis e a investigação dos crimes cometidos por militares no governo do protofascista, entre tantas outras medidas, podem e devem ser tomadas mas ainda assim não tocam no horizonte estratégico.

Há poucas semanas o futuro ministro da Defesa, o ex-deputado José Múcio, concedeu longa entrevista à Globo deixando claro a natureza do problema. Quando ainda existiam apenas rumores de sua nomeação, ninguém menos do que Hamilton Mourão - vice presidente e senador eleito pelo Rio Grande do Sul - afirmou ter "muito apreço e respeito pelo ministro Múcio, com quem tive excelente relação quando ele estava no TCU. Julgo que será um nome positivo para o cargo" (Correio Brasiliense, 29/11/2022). Agora, como ministro indicado, Múcio anunciou que atuará animado pelo espirito da conciliação e buscará a "despolitização das forças armadas". Na prática, quando Lula decide pela nomeação dos novos comandantes baseado no critério de antiguidade, ajoelha diante dos militares que, segundo o novo ministro, constitui a forma de progressão "mais tradicional possível, sem invenção de ninguém" e possui também a virtude de ser "a regra que a Marinha gosta, que o Exército gosta, que a Aeronáutica gosta". Portanto, a hegemonia no comando das forças armadas segue intocável e o futuro se anuncia sombrio.

A imprensa burguesa apresenta ideologicamente o futuro ministro Múcio quase como um sábio, expressão de sabedoria e habilidade política conquistada em larga carreira quando, na verdade, não passa de um político vulgar a serviço das piores práticas existentes entre os militares e incapaz de disputar a hegemonia ultra liberal a serviço dos interesses estratégicos dos Estados Unidos no Brasil. A cúpula militar sabe que a linha anunciada - a "despolitização das forças armadas" - sequer poderá roçar os interesses consolidados no interior das três forças. Na prática, apenas expressa a tese inocente do liberalismo de esquerda segundo a qual os militares devem "voltar à caserna", deixando milhares de cargos que atualmente ocupam em todos os escalões da administração direta e indireta. Ora, nada poderia ser mais perigoso: os militares não deixarão a vida política mesmo que sejam removidos de todos os cargos que rendem remunerações exorbitantes a alta cúpula militar e suas famílias. A suposição que os militares devem voltar à caserna, assumir o espirito de uma república burguesa tal como existe nos Estados Unidos ou na França e, de quebra, renunciar a ambições de poder simplesmente não corresponde a realidade de um país dependente sob a hegemonia completa da potência imperialista.

O protagonismo histórico dos militares na vida política nacional é próprio das condições particulares da dominação burguesa na periferia capitalista. Ao contrário da falta de consciência e capacidade dirigente que sociólogos desavisados atribuem as classes dominantes - incapaz de reproduzir a via clássica do desenvolvimento capitalista - o recurso a ditadura é um dispositivo próprio da capacidade "dirigente" da burguesia. É, pois, produto de sua consciência de classe e não de sua ausência. 

No interior das forças armadas, o fenômeno aparece de forma diferente pois é notória desconfiança que as três forças - especialmente o exército - mantém em relação às "elites", a despeito da concepção ultra liberal dominante no seu interior defendida abertamente por generais como Mourão, Vilas Boas, Braga, Heleno, etc. A doutrina militar e a respectiva formação política da cúpula das três forças - especialmente acentuada no exército - não poupa críticas à "elite brasileira" diante da "imperfeição" do estado, da economia, da administração pública e das instituições políticas típicas de um pais subdesenvolvido e dependente. No entanto, também é parte constitutiva de sua doutrina a desconfiança ainda maior que os militares nutrem sobre a capacidade de nosso povo se autogovernar como se estivéssemos condenados a uma espécie de infância permanente, indefesos diante das manipulações de lideranças populistas e demagógicas que exigem a vigilância e proteção permanente das três armas sem as quais o destino do país e a segurança hemisférica sob controle dos Estados Unidos estariam severamente ameaçadas.

