quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

O grito de Lula

A renuncia do presidencialismo é a nota dominante na atuação de Lula no terceiro mandato. Nos dois anteriores (2003-2010) o atual presidente sabotou diariamente as prerrogativas do regime presidencial brasileiro e, em consequência, cavou o abismo sob seus pés. A continuidade da podridão do sistema político produzido por FHC com a farsa do "presidencialismo de coalisão" seguiu seu curso normal azeitado pelo "financiamento não declarado" das campanhas eleitorais do longo período petista. O postulado vulgar segundo a qual "ninguém governa esse país sem o PMDB" ou "sem maioria no congresso" aprofundou a miséria ético-moral do PT, revelou-se uma falácia completa diante da desmoralizante destituição de Dilma em 2016 e contribuiu notavelmente com a podridão do sistema político acusado pelo protofascista Bolsonaro em 2018.

A impotência de Lula e dos lulistas diante da grave situação nacional é expressa na enorme quantidade de ministérios criados com a pretensão de ganhar apoio no parlamento, sabidamente um covil de ladrões insaciável e sempre disposto a novos assaltos; ao contrário do engodo petista, o toma lá da cá se realiza sem qualquer garantia de fidelidade. A conduta de Lula alimenta a crise e objetivamente bloqueia a necessária passagem da consciência ingênua para a consciência crítica indispensável para enfrentar a direita. Ao contrário do que pensam os eternos defensores da prudência, a atuação de Lula alimenta tão somente a redução da política à moral (a via filantrópica das chamadas políticas sociais) e move águas para o moinho da ofensiva da direita ainda em curso.

O recente grito de Lula contra as elevadas taxas de juros é exemplar a respeito da conduta vacilante do presidente petista diante de questões cruciais. A despeito da hiper valorização ideológica do papel do Banco Central, a verdade é que o comando da política econômica esta nas mãos do Ministério da Fazenda e, portanto, nas mãos de Lula. Essa é a verdade oculta no "combate" contra a suposta sabotagem do BC ao bem estar do povo sob comando de um eleitor de Bolsonaro. 

Portanto, o grito de Lula - antes de iniciativa contra os banqueiros e as escorchantes taxas de juros! - exibe a impotência completa e a vacilação que é a antiga conselheira do presidente e marca registrada de seu governo. A reclamação de Lula contra a taxa de juros é impotente e não cria um fato político como defende com inocência os "radicais" da esquerda liberal lulista (dentro e fora do PT). Há poucos dias ouvi mais um novo esforço para santificar a impotência presidencial e justificar a imobilidade de seu governo nas questões estruturais, as únicas que podem, finalmente, assegurar uma molécula de estabilidade no interior da atual crise ainda sem solução visível. A nova tirada da sociologia de boteco ensina que "Lula é o personagem mais a esquerda de seu governo" (!!) Ora, qual a racionalidade da boa nova? É simples: os ideólogos lulistas na mais completa solidão esquecem que é o próprio Lula quem nomeia "a direita" de seu governo. Afinal, quem nomeou, por exemplo, Camilo Santana, responsável pela completa direitização do MEC na política educacional? Acaso foi o espirito santo ou a caneta do presidente? É realmente impressionante ouvir asneiras desse quilate nas atuais circunstâncias!

A defesa do crescimento econômico - com emprego e distribuição de renda - é o argumento central de Lula diante das elevadas taxas de juros. É também dos desenvolvimentistas. Nenhum deles, no entanto, pode explicar porquê a concentração da renda e da propriedade cresceu nos dois primeiros mandatos do atual presidente. Ora, políticas sociais não necessariamente tocam na riqueza acumulada e podem inclusive caminhar par e passo com nível superior de concentração e centralização do capital. De fato, foi o que ocorreu entre 2003-2010 quanto a taxa de juros caiu de pouco mais de 26% em janeiro de 2003 para apenas um dígito (9,25%) em meados de 2009. Ainda assim, não somente a riqueza ficou mais concentrada como a coesão burguesa sob comando da fração financeira ficou muito mais forte! Durante o período de bonança de Lula, todas as contradições e antagonismos próprios do desenvolvimento capitalista dependente rentístico estavam se desenvolvendo para, mais tarde, explodir nas mãos de Dilma Rousseff.

