domingo, 10 de julho de 2022

O epílogo petucano

O início dos comícios da campanha de Lula/Alckmin é revelador da impotência e simulação do petucanismo. A impotência se expressa pela absoluta ausência de um programa alternativo capaz de enfrentar o poder da classe dominante naqueles temas centrais da vida nacional que afetam a vida de milhões de brasileiros e poderiam assegurar algum futuro para o país. A simulação é decorrência necessária daquela impotência pois na ausência de um programa capaz de mobilizar a maioria dos trabalhadores a partir de um projeto próprio, restou apenas o faz de conta de que a eleição abrirá as portar para “ser feliz novamente”. As diretrizes divulgadas pela burocracia partidária e seus aliados há poucas semanas (Diretrizes para o programa de reconstrução e transformação do Brasil), pretende ocultar a adesão desinibida da chapa petucana às transformações operadas na economia e no estado após os governos Temer e Bolsonaro. 

Na prática, enquanto o discurso está centrado na denuncia da fome e da miséria de milhões de brasileiros, a orientação propositadamente ambígua do texto divulgado pela Fundação Perseu Abramo pretende tão somente curvar-se diante da economia política sustentada pela coesão burguesa – comercial, agrária, industrial e financeira – balbuciando rebeldia constitucional a ser assegurada por hipotética e irreal maioria parlamentar. A insistência contra a PEC-95 (teto dos gastos), por exemplo, cumpre a função de combater um tigre de papel pois até agora a burguesia não respeitou os limites estabelecidos pela lei em função de seus próprios interesses no interior da crise capitalista mundial. O ultra liberal Paulo Guedes criou o maior déficit estatal da história recente da república aproveitando de maneira eficaz a “crise da Covid-19”. Enquanto os brasileiros saíram mais doentes e debilitados economicamente da pandemia, os bancos e as demais frações do capital saíram melhor preparadas para as turbulências financeiras desta época crítica. 

Os dois comícios recentes, estrategicamente escolhidos – Rio de Janeiro e Diadema – exibiram público modesto. Modestíssimo! O palco pretende insinuar a existência de uma enorme frente eleitoral unida contra o protofascista sem, contudo, capacidade de ocultar em cada estado da república as disputas internas e o flerte com a “neutralidade” diante da polaridade entre Lula e Bolsonaro; o fenômeno indica que a diferença em favor de Lula nas pesquisas eleitorais possui pés de barro. A campanha apenas começa, tudo é incerto. Os mais assanhados com as pesquisas seguem no bordão inocente da “vitória ainda no primeiro turno” como único meio capaz de impedir (!) a tentativa da direita em desconhecer os resultados. Ora, quando a classe dominante teve em nossa história respeito para as regras democráticas? Quando a classe dominante necessitou de “argumentos” eleitorais para avançar em sua ditadura de classe? 

Lula segue no discurso alienante, incapaz de politizar seu eleitorado; permanece cativo da economia política da coesão burguesa na vã tentativa de atrair os capitalistas para um apoio massivo pretensamente decisivo para assegurar a vitória e, no limite, governar. No entanto, a maturidade capitalista do país e a força persistente da crise não deixa margem de manobra: a burguesia não pode aceitar menos que o ultra liberalismo conduzido com eficácia por Paulo Guedes até agora: miséria para o povo e super lucros para todas as frações do capital. Nenhuma modalidade de “desenvolvimentismo” é possível, razão pela qual Lula insiste apenas em “colocar os pobres no orçamento”. Ora, ainda que de maneira inermitente, não resta à maioria do povo senão a superexploração da força de trabalho – desemprego massivo, queda nos salários, perda de poder aquisitivo – e alguma modalidade de política social a conta gotas. É precisamente o que existe agora com o protofascista mediada pela autorização parlamentar e também o que, de fato, existia nos 14 anos de governo petista a despeito de “espaço” no orçamento. 

O recurso político da chapa petucana é resultado da combinação entre a reivindicação moralista dos pobres e a defesa abstrata da democracia. No entanto, a insistência na reivindicação da questão social – a fome e o desemprego – por parte de Lula não encontra solução na política econômica nos marcos da ordem burguesa ainda mais estreitos no interior da crise capitalista. A inocência da esquerda liberal expressa nos discursos de Lula é resultado de particular mistura de oportunismo político parlamentar com ignorância sobre a dinâmica da crise e os efeitos devastadores na periferia capitalista latino-americana. Ainda assim, em meio a miséria crescente produzida por Bolsonaro, assistimos a impotência da esquerda liberal para formar um movimento de massas capaz de empolgar a disputa eleitoral e muito menos constituir sólida base para eventual governo. Não poderia ser diferente e tampouco há surpresa no reconhecimento do cenário. 