Em consequência, os militares não voltarão à caserna porque desde a proclamação da república constituem uma força política decisiva no país. A eleição de Hamilton Mourão e Eduardo Pazuello revelam o quanto avançou o ativismo político da alta cúpula militar, de resto já exibida com a atuação parlamentar do Major Vitor Hugo e o general Eliéser Girão, entre outros. A dificuldade em reconhecer esse dado elementar da evolução política do Brasil é produto da ingenuidade com que a esquerda liberal entende a democracia nas condições de um país dependente e subdesenvolvido além, é claro, da filiação cada dia mais arraigada à concepção parlamentar de política. Em consequência, a esquerda liberal manifesta apenas desejos em relação aos militares e assiste evolução da crise sem capacidade de influenciar sequer marginalmente nos rumos do governo petucano, sabidamente um produto da "frente ampla" sem o selo da antiga esquerda. 

Não surpreende, pois, que nos últimos dias alguns de seus representantes, orientados por duas moléculas de honestidade intelectual e realismo político, manifestem publicamente desejos e decepções diante da linha adotada por Lula sem, contudo, nenhuma capacidade de influenciar nas decisões do presidente eleito. De resto, a ignorância pedestre sobre o protagonismo histórico dos militares na política nacional, produz apelos ao "patriotismo" das forças armadas ou postula a necessidade de "neutralidade" das armas como se tal propósito fosse realmente possível nas condições de uma sociedade organizada pelo ódio da classe dominante às classes populares, responsável, finalmente, pelo abismo social que caracteriza a existência da maioria do povo brasileiro. Portanto, tanto o brado da "volta a caserna" quanto o apelo a "neutralidade" ou a "despolitização", expressam a posição de completa impotência diante da hegemonia militar sob controle dos Estados Unidos e deixam intocável a doutrina militar que garante lucros extraordinários as classes dominantes enquanto perpetuam a miséria e exploração de nosso povo. 

Nas circunstâncias atuais, essa ideologia - a despolitização das forças armadas - é apresentada como se realmente fosse um antídoto eficaz contra o "autoritarismo". Entretanto, não passa de linha ingênua e oportunista, necessária para descartar a exigência social e histórica de uma nova doutrina militar capaz de oferecer uma alternativa real ao controle estratégico que o imperialismo estadunidense exerce no maior país da América Latina. Essa é uma obrigação do presidente da república garantida pela constituição e por realismo político elementar que todos os governos petistas renunciaram a luz do dia! Ora, até mesmo a constituição de 1988, elaborada sob os escombros da ditadura mas ainda orientada pela oposição liberal (monitorada por Washington e tutelada pela cúpula militar da ditadura), assinalou uma linha de intervenção jamais levada a sério por Lula ou Dilma: 

A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

Em termos históricos - perspectiva que a esquerda liberal ignora por completo mas os militares não - a América Latina oscila entre dois polos: o pan-americanismo e o bolivarianismo. O primeiro é fruto da constituição e expansão do imperialismo estadunidense representado pelo brado monroísta da "América para os americanos" anunciado por James Monroe em dezembro de 1823. O segundo, emana diretamente da luta de Simón Bolívar na longa guerra da independência contra o império espanhol e na constituição da Pátria Grande, um conceito estratégico que segue olimpicamente ignorado pela esquerda liberal ou utilizado apenas como peça de propaganda sem conexão com ações de governo. 