Até agora, Lula não disse como produzir crescimento e distribuição de renda. Nem Haddad. Ao contrário, a chamada "agenda econômica" segue a partitura dos "neoliberais" e nem mesmo em sonhos dourados os keynesianos amigos do Príncipe estão dispostos a romper com as amarras da economia política rentista armada em 1994 e desenvolvida a pleno vapor durante os sucessivos governos petistas. A ladainha segue intacta: reforma tributária, sustentabilidade ou ancora fiscal, a importância do investimento externo com preocupações ambientais, etc... Não há - nem poderá existir - uma estratégia de industrialização sem a completa ruptura com a economia política do rentismo, pois Lula opera sempre na fronteira do permitido pela coesão burguesa sem jamais romper seus limites. Enquanto isso, o tempo passa...

O "debate" atual sobre a política monetária dirigida pelo BC ilustra como nenhum outro tema a renuncia dos poderes presidenciais praticado sistematicamente por Lula. A terceirização da responsabilidade é vicio suicida adquirido por Lula há tempos: "o congresso precisa autorizar!". "Ah, a imprensa precisa mudar!!" "O fascismo precisa ser enfrentado"... Ah, Bolsonaro!!! Todos bordões que antes de mobilizar são confissões de impotência!

A situação atual permite - eu diria que exige - uma simples convocatória do presidente: antes de gritar contra os juros deveria pedir a troca do presidente do Banco Central. Ousadia: Nada! Ação bem elementar. Elementar eu disse, não parlamentar!

Quais as razões para pedir a cabeça de mister Campos Neto? 

A primeira razão para a substituição do atual presidente do BC é a absoluta falta de condições éticas e morais do Mister Campos Neto. Em outubro de 2019 o Pandora Papers revelou que mister Guedes e seu discípulo Campos Neto mantinham contas bancárias no exterior. No dia 4 de outubro de 2019 mister Campos Neto se "defendeu" da gravíssima revelação afirmando que tudo estava declarado no Imposto de Renda ocultando a questão efetivamente central: um presidente do BC mantém informação privilegiada incompatível com suas operações de "mercado". Nos Estados Unidos - o país que oferece a régua ético-moral dos rentistas - Richard Clarida (um dos vice-presidentes do FED) teve que anunciar sua precoce renuncia em janeiro de 2022 após suspeitas gravíssimas de movimentação financeira baseadas em informação privilegiada. 

Há algo mais valioso que emergiu na primeira semana de fevereiro de 2023. O ministro Gilmar Mendes do STF colocou sobre a mesa de mister Campos Neto outro tema tão antigo quanto espinhoso: a compra e venda de ouro realizada pelo Banco Central. As denuncias na imprensa burguesa sobre a extração ilegal de ouro são antigas e há muito mereciam uma explicação oficial. No entanto, a cobertura jornalística sobre o tema enfocou apenas a perspectiva da ilegalidade da extração do mineral e a íntima relação com a invasão das terras indígenas liberadas na pratica pelo governo do protofascista Bolsonaro. O enfoque, digamos assim, era "ambiental" ou "ecológico". Na verdade, ninguém se atreveu em indicar a íntima relação entre a crise humanitária dos Yanomamis com o Banco Central, exceto de maneira super cautelosa. A CNN, por exemplo, noticiou há mais de um ano (14/08/21) a inusitada elevação das reservas em ouro como assunto estritamente econômico, sem qualquer outra conexão, uma espécie de operação destinada a aumentar as reservas de valor necessárias para tempos de crise.

Entretanto. a enorme oferta de ouro deve ser explicada e, de fato, é impossível faze-lo sem a liberalização promovida pelo governo de Dilma Rousseff na Lei 12.844 de 19 de julho de 2013. No artigo 39, parágrafo 4, a liberalização petista abre as portas para a legalização do ilegal pois estabelece a "boa-fé" da pessoa jurídica responsável pelas informações sobre a origem do ouro. A lei representa, na prática, a validação de um atestado de boa conduta emitido pelo escritório dos próprios criminosos! 