A derrota sem luta
A derrota histórica do petismo concluída em agosto de 2016 com a destituição sem luta de Dilma da presidência da república, cobra seu preço de maneira implacável. A direção do PT – entregue a burocratas e parlamentares – pretendeu, sem êxito, transformar uma derrota histórica num breve acidente de percurso de extração eleitoral sob a ideologia do “golpe” político parlamentar. Nada poderia ser mais superficial e imprudente, mesmo para os interesses mesquinhos da esquerda liberal. Em consequência, a linha dominante nos discursos enfadonhos dos frequentadores do palco do comício, é incapaz de rivalizar com o discurso e as ações do presidente protofascista ou alterar substancialmente a correlação de forças entre as classes sociais. 

Os “dirigentes partidários” que ocupam o palco dos primeiros comícios sequer são capazes de ampliar o horizonte determinado pelo profundo compromisso petucano com os limites objetivos da ordem burguesa e a crise da república. Em consequência, não há relação entre a “crise mais grave da história republicana” que denunciam com insistência e timidez das propostas destinadas a supera-la! 

A dupla petucana – Lula e Alckmin – esta vencida pelo tempo. Não há brilho capaz de cativar milhões de trabalhadores e menos ainda a juventude. A ausência de debate sólido nas filas da esquerda liberal e no ambiente político-cultural do país assegura, ainda que de maneira passageira, certa adesão eleitoral, mas é cronicamente incapaz de criar ou sequer contribuir na emergência de um movimento de massas como fruto da campanha. A desconfiança sobre o futuro e a capacidade do petucanismo em superar a crise e combater a “ameaça fascista” cresce com o passar da campanha. Ademais, o protofascista não entrou na dinâmica da disputa eleitoral. A inflação e o desemprego sempre são obstáculos intransponíveis para qualquer governo razão pela qual o pacote aprovado no parlamento com o único voto contrário de um tucano decadente e fora do jogo político, revela o quanto a disputa no covil de ladrões é terreno adverso para a esquerda, mesmo quando de vocação liberal. O governo da direita não está batido e ensaia movimentos importantes com repercussão eleitoral enquanto perpetua a miséria e exploração do povo da mesma forma que reproduz de maneira ampliada a dependência e o subdesenvolvimento do país. O entreguismo e o assalto ao estado é completo e avança com apoio dos monopólios da comunicação na manufaturação do consenso em favor dos interesses burgueses. 




O sistema petucano exibia certa vitalidade quando era constituído de polos opostos na luta partidária ainda que em comunhão de bens no que se referia a política externa e a economia, temas estratégicos de estado. Ainda assim, continha forte carga de simulação pois o essencial não estava disputa. Entretanto, quando Haddad e Alckmin anunciaram em 2013 – juntos! – o aumento da passagem de ônibus em 20 centavos, a explosão social comandada pelo Movimento Passe Livre revelou até mesmo aos olhos dos ingênuos e desavisados, entorpecidos pelo otimismo inerente a consciência ingênua, que algo andava muito mal. 

A vitória eleitoral de Dilma poucos meses depois foi capaz de motivar ainda mais o oportunismo político dos partidos que apoiavam o governo agonizante da ex-presidente já sob comando do banqueiro Joaquim Levy. Em fevereiro de 2013 – poucos meses antes da explosão de junho – Dilma anunciava orgulhosa que faltava “pouco para que não haja mais brasileiros mergulhados na miséria”. O embuste era tal que seu governo estava buscando os mais pobres entre os pobres para inclui-los no cadastro de uma bolsa família de... R$ 70,00. A digestão moral da miséria produzida pelos programas sociais do petismo – com a total cumplicidade dos tucanos – supunha ter vida eterna, mas caiu em junho diante de um protesto massivo produzido inicialmente pelos estudantes do Movimento Passe Livre. 

A polarização no interior do sistema petucano assumiu formas mais agressivas quando os tucanos decidiram pela destituição de Dilma e lograram êxito. No entanto, uma vez mais, atentos ao calendário eleitoral e ignorando por completo as implicações econômicas e políticas das transformações operadas sob seus governos, o petismo apostou na volta de Lula em 2018. Não cabe recordar aqui o grave erro de cálculo da cúpula petista e tampouco a estratégia “anti-sistêmica” encabeçada pelo protofascista Bolsonaro. No fundo, a direita apenas reconheceu o que já advertíamos com insistência: o esgotamento do petucanismo! Nesse contexto, as dúvidas emergentes em setores da esquerda liberal sobre a eficácia do petucanismo como estratégia eleitoral e alternativa ao governo da extrema direita são, ainda que tardias e impotentes, perfeitamente procedentes. Os setores da esquerda liberal com algum compromisso socialista são totalmente incapazes de influenciar na agenda, na estratégia eleitoral e no discurso de Lula e seu novo companheiro Geraldo. O ex-presidente busca todos os dias de maneira desinibida captar setores inteiros que não abandonam o protofascista a despeito das inclinações de voto das pesquisas eleitorais. Em cada movimento mais à direita produzido pela chapa petucana, a coesão burguesa se mantém mais cômoda para negociar com o protofascista os termos da reeleição ou mesmo em posição de força na hipótese de vitória da oposição. 