A esquerda despreza, mas a classe dominante não! A intensa agitação realizada pela direita nos últimos anos contra o fantasma bolivariano na forma de ataques sucessivos à Venezuela representa uma operação ideológica de largo alcance e, devemos reconhecer, totalmente exitosa. A direita - ao contrário da filiação europeia e estadunidense que comanda a cabeça da esquerda liberal - sabe quem é o inimigo de fato e foi muito hábil em traduzir até mesmo no terreno eleitoral essa disputa ("o Brasil vai virar uma Venezuela"). A direita e a hegemonia no interior das forças armadas possuem consciência história e horizonte estratégico que, definitivamente, falta a esquerda liberal. Ao reivindicar James Monroe contra Simon Bolívar, a direita assinala os limites da política para manter o Brasil como um gigantes com pés de barro, incapaz de cumprir qualquer protagonismo nos problemas mundiais, figurando tão somente como animador de auditório de uma "agenda" que nenhuma potência (EUA e China, por exemplo) leva a sério (meio ambiente, segurança global, etc) 

O esquecido embaixador Oliveira Lima escreveu sobre os perigos do panamericanismo e a importância da alternativa bolivariana no distante 1907 quando ainda não existiam nem Hugo Chávez, nem Maduro. Inútil o esforço do diplomata. Não devemos desprezar o poder da ideologia, pois mesmos homens cultos como Araripe Junior, não ruborizaram em afirmar no início do século passado que a doutrina Monroe era tanto inevitável quanto benéfica pois representaria o "primeiro sintoma de que o sentimento da autonomia americana se incorporava a evoluta do progresso", um capítulo da história do progresso "extra-europeu". 

Portanto, não falta apenas perspectiva histórica a esquerda liberal cativa de Lula; falta-lhe também, o mínimo de senso prático na atuação política para além de seus interesses pessoais imediatos. As primeiras decisões de Lula/Alckmin constituem - num mesmo movimento - grave renuncia à disputa no interior das forças armadas e o respeito suicida à articulação política e interesses soldados por Bolsonaro ao longo de vários anos. Não basta - definitivamente não basta! - o lamento cumplice da esquerda liberal como se o protagonismo dos militares no governo Bolsonaro fosse um resultado da falta de ajuste de contas na transição da ditadura para o regime liberal burguês em 1985! Após a impunidade absoluta aos militares naquele período, a democracia garantiu - especialmente nos governos do PT - vida longa aos interesses que agora se manifestam sem inibição. De resto, uma vez mais, sob o céu claro da democracia, é novamente Lula quem pratica a impunidade e garante privilégios aos militares que não deixarão de produzir resultados imediatos contra os interesses populares.

A coesão social dos explorados

A reivindicação abstrata da democracia realizada pelo liberalismo de esquerda oculta algo essencial: a qualidade de um regime liberal burguês repousa em sua capacidade de atender as demandas populares num país sustentado pela superexploração da força de trabalho. Portanto, a força da democracia somente pode ser asseverada diante do protesto das massas, da legitimidade do conflito social e jamais de sua capacidade de "conciliação". Nesse contexto, é indispensável analisar as transformações no direito do trabalho. As sucessivas "reformas trabalhistas" renderam a coesão burguesa um país sem leis, garantindo um paraíso terrenal à todas as frações do capital e um inferno para os trabalhadores. Informação recente indica que "entre janeiro e outubro de 2017, as varas do trabalho de todo o país tinham 2,2 milhões de ações em andamento. No mesmo período em 2019, o total de processos recuou para 1,5 milhão". Ademais, outra fonte indica que "até setembro de 2022 apenas 1.263 milhão" foram registradas, número inferior ao registrado em... 1992!! No lado aposto, os lucros se multiplicam no embalo da concentração e centralização do capital que até mesmo os aprendizes em crise podem ver nos jornalões burgueses todos os dias.