Após o grito de Lula contras as taxas de juros, a imprensa petista - orwellianamente chamada de "independente" - foi autorizada a atacar mister Campos Neto e relacionar os dois temas. Desde então, a nova abordagem jornalística vincula o aumento das reservas em ouro do BC com a invasão das terras indígenas e a mineração ilegal praticada em larga escala desde muitos anos. Na tradição petista, Lula manteve silencio completo sobre o tema e, para manter a harmonia entre os poderes, delegou a tarefa ao Partido Verde. Assim entendemos a razão pela qual o STF anunciou no dia 31 de janeiro desse ano em seu portal a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) solicitada pelo PV. Em consequência, o ministro Gilmar Mendes não vacilou em solicitar a mister Campos Neto no prazo de três dias, esclarecimentos sobre as operações. Até agora, a imprensa burguesa nada disse sobre o caso e nem um ministro de Lula disse algo a respeito. Silêncio total! Ora, a terceirização do poder presidencial é mais do que óbvio também nesse caso pois Lula renuncia a possibilidade de cobrar diretamente ao presidente do BC explicações que há muito exigem esclarecimentos! A renuncia do presidencialismo custará caro... 

O lulista cativo da consciência ingênua logo dirá que a jogada do presidente foi de mestre: não se compromete com nada e deixa os poderes da república atuar contra seus inimigos. Alega, inocente, que Lula sabe se preservar e esquece que seu agir sabota a autoridade presidencial, além de fortalecer instituições que ao longo da história deram sucessivas demonstrações que não merecem respeito algum... 

A segunda razão para encaminhar a substituição de mister Campos Neto é igualmente importante. A entrevista concedida na TV Cultura dia 13 de fevereiro desautoriza intelectual e profissionalmente o rapaz. O desastre só não foi maior - e sobretudo mais visível - em função da sabedoria econômica dos jornalistas. Ainda assim - com a notável contribuição dos jornalistas - suas respostas estavam peleadas com a realidade e até mesmo com os manuais de macroeconomia sofríveis que dominam o ensino de economia nas nossas universidades. Após aquele espetáculo, não pode existir dúvidas que o "conhecimento econômico" de Campos Neto é pra lá de superficial. Ora, limitado ao "mundo" das teleconferências privadas, de convescotes com operadores dos banqueiros, acostumado as pequenas reuniões com banqueiros e rentistas de toda espécie, dedicado ao modo fácil de enriquecimento das finanças via assalto a dívida pública, a esperteza do aprendiz de feiticeiro foi impotente diante de público um pouquinho mais exigente e aberto a opinião pública. De resto, a conhecida discrição dos banqueiros praticada desde o século XII orienta também a conduta dos diretores dos bancos centrais em todos os países, especialmente na periferia latino-americana; entretanto, após os gritos de Lula, não restou ao neófito senão uma entrevista com a óbvia intenção de buscar um mais que evidente salvo conduto. 

Portanto, não devemos condenar apenas a linguagem tecnocrática do economista responsável pela irritação de muita gente boa nas mídias digitais. É mais grave o caso em análise: os "argumentos" balbuciados por Campos Neto não batem com as condições existentes no Brasil! Ele praticou apenas a visão dos rentistas em estado puro, de maneira tosca e sem habilidade alguma. Repito: o conhecimento em economia e a disciplina servil dos jornalistas o salvaram de um exposição pública realmente triste para qualquer profissional razoavelmente preocupado com a própria reputação e certo desapego com as cifras da conta bancária.

Portanto, a absoluta falta de ética (revelada no caso das contas no exterior) de Campos Neto e seu despreparo profissional - além de ausência de habilidade política que o cargo requer - são absolutamente suficientes para algo mais eficaz que os gritos de Lula: o presidente deveria determinar a seu ministro e funcionário que  detém maioria no Conselho Monetário Nacional (CNM) a solicitação ao bem afamado senado da republica burguesa, sua imediata substituição. Mas Lula prefere a condição de comentarista de TV antes de honrar seus eleitores e acumular forças para seu bando e, em oposição, prefere agir nos marcos de aliança de classe que mantém a política econômica responsável pela miséria do povo... No Conselho Lula possui maioria e poderia exigir uma justificativa do órgão para substituir mister Campos Neto, indicando claramente que sua gestão não cumpriu as metas estabelecidas, acusando as graves debilidades éticas do presidente do BC e, em consequência, solicitar a manifestação do senado.

