quarta-feira, 30 de novembro de 2022

A renuncia ao presidencialismo

A conciliação de classes requer condições históricas muito particulares para sua realização. Entre nós, "conciliação de classes" virou xingamento destituído de vitalidade e tem servido tão somente para pintar a raia em conversa de boteco ou seminários acadêmicos sem importância política. No essencial, acordos com a burguesia ou suas frações, sempre produziram efeitos negativos aos trabalhadores e à luta pelo socialismo, mas admito que podem existir situações históricas tão adversas em que é preciso recuar para mais tarde retomar a ofensiva. No entanto, em semelhantes circunstâncias, a classe dominante nunca vacilou em imprimir na testa dos trabalhadores a marca da derrota; estas - as derrotas - também ensinam e é uma arte apreende-las mas, lamentavelmente, nas ultimas décadas, as forças populares ou mesmo movimentos com algum compromisso de esquerda, recusam com arrogância infantil as duras lições históricas.

O futuro governo petucano será conservador. As novas gerações de petistas e sua degeneração - o lulismo - estão sempre prontos para validar qualquer sinalização do presidente eleito e até mesmo utilizam os surrados bordões de Lula como se fossem sabedoria política. Em consequência, reproduzem o senso comum sobre temas cruciais da dominação burguesa que garante super lucros às classes dominantes e miséria, exploração e marginalidade à milhões de brasileiros.

No Brasil, a classe dominante esta soberana na cena. Nesse momento a burguesia não possui adversário de classe e, ademais, a lenta transformação da esquerda outrora radical numa esquerda liberal, garantiu não somente seus interesses econômicos imediatos mas algo também valioso: a degradação do regime político aos olhos de milhões de trabalhadores não é considerada obra dos burgueses mas, ao contrário, dos... "políticos"! A burguesia, portanto, se dá ao luxo de recusar a conciliação! Ademais, os recursos necessários para o tal Auxílio Brasil ou Bolsa Família é tanto peça de filantropia quanto de propaganda destinada a fortalecer a guerra de classes contra o povo sob o lema da austeridade fiscal.

A esquerda liberal voltará ao governo em janeiro e dezembro insinua-se eterno. A miséria do sistema numa república burguesa apodrecida em seus cimentos com a permanente corrupção do regime parlamentar permite à classe dominante - todas suas frações - jogar nas costas dos "políticos" a responsabilidade pelas demonstrações diárias de deputados e senadores expostos até o pescoço na lama da corrupção e do toma lá da cá que alimenta a disputa pela moral pública sob controle burguês. A decisão do PT, PV, PC do B e PSB em apoiar Arthur Lira será considerada pelo lulismo como consequência natural da atual correção de forças e, quem sabe, até mesmo mais um ato da sabedoria pragmática do presidente eleito. Ao contrário, não pode haver dúvidas que a decisão é resultado necessário da adesão da esquerda liberal a ordem burguesa decidida há muitos anos pela cúpula e sólida maioria no interior do PT. Portanto, não é fruto da conciliação de classe porque expressa apenas sua rendição ao sistema inclusive nas suas manifestações mais deploráveis e também constitui a sabotagem do regime presidencial como conduta suicida. A lógica é simples: segundo os sábios petucanos, temperados na estranha arte de ver o lado bom em tudo e especialistas em medir a temperatura da "correlação de forças", não existem condições para a esquerda liberal se opor a hegemonia burguesa nesse momento, razão pela qual apoia-lo e buscar aliança com o "inimigo" aparece como a única saída possível. Ato contínuo, no próximo conflito - real ou aparente - o inimigo está mais forte e as concessões serão ainda maiores. Assim, para os cardeais do petucanismo, qualquer enfrentamento constitui uma aventura e o pragmatismo rasteiro aparece como realismo político não poucas vezes coroado... com citações de Lenin!!!

A "negociação" atual entre o governo eleito e o covil de ladrões - cuja expressão mais eloquente é o apoio do PT, PV, PC do B ao deputado Arthur Lira à presidente do congresso nacional - não é "erro" como supõem deputados do PSOL ou "conciliação de classe" como insinuam alguns descontes na base petista, mas consequência necessária da completa adesão do PT a ordem burguesa decidida há muitos anos! Entretanto, mesmo escavando nessa miséria, é possível e necessário indicar algo essencial. O regime político atual é presidencialista e, nas condições da América Latina, o parlamentarismo não goza de simpatia alguma diante das massas. No Brasil, onde o espirito republicano europeu tem prestígio entre os letrados, o parlamentarismo foi derrotado pelo voto das massas duas vezes! Os trabalhadores detestam deputados e senadores e, quando não manifestam aberto ódio e repúdio aos mesmos