Nesse contexto, as políticas sociais exibem os limites objetivos que animam a consciência ingênua e religiosa da esquerda liberal diante da questão social num país dependente e subdesenvolvido. O abismo social que caracteriza a vida de milhões de trabalhadores encontra uma burguesia capaz de apoiar políticas públicas destinadas a mitigar o sofrimento das massas uma vez que estão, irremediavelmente, submetidas a superexploração da força de trabalho; ademais, aos requerimentos inerentes as formas rentísticas de acumulação cujo pressuposto é o assalto ao estado produziu a austeridade fiscal permanente contra o povo, razão pela qual imprimem um caráter necessariamente limitado às políticas sociais com graves consequências políticas. De um lado, produzem a digestão moral da pobreza pois não constituem via de mobilização, consciência e organização social dos trabalhadores; de outro, legitimam a dominação burguesa porque os programas sociais não tocam na propriedade e o poder das classes dominantes que passam imunes como causas da pobreza e exploração de nosso povo. 

A propósito da recente disputa entre os petistas e a senadora Simone Tebet pelo Ministério de Desenvolvimento Social revela a natureza do problema. O petismo não transformará os programas sociais numa via de mobilização dos oprimidos num processo de auto emancipação política absolutamente necessário na luta pela democracia. No entanto, abriu com energia pequena batalha no interior da formação do governo destinado a esterilizar as pretensões da senadora, estrela ascendente do feminismo nacional. Ambos sabem que o Bolsa Família (e outros instrumentos da digestão moral da pobreza) constituem poderosos mecanismos de disputa eleitoral e jamais via de conscientização do povo!  

A união dos democratas

De resto, toda a discussão sobre a PEC do orçamento representou é mecanismo decisivo na produção ideológica da "austeridade fiscal", na verdade, uma guerra de classes contra as necessidades elementares do povo. O esforço de economistas "heterodoxos" afirmando a compatibilidade entre metas fiscais e compromissos sociais revelou, a um só tempo, a potência da ideologia dominante em estabelecer os limites objetivos do investimento estatal num capitalismo de natureza rentístico e, de quebra, a disciplina política e mental dos futuros ministros e assessores filiados a "responsabilidade fiscal", a nova religião de todo aspirante a cargo público com alguma relevância na república rentísta. 

Nos dois episódios descritos acima, podemos observar o quanto a esquerda liberal assumiu como próprio a economia política da coesão burguesa e também a aceitação da prisão ideológica estabelecida pela burguesia que, ao fim e ao cabo, determinam os fundamentos intransponíveis da democracia restringida em curso após o fim da ditadura.   

Entretanto, há também outros obstáculos igualmente importantes inerentes a digestão moral da pobreza praticada pela esquerda liberal que valida a ideologia dominante sobre a miséria e exploração das maiorias. Os critérios para indicar quem são os pobres ou quem passa fome nos países da periferia latino-americana são aqueles indicados por organizações como o Banco Mundial ou a FAO, ambos sob controle dos países centrais. É produção ideológica concentrada, adotada sem reparos pela esquerda liberal e divulgada como se fosse, de fato, acesso à cidadania! Em publicação recente, o Banco Mundial anuncia que "no início da pandemia, cerca de 3 em cada 10 brasileiros eram pobres e cerca de 8% viviam na extrema pobreza. Esses percentuais não mudaram muito desde 2012 (33% e 7,4%, respectivamente), o primeiro ano para o qual há dados comparáveis" (Relatório da pobreza e equidade no Brasil, julho, 2022). Mas afinal, o que é um pobre para o Banco Mundial? Um brasileiro é considerado na linha de miséria quando recebe renda familiar per capital inferior a... US$ 1,90 por dia!!! Ora, quando recebe US$ 2,0 deixa a linha de miséria e se receber algo próximo a US$ 2,50 deixa a linha de pobreza!!!!!!!