O discurso de Lula e também de Alckmim é revelador da trágica situação. A simulação se afirma pela redução da política ao voto, ao processo eleitoral. A ausência de um programa de mudanças radicais – a altura das exigências de uma crise gigantesca – antes de romper o invólucro moral do discurso petucano, o reforçou. Alckmim, muito comedido nos discursos, se limita tão somente a indicar a necessidade de defender a democracia e dar novamente a cadeira presidencial à Lula. É uma cena reveladora ver o ex-governador paulista clamando pela volta de Lula a presidência; o fator surpreendente aqui rregistrado não consiste em aceitar a impostura de hoje como se fosse uma virtude ou um “gesto de grandeza”, pois buscar uma linha de coerência em políticos vulgares somente é possível indentificando os seus interesses de classe. Nesse sentido não há nada de surpreendente na presença tucana no palco outrora petista, porque Lula possui precisamente a capacidade de jamais surpreender seus adversários ou aliados: tudo nele é conciliação, tudo é apelo moral. A despeito da disposição petista em assumir de maneira dissimulada a orientação liberal e a economia política da coesão burguesa, não há sinais de que a burguesia tenha disposição em conciliar com os trabalhadores num período de crise tão aguda. 

A derrota histórica do PT foi tomada como derrota eleitoral e, em consequência, considerada passageira. Lula e Dilma no alto escalão sabem que se trata de uma derrota histórica pois seus governos fizeram tudo o que era possível nos marcos da ordem burguesa para “erradicar a pobreza” e não foi mero exercício de cinismo da ex-presidente o bordão de sua reeleição. A nomeação de Joaquim Levy encerrou qualquer dúvida a respeito, mas o petismo deu de ombros: bola que segue, vencemos mais uma eleição... A classe dominante, no entanto, não vacilou e o sociólogo petista expressou melhor que qualquer doutrinário o fenomeno que parecia impossível no interior da sociologia uspiana: "a luta de classes voltou!" Agora Lula afirma que terá que fazer mais do que já fez e, no mesmo verso, antecipa que as condições são muito mais difíceis. Numa ponta alimenta as antigas ilusões que nos trouxeram ao caos e, na ponta oposta, afirma um dado de realidade pois a crise exigirá a administração nos marcos da ordem com mais austeridade que em épocas passadas. 


A campanha aumenta a perplexidade da base eleitoral – não militante – e produz ilusões tão poderosas quanto aquelas que animaram o segundo mandato do petista quando anunciava o Brasil como sexto PIB mundial sugerindo a superação da condição de país subdesenvolvido. Contudo, a característica mais elementar da disputa atual consiste no fato de que a esquerda liberal não possui um projeto de poder. Ora, sem o horizonte estratégico da revolução social, da revolução brasileira, a oposição liberal seguirá cativa da instabilidade inerente aos governos latino-americanos sem jamais conquistar o paraíso democrático ao qual juram fidelidade. Aqui e nos demais países latinoamericanos, é cada dia mais evidente que sem projeto de poder, a esquerda liberal tampouco poderá assegurar exito e estabilidade de um futuro governo. Entretanto, o bordão preferido da coalisão partidária presente nos comícios segue fundamentado na tarefa que julgam suficiente: derrotar Bolsonaro. 

O eleitor ingênuo e o militante exaurido na prática partidária comandada por mandatos, sente que é pouco, mas, de maneira “realista”, concede sabedoria ao ex-presidente: “o que mais ele poderia fazer diante das circunstâncias atuais?” A campanha do protofascista ainda não apareceu na plenitude. É claro, no entanto, que não poderá ser muito diferente de uma receita que combinará a denuncia ideológica (do comunismo), o apelo moralista (contra a corrupção) e a fé nas teses liberais (ultraliberalismo). E claro: reforço do liberalismo conservador nos costumes! Resta saber se o protofascista seguirá no ataque aos pilares liberais da república e se aproveitará a campanha para fortalecer em seu favor uma saída mais a direita já na campanha. No entanto, a simulação "anti-sistêmica" de sua candidatura não esgotou todas suas energias, especialmente quando a “velha política” aparece na forma pura do petucanismo agora unificado com a chapa Lula/Alckmin. 

A crise é profunda e, sabemos, não pode ser superada nos marcos da ordem. Ainda assim, uma campanha destinada a romper o ideário liberal atualmente sob comando da ultra direita, poderia salvar o processo eleitoral da alienaçao completa ao alargar o horizonte da disputa eleitoral em favor dos oprimidos e explorados. Não é o que estamos vendo. A direita, ao contrário, não perderá oportunidade para afirmar a ideologia liberal que, sem um adversário à altura, seguirá ditando os limites da disputa orientada pelo felino interesse da classe dominante e sua coesão burguesa. A esquerda liberal segue desarmada para esse combate decisivo.