Uma iniciativa presidencial semelhante representaria uma ação a altura do cargo e a manifestação de que o presidente recém eleito atua objetivamente em defesa dos trabalhadores. Ademais, esse ato político permitiria ao povo observar o movimento concreto da coesão burguesa e os interesses reais de cada uma de suas frações. O senado teria que decidir em favor do povo ou dos banqueiros. Até mesmo as pesquisas que embalam a alienação eleitoral da esquerda liberal indicam que 76% consideram correta a posição do presidente sobre os juros mas nem mesmo tal aprovação permitiu um passo adiante... A fidelidade de Lula a coesão burguesa e sua ilusória aliança de classe não permite o passo e, tudo indica, ele morrerá abraçado com ela.

O atual governo é desenvolvimentista? Bueno, nesse caso, as esperanças de todos os keynesianos tupiniquins deveriam saltar para a primeira fila clamando por um novo ciclo de acumulação em favor... do emprego! A maioria dos críticos heterodoxos do aprendiz Campos Neto ainda segue prisioneira dos formuladores do Plano Real e, em consequência, ainda mantém fidelidade religiosa àqueles postulados. A despeito da realidade, ainda não são conversos! Nesse contexto, a tarefa não consiste na afirmação de um novo "regime fiscal compatível com a política social", mas, ao contrário, de alinhar a política econômica com o pleno emprego!! 

Há poucos dias, na entrevista concedida a jornalista Christiane Amanpour da CNN, Lula afirmou que o informe à nação apresentado por mister Biden no congresso estadunidense poderia ter sido feito aqui. O presidente do Brasil escancarou seu entusiasmo com a perspectiva do Partido Democrata nos Estados Unidos no embalo do agringalhamento político e cultural de nosso país. Ora, Biden dourou a pílula diante da crise mundial e utiliza todos os meios existente no Império para disputar a hegemonia com a China no terreno produtivo. No entanto, é visível que seu plano não poderá repetir o "exito" rooseveltiano pretendido quando apenas iniciava seu mandato. A crise é muito grave mas ainda assim ele pode indicar que a taxa de desemprego baixou mesmo que tenha calado sobre os salários miseráveis e o aperto na classe média impossível de remediar nas circunstâncias atuais. Lula não entende o Brasil e nossa condição de país subdesenvolvido e dependente. Ignora algo elementar e seus ministros sequer sonham com nossa "especificidade", carente de medidas aparentemente muito mais radicais.  

A última reunião do CNM (16/02) entre Simone Tebet, Fernando Haddad e Campos Neto indicou um abismo entre o grito de Lula e as ações de seu governo. Aos poucos, as pequenas vantagens adquiridas com a vitória eleitoral, estão ficando para trás. Ademais, a defesa da democracia não enche a barriga do povo; tampouco gera a coesão social necessária para enfrentar e derrotar politicamente a ofensiva da direita ainda em curso. O "rentismo" não é um adversário fácil de bater, menos ainda com bravatas. É preciso ação sistemática e enérgica, além de mobilização social intensa contra as classes dominantes. Mas esses são artigos em falta no governo.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

A nova vitória parlamentar da direita

A tradição revolucionária e socialista possui fecunda reflexão sobre a atuação no parlamento. Entretanto, essa longa e rica experiência (prática e teórica) tem sido sistematicamente ignorada pela esquerda liberal e os setores progressistas, fato que demonstra a profundidade da derrota político-ideológica do que sobrou da esquerda no Brasil sob os escombros do fracasso histórico do petismo. 

Nessa semana o governo conservador de Lula/Alckmin (petucano) assegurou vitória parlamentar sem precedentes ao deputado ultra liberal Arthur Lira, aquele mesmo que garantiu ao protofascista Bolsonaro quatro anos de serena administração em favor dos interesses da coesão burguesa encabeçada pela fração financeira. A imprensa burguesa registra que "nunca antes na história desse país" um deputado logrou tamanha vitória: 20 partidos deram 464 votos ao novo presidente da câmara de deputados.  A decisão de Lula em favor de Lira revela - antes que astúcia! - a completa debilidade do governo diante dos desafios conjunturais e históricos que estamos vivendo. Na lógica das situações extremas o petismo é presa fácil dos interesses da coesão burguesa: em lugar de dirigir e manobrar os interesses da classe dominante negociando algo substancial em favor dos interesses e do protagonismo popular, o governo é dirigido pela burguesia em seus mínimos detalhes. É um governo cativo e, mais grave, sem qualquer iniciativa política.