O entusiasmo da esquerda liberal com as políticas sociais foi compartilhado pelo governo do protofascista Bolsonaro; em novembro ultimo a Casa Civil festeja o recente relatório do Banco Mundial segundo o qual o "número de pessoas vivendo abaixo da linha de extrema pobreza no País reduziu, saindo de 5,4% em 2019 para 1,9% em 2020. Em números totais, a redução foi de 11,37 milhões para 4,14 milhões de pessoas no período. Ou seja, 7,23 milhões de pessoas saíram dessa situação entre 2019 e 2020. O levantamento mostra ainda que essa redução de 3,5% da taxa brasileira foi a maior de toda a América Latina no mesmo ano." O Ministério da Cidadania do governo presidido pelo protofascista Bolsonaro defende que "as famílias em situação de extrema pobreza são aquelas que possuem renda familiar mensal per capital de até R$ 105,00 e as em situação de pobreza com renda familiar mensal per capita entre R$ 105,01 e R$ 210...".  O trágico exemplo demonstra que a defesa dos pobres praticada pela esquerda liberal seguindo a metodologia do Banco Mundial termina por validar a ideologia da classe dominante segundo a qual é possível combater a miséria a partir de políticas públicas orientadas por organismos criminosos como o Banco Mundial.

Assim podemos ver como a esquerda, outrora radical, assumiu o liberalismo e terminou validando medidas que foram mantidas por Michel Temer e também por Bolsonaro! Ora, o maior programa social da história do país - afirmação dos petistas! - foi mantido por Bolsonaro e inclusive ampliado pelo protofascista! Da mesma forma, essa é a razão pela qual a esquerda esta completamente impossibilitada de constituir uma força política, uma força social dos oprimidos, nos marcos das políticas públicas. Não o fez durante 14 anos e não fará no terceiro mandato de Lula. Portanto, a experiência histórica recente demonstra claramente que os programas sociais não logram constituir uma força social dos trabalhadores capaz de sequer iniciar uma real disputa pela hegemonia política contra o domínio absoluto da burguesia na política e ideologia. No limite, as políticas sociais podem sustentar eventuais vitórias eleitorais mas revelaram após Temer e Bolsonaro que também são úteis para governos liberais, corruptos e entreguistas da mesma forma que sustentaram 14 anos de governos petistas.

A indicação de Haddad para o ministério da Economia - um político do ultraliberal Insper - indica claramente que não haverá ruptura com a economia política que solda a coesão burguesa, garantia de super lucros a todas as frações do capital e manutenção de milhões na superexploração da força de trabalho. A imprensa "vaza" nesses dias que Lula consultou Campos Neto, o atual presidente do Banco Central - sobre a disposição do funcionário dos banqueiros para exercer um segundo mandato a frente do BC. Mais do que um lance destinado a "acalmar mercados" se trata de intima convicção do presidente eleito, a mesma que garantiu Meireles durante 8 anos sob comando de uma instituição chave para qualquer projeto político. De resto, Lula tem mantido de maneira escrupulosa a palavra empenhada com os banqueiros desde sempre, razão pela qual aqueles que buscam uma "razão tática" para seus movimentos em favor da burguesia revelam tão somente a miséria política dos partidos da esquerda liberal.

A feliz suposição de que a economia mundial poderia garantir a partir da potência hegemônica um novo período de expansão para as economias latino-americanas dá claros sinais de que as esperanças no novo rooseveltianismo de mister Biden são infundadas. As limitações são óbvias demais para seguir sendo ignoradas na suposição de que um país periférico, afundado numa divisão internacional do trabalho adversa, exportando produtos agrícolas e minerais, poderá, com base na moeda nacional, produzir as condições de um "pacto" onde todos - burgueses e proletários - possam ganhar ainda que de maneira desproporcional. Nada indica que a economia mundial poderá assegurar nova onda de expansão na esteira da qual o governo petucano teria condições para afirmar uma política progressista capaz de desmobilizar a direita na oposição sob comando de Bolsonaro. Portanto, um novo ciclo expansivo, capaz de garantir "o melhor dos mundos possíveis" para os trabalhadores num país com uma burguesia que não perde oportunidade para avançar na garantia de seus interesses, esta descartado. Nesse contexto, as políticas públicas não podem assegurar sustento social ao governo, estabilidade ao regime político e menos ainda um caminho eficaz para rivalizar com a direita na oposição. Esta, sofreu uma derrota eleitoral mas segue afirmando sua capacidade de mobilização e de iniciativa que mais cedo ou mais tarde exercerá influência decisiva via parlamento.

