sábado, 27 de agosto de 2022

Um voto sem convicção

Nas sucessivas conversas com amigos vinculados a distintos partidos é visível que o voto destinado a esquerda liberal na formula petucana Lula/Alckmin expressa muitos sentimentos e posições, mas não carrega a virtude da convicção. A afirmação resignada do voto petucano é, portanto, comum aos fieis eleitores de Lula e do PT sem o brilho e o entusiasmo de outras épocas quando o partido ainda expressava certo radicalismo político, especialmente acentuado no período final da luta contra a ditadura e inicio do regime eleitoral próprio da democracia liberal-burguesa agora ferida de morte. Na prática, com frequência eloquente, a voto resignado expressa uma sorte perversa do eclipse da razão militante. 

De minha parte não culpo e tampouco responsabilizo o antigo militante pela ausência absoluta de entusiasmo diante do processo eleitoral em curso pois, de fato, a despolitização do eleitor não foi obra do improviso ou do acaso: é resultado necessário de uma operação na cúpula do partido em longas duas décadas, realizada com esmero durante os 14 anos de governos. O empobrecimento da vida partidária da esquerda liberal - cujo epicentro ainda é o PT - é tão profunda que aquele militante que deu vida e viço ao partido que se reivindicava dos trabalhadores não foi, de fato, o agente ativo pela profunda degradação política, ideológica, programática e ética do partido ao qual ainda mantém fidelidade eleitoral. Não há aqui espaço para a inocência ou imunidade antecipada como se estivéssemos diante de uma vítima enganada pela astúcia daqueles que na atualidade simulam militância quando apenas defendem mandatos e empregos bem remunerados sem necessidade de cumprir horário em gabinetes de deputados e senadores; além, é claro, de eventual gratificação num posto ministerial qualquer em Brasília numa eventual vitória da esquerda liberal. Ninguém pode alegar inocência a despeito da desigual responsabilidade diante de decisões sucessivas que nos trouxeram para uma situação aparentemente sem saída. 

Entretanto, com inesperada paciência, eu escuto a repetição enfadonha da defesa do voto. O fantasma do "fascismo" aparece como o argumento mais forte embora não resista a 10 minutos de conversa. Na verdade, a "ameaça do fascismo" expressa temor e covardia antes que análise crítica. O exercício permanente da razão cada dia mais necessária diante da ofensiva burguesa atualmente em alta, curiosamente cede espaço para o desespero e a conduta defensiva. O voto e a escolha de um candidato "ético e combativo" opera como um salva-vidas moralizante diante da degradação da vida parlamentar inerente a podridão da república burguesa, como se fosse possível defender os espírito republicano longe do real funcionamento das instituições do estado burguês na periferia capitalista. 

O uso do horário eleitoral de rádio e TV não avança uma molécula na politização necessária de tempos alegadamente sombrios! Ao contrário, antes do necessário fomento a consciência crítica dos eleitores  (algo qualitativamente inferior a consciência crítica das massas!) a norma é a banal propaganda eleitoral como se fosse possível eleger uma bancada numerosa capaz de "impedir o pior" no futuro! O antigo militante reduzido a condição de eleitor resignado sequer é capaz de perceber que a "ameaça do fascismo" não esta produzindo o antídoto necessário para derrotar o presidente protofascista e menos ainda para "barrar o neoliberalismo" mas, ao contrário, esta operando em baixo de seu nariz uma repetição da antiga conciliação de classe que até ontem ele jurava de pés juntos não ser mais possível e inclusive nociva aos trabalhadores e ao país. A cúpula do partido e especialmente Lula em suas intervenções anuncia que o Brasil pode voltar a ser feliz como se alguma vez tivéssemos vivido num paraíso terrenal. Ainda tenho dúvidas se poderá vencer com essa linha de campanha mas não guardo a menor ilusão de que um eventual governo poderá se manter com as vulgaridades inerentes da campanha petucana. 

De outro lado, nada é tão ruim que não possa piorar. É fácil observar outra miséria colocada em circulação pelos defensores pensantes, "dirigentes" partidários e acadêmicos de diversas origens e orientações, dos discursos moralistas de Lula. Um batalhão de "analistas" e gente com passado de esquerda trata de evidenciar um programa oculto nas metáforas e declarações do ex-presidente insinuando sabedoria e alcance estratégico em cada omissão, renuncia ao conflito e principalmente alianças a direita. É espetáculo deprimente e singular de contorcionismo político e teórico destinado a dar racionalidade econômica, política e até mesmo filosófica as banalidades e ao giro à direita operado por Lula e Dilma há décadas!

De resto, o militante autêntico ainda tenta exorcizar nessa campanha os males derivados da adesão definitiva do PT a ordem burguesa figurando apenas como o "espirito crítico" da esquerda liberal. É, certamente, uma posição incomoda, mas é também estéril. Um exemplo notável desse comportamento ocorreu há poucas dias quando José Dirceu foi perguntado se o "perigo do giro ao centro" expresso na política de alianças cada dia mais a direita dirigida por Lula poderia levar a um "abrandamento programático" a ponto de colocar em risco o projeto eleitoral. O ex-ministro foi enfático ao afirmar que a pergunta era "esdrúxula" pois o "giro ao centro" o PT já realizou ao escolher Alckmin como vice e, ademais, o Brasil, órfão de rebeliões e explosões sociais, já girou ao centro há muito! Ora, a lição não poderia ser mais clara: há que levar a sério a adesão à ordem burguesa do antigo partido dos trabalhadores, pois a credibilidade nasce de sucessivas e permanentes demonstrações de confiança às classes dominantes sem garantia alguma de reciprocidade. É um exemplo notável do encontro entre razão e cinismo. O triunfo da razão cínica. É o túmulo da convicção socialista e revolucionária e o berço do voto sem convicção.