O governo da coalisão democrática-liberal ("frente ampla") foi constituído para evitar a radicalização em curso no país, razão pela qual não se moverá à esquerda. A suposição de que Lula aprendeu uma dura lição da cadeia e agora é um político mais maduro e consistente, é uma ilusão que custará caro aos trabalhadores. Mas as ilusões sempre alimentam interesses concretos! Nas circunstâncias atuais, as ilusões obedecem aos interesses estratégicos da coesão burguesa, especialmente a súbita e enfática "defesa da democracia" por parte dos três poderes da república burguesa apodrecida em seus pilares. A degradação permanente da atividade parlamentar é a face visível da crise do atual sistema político; tão visível quanto os métodos corruptos utilizado por Lira ou Pacheco para soldar a sólida maioria que obteve com apoio decisivo do Planalto. Ninguém deveria esquecer que em julho do ano passado o senador Marco do Val declarou ter recebido nada menos do que 50 milhões para ter votado em Pacheco... Os exemplos abundam!

Em troca do apoio a Lira, o PT "garantiu" a presidência da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) considerada decisiva para controlar assuntos importantes, especialmente a destituição do presidente da república. A esquerda liberal considera que ganhou tempo (apenas 1 ano!!) na suposição de que a administração competente da crise poderá devolver aos trabalhadores emprego e renda; ademais, julga que poderá aumentar seu apoio via políticas sociais suficientes para "acumular força" capaz de balancear a disputa no covil de ladrões dirigido por Lira. A análise fria indica a ausência de qualquer garantia nessa direção; ao contrário, até agora as ações do governo exibem apenas sua debilidade política.

Quem comanda a oposição?

Na disputa no interior do covil de ladrões, a oposição de direita votou em Lira e guardou munição para se opor a Pacheco. No senado - uma casa destinada a desaparecer num regime político unicameral efetivamente popular - a tropa de Bolsonaro revelou alguma força a despeito da reeleição de Pacheco com menos votos (49) do que em sua eleição (57). O ex ministro de Bolsonaro, Rogério Marinho obteve 32 votos: não é pouco!

A candidatura de Chico Alencar (PSOL-Rede) confirmou a bancada do partido como apêndice do governo, uma conduta orientada pela intenção de afirmar a condição de principal "espírito crítico" do governo conservador petucano. O PSOL possui 13 deputados (dois justificaram ausência) e arrancou outros 10 de maneira aleatória: obteve 21 votos. O discurso de Chico foi marcado pela tentativa de "dignificar o parlamento", resgatar as virtudes republicanas e atacar a direita "golpista" de maneira genérica. De resto, a tradicional defesa do identitarismo, dos povos indígenas, do meio ambiente, a pauta que garante votos urbanos ao PSOL e acesso ao financiamento estatal do partido. 

O deputado Marcel Van Hatten do Partido Novo - a ultra direita liberal - bateu duro no governo e com apenas 3 votos levou 19 na conta final. No entanto sua candidatura tinha o claro objetivo de manter em alta a pressão ideológica que emergiu com força a partir de 2013, avançou na destituição de Dilma em 2016 e conquistou a presidência em 2018. Agora, sem qualquer possibilidade de vitória, os ultraliberais dirigiram suas baterias contra o governo exibindo o tom que a direita praticará e, em circunstancias de crise, tende a se alastrar tanto nas ruas quanto no parlamento se algo substancial não mudar na ação do governo. A direita pratica intensa luta ideológica razão pela qual tem capacidade de disputar a hegemonia política na sociedade e acumular forças para embates futuros no parlamento logo que as condições políticas permitirem. Ao contrário, a esquerda liberal - na qual o PSOL se inscreve - despreza completamente a luta ideológica em favor do socialismo e da revolução social e, em consequência, depende tão somente do êxito do governo na política econômica (emprego e salário) e nas políticas sociais de extração filantrópica, ambas de alcance super reduzido. 

O cenário é, portanto, claro: a oposição será comandada pela direita. A oposição de "esquerda" ao governo conservador de Lula/Alckmin não existirá no parlamento a despeito do enorme espaço social para tal na sociedade. No entanto, a concepção parlamentar de política que alimenta a esquerda liberal e a consciência ingênua que a informa nos assuntos essenciais da economia e do estado, não permite sua evolução numa linha de massas até agora capturada pela direita tal como demonstrou no dia 8 de janeiro.