De resto, aferrado a economia política do rentismo iniciado pelo Plano Real, o petucanismo (Lula/Alckimin) sugere que a única saída é mesmo a reforma tributária. No essencial, o suposto oculto dessa proposta é que o Plano Real (economia política do rentismo) deu certo mas faltou sustento fiscal para ampliar programas sociais capazes de manter o controle eleitoral nas disputas presidenciais. É o melhor dos mundos possíveis pois, nessa sagrada e mágica fórmula, a coesão burguesa manteria os superlucros e os trabalhadores teriam direito as migalhas sociais. Na miserável linguagem dos economistas e politólogos, um "jogo de ganha-ganha" Ora, essa formulação não somente é omissa sobre o assalto permanente ao estado praticado pela coesão burguesa necessário à orgia dos títulos da dívida pública mas, sobretudo, constitui peça de legitimação ideológica e política do projeto dominante. Afinal, a surpreendente proposta de reforma tributária como medida necessária para manter a paz social e a democracia pretende tão somente pagar religiosamente o custo financeiro da dívida e cobrar algo mais de impostos para atender demandas da política pública destinada a reproduzir a digestão moral da pobreza... Eis o essencial do encontro entre monetaristas e keynesianos convertidos ao credo liberal.

Nesse contexto, o governo petucano de corte conservador poderá praticar políticas sociais destinadas a seguir com a digestão moral da pobreza mas jamais logrará construir as bases de uma nova hegemonia necessária para afastar a ameaça permanente da direita "golpista". Assim, com força social e manejo parlamentar, a direita manterá o governo Lula/Alckmin com rédeas curtas e sempre disposto a praticar o "consenso" necessário para assegurar o rumo da economia e da política sob controle da coesão burguesa.  

Nem mesmo a elaboração de um conjunto de programas (habitação, energia, saneamento, educação, etc) e a conclusão de milhares de obras públicas poderá mudar radicalmente a conjuntura. Ademais, a experiência demonstra inclusive o fracasso eleitoral do PT baseado em políticas sociais. Portanto, a vitória eleitoral de Lula é incapaz de avançar numa estratégia necessária ao enfrentamento da hegemonia completa do liberalismo; ao contrário, na condição de ala esquerda do liberalismo dominante, o PT, Lula e seu novo governo conservador, não fazem menos do que fortalecer a ideologia liberal.

A crise do regime 

A sabotagem permanente da natureza presidencial do regime político desde a democratização segue seu curso livre após a vitória eleitoral de Lula. De fato, o presidente eleito iniciou negociações com os demais poderes no afã de recompor o regime político com estrito apego a liturgia republicana. A harmonia e independência dos poderes ganhou alento alegórico mas é incapaz de restaurar a credibilidade pública e menos ainda a simpatia ativa das massas em relação ao regime político. Nesse contexto, o problema central não é a presença de Bolsonaro e seus seguidores na oposição; tampouco as sucessivas demonstrações que setores da direita são capazes de agir na direção de atentados e atos de terrorismo a luz do dia cujo comando ainda ignoramos. O problema central é o apego idealizado da esquerda liberal à ordem burguesa e, em consequência, seu afastamento real das necessidades objetivas das massas. Um regime atravessado pela corrupção e pela incapacidade de atender reivindicações básicas das maiorias num contexto de crise não pode assegurar a legitimidade da "democracia"! Assim, de um lado o governo da esquerda liberal não poderá recompor a credibilidade pública do sistema político e, por outro, a direita liberal segue em franca ofensiva contra a legitimidade eleitoral das eleições e a corrupção das instituições republicanas (STF e congresso nacional). É uma combinação explosiva! 

A esquerda liberal não possui proposta alguma pra renovar a crença das massas no regime político. No imediato aposta na eficiência de seu governo e na capacidade de conciliar migalhas sociais ao povo com a manutenção dos super lucros aos capitalistas. Não há dúvidas de que para conquistar tal objetivo manterá intocável a política econômica. As esperanças num novo "rooseveltianismo" comandado pelos Estados Unidos fracassou completamente sob condução do governo Biden e descartou completamente as esperanças keynesianas na periferia capitalista latino-americana . 

Na ausência de horizonte estratégico, a esquerda liberal balbucia a necessidade de uma "reforma política" ou mesmo de uma "assembleia nacional constituinte", ambas incapazes de despertar o interesse das maiorias porque não representam formas de participação real nas decisões e, ao contrário, teriam que operar no interior de um sistema político sem credibilidade pública. No passado, existiam liberais de direita que indicavam timidamente a "crise da democracia" como a causa do mal estar geral mas, agora, nas circunstâncias desse século, sem o socialismo como alternativa, os liberais estadunidenses dão o tom da conversa: a democracia estaria ameaçada pelos populistas e pelo "totalitarismo"! Assim, a ideologia do liberalismo de esquerda estadunidense prospera nas filas da esquerda liberal brasileira na defesa das virtudes imaginárias da democracia. Não é outra a razão pela qual o lixo ideológico destinado a reproduzir a hegemonia imperialista na América Latina aparece entre nós pelas página de afamados acadêmicos sem vitalidade teórica alguma e, não raro, inclusive pela contribuição "intelectual" de funcionários de estado (Steven Levitsky, Thimoty Snider, Madelaine Albright, etc). De resto, essa "inspiração teórica" é incapaz de tocar nos problemas reais da "crise da democracia" nos Estados Unidos e serve tão somente para alimentar um lobby no interior do Partido Democrata!

O liberalismo encontrou, portanto, seu limite objetivo na crise nacional. A direita liberal se apresenta sem "mediações" ao atacar a democracia em nome da liberdade; ademais, indica objetivos políticos claros, logra conquistas estratégicas no interior do Estado (Banco Central, Forças Armadas, etc), revela ativismo político intenso tanto nas disputas eleitorais quanto em atos criminosos e até mesmo terroristas cujo horizonte é a superação do atual sistema político. A despeito dos vaivéns inerentes a conjuntura, a direita liberal possui a clara intenção de constituir um movimento de massas de extração fascista, disciplinado e com capacidade de intervenção política, enquanto a esquerda liberal repete melancolicamente a fórmula e os métodos que ajudaram a criar a crise atual! Portanto, a polarização entre a "velha política" (sistema petucano) e a "nova política" inaugurada em 2018 por Bolsonaro segue ordenando cada passo das duas faces do liberalismo.   

O insistente clamor pela volta da "normalidade" política como se tivéssemos perdido algo valioso com a destituição da presidente Dilma é um artificio ideológico capaz de angariar votos mas sem qualquer possibilidade de constituir uma força política capaz de derrotar politicamente a direita liberal, criar as bases para tirar o país da crise e convocar as massas empobrecidas na fase rentística do capitalismo no Brasil para um papel protagônico na disputa em curso. O anúncio da reconstituição das conferências nacionais (saúde, educação, meio ambiente, etc) como mecanismo de participação ignora as profundas transformações ocorridas no estado, na econômica, no regime de classes e na cultura do país nos últimos anos; ademais, confina o esforço militante aos estreitos limites das política públicas necessariamente elaboradas num contexto de crise econômica mundial sem previsão de arrefecer os efeitos na periferia capitalista. De resto, as transformações operadas no desenvolvimento capitalista sob condução petucana e concluídas pelo ultra liberalismo de Temer e Bolsonaro, não podem ser superadas pelo otimismo do futuro presidente e seus ministros. 