A crise da república aparece todos os dias em eventos que confirmam o enredo já estabelecido: cada novo escândalo degrada o regime político aos olhos do povo e potencializa uma alternativa de direita. É claro que Lula/Alckmin sonham com a prisão de Bolsonaro e, para tal, depositam suas esperanças na ação do ministro Alexandre de Moraes ou de possíveis iniciativas do Ministério Público. Entretanto, a eventual prisão de Bolsonaro em função de seus "ataques ao estado democrático de direito" colocaria amplos setores sociais na oposição ao governo Lula em pé de guerra. A propósito, a desejada prisão de Bolsonaro não se assemelha em nenhum aspecto a prisão de Lula em 7 de abril de 2018. Este aposta todas as fichas na renegeração do regime liberal burguês enquanto o primeiro postula abertamente sua supressão em favor de uma modalidade qualquer de um "regime forte". Ademais, Bolsonaro é expressão da hegemonia ultra liberal no interior das forças armadas - especialmente do Exercito - razão pela qual sua prisão implica em mudanças importantes inimagináveis sob o "comando" de Lula.   

O otimismo ingênuo dos liberais de esquerda e da "direita democrática" tomam os sucessivos escândalos e "revelações" potencializados pela imprensa burguesa (Globo e CNN no comando) como se, de fato, fossem capazes de restaurar as virtudes republicanas do regime atual sem ruptura com os fundamentos do "golpismo" e da podridão: a economia política do rentísmo, a sabotagem permanente do presidencialismo via acordos parlamentares, a degradação da prática parlamentar e o ativismo do judiciário sob comando de Alexandre de Moraes. No entanto, a verdade é que o governo não possui iniciativas para romper a hegemonia da direita e segue prisioneiro do programa ultra liberal praticado por Bolsonaro/Guedes/Braga afirmando tão somente a impotente ideologia da "reconstrução nacional". 

Nesse contexto, é claro que o Informe Capelli sobre a ofensiva da direita sobre Brasília revelou apenas os limites do Ministério da Justiça diante dos militares. Na prática, nada de novo foi apresentado por Ricardo Capelli para além das suspeitas, denuncias e provas que a imprensa burguesa segue publicando em profusão. Na verdade Capelli elaborou um "informe técnico" quando o momento exigia um informe político destinado a devolver a iniciativa política ao governo e armar uma contraofensiva capaz de orientar as ações do STF e do MP. Mas Lula vetou essa possibilidade pois tal como afirmou Flávio Dino, a competência de seu ministério não avança sobre as competências de outras pastas, especialmente aquelas relativas aos ministérios militares! Portanto, o governo renunciou a oportunidade de retomar a iniciativa política diante da direita porque a linha adotada na campanha e também no governo é considerada pelos liberais de esquerda como a única possível, limitada tão somente a manter a fantasiosa "frente ampla" e a precária "defesa da democracia". Nem mesmo a ofensiva da direita logrou mudar um átomo naquela opção desastrosa e suicida!

A reeleição de Lira com firme apoio de Lula e inclusive o ridículo grito de "vitória" de parlamentares petistas após a inédita conquista do nobre deputado, multiplicou a força da direita no parlamento. Tampouco há indicações minimamente confiáveis de que o massivo apoio do governo à Lira logrou "dividir o bolsonarismo" seja lá o que essa expressão possa representar. Bolsonaro é a cabeça visível da direita e seu representante mais importante, mas não único. Ainda assim, o fantasma de Bolsonaro orienta cada passo da esquerda liberal e seu governo tão impotente quanto débil. No entanto, o protofascista nunca deixou de ser um representante da classe dominante que mantém firme as rédeas do estado e da economia e não vacilaria em joga-lo ao abismo caso o conflito político exija. 

O governo conservador petucano Lula/Alckmin mesmo diante de circunstâncias excepcionais - e oportunidades que jamais deveriam ser desperdiçadas! - revela precocemente a mais completa incapacidade para enfrentar a ofensiva da direita cujo conteúdo não é outro senão o próprio programa burguês praticado por Bolsonaro/Guedes. A mera administração "democrática" de um regime político em frangalhos e a afirmação de políticas de inclusão social de caráter filantrópico são, mais do que em outros tempos, completamente incapazes de assegurar estabilidade política ao governo e menos ainda disputar a hegemonia nas classes populares quando entramos numa lógica das situações extremas. A direita esta livre para operar. A esquerda liberal permanece prisioneira de suas ilusões.