Há algum tempo os economistas a serviço da esquerda liberal alimentam ilusões sobre a possibilidade de manter os interesses da coesão burguesa constituídos desde 1994 com garantias de programas sociais mais ou menos universais por meio de uma reforma tributária destinada a cobrar impostos dos ricos e incluir os pobres no orçamento. Não fosse ideologia barata sem sustento nos fatos (parlamento,  mídia, empresários, trabalhadores), seria apenas uma proclamação em favor dos "melhores dos mundos possíveis".  

Portanto, as políticas de inclusão social ou ações afirmativas podem salvar algumas almas do abismo social onde as maiorias estão afundadas irremediavelmente sem qualquer horizonte auto emancipatório. O discurso da esquerda liberal expressa moralismo rasteiro e não poucas vezes supõe a existência de uma vasta classe média capaz de sustentar um liberalismo de esquerda de extração estadunidense ou europeu. Ora, seus ideólogos aprendizes, entretanto, esquecem que um capitalismo classe média esta em crise nos países centrais mesmo com poderosos mecanismos de crédito e a posição privilegiada na divisão internacional do trabalho e, por essa e outras razões, jamais deixou de ser uma farsa na periferia capitalista! 

O "irracionalismo" de Bolsonaro e o caráter supostamente tosco de suas declarações e ações, ao contrário, funcionam como combustível a partir de seus brados em favor da liberdade diante da Corte, da mídia, e do "poder econômico" para as maiorias. O brado do protofascista possui aderência em função da vida dura reservada para milhões que não podem sair do abismo social. É incrível que a esquerda liberal não observe que precisamente o caráter indefinido do brado pela liberdade encabeçado pelo protofascista é capaz de amalgamar a angústia e o desespero diário de milhões de trabalhadores enquanto a esquerda liberal pratica o bom mocismo e as ações afirmativas típicas do identitarismo estadunidense incapaz de tocar no nervo da exploração e da opressão. 

O liberalismo não pode, em consequência, soldar fidelidade ao regime político mesmo com o governo conservador de Lula operando em seu favor. Ao contrário, desde as eleições de 2018 a ofensiva da direita liberal e o monopólio da crítica ao regime político que exerce de maneira aparentemente caótica - aliada a incapacidade da esquerda liberal em redimir milhões da pobreza, da exploração e da violência de classe - indica claramente que o antigo liberalismo não possui qualquer apreço por aquilo que a vertente de esquerda chama... democracia!

A vitória de Lula não alterou a correlação de forças. A iniciativa política da direita em curso desde 2016 segue seu curso normal e não há nada até agora capaz de indicar alteração significativa. A precariedade da coalização partidária que elegeu e vai governar com Lula não assinala a menor possibilidade de ganhar consistência programática (exceto no brado abstrato da democracia) que, por sua vez, desabará diante de exigências reais das classes sociais na dinâmica da crise. Bolsonaro clama pela liberdade contra a democracia e afirma o surrado bordão de profundas raízes no país (deus, pátria, família e liberdade). Aparentemente batido após a derrota eleitoral, acumulou força social e realizou experimentos políticos importantes para a direita brasileira que constituem conquistas estratégicas no futuro imediato. Nesse contexto, pouca importa se o protofascista terá vida política longa entre nós ou outro personagem qualquer assumir o posto originalmente reservado ao "mito". A direita veio pra ficar e a "volta a normalidade" é, de fato, impossível!  

A bandeira do socialismo e da Revolução Brasileira há tempos estão ausentes da disputa eleitoral e tampouco figuram no horizonte dos partidos que aspiram a condição de representantes da esquerda a altura da imensa crise que sofremos. Agora, além da concepção liberal de democracia própria do liberalismo de esquerda, nos divide também um governo. Todos aqueles que pretendem a disputa da hegemonia em algum ponto futuro, terão agora que fazer oposição ao governo petucano. Uma oposição de esquerda, mas, ao fim e ao cabo, oposição. Ou deixarão o monopólio da crítica para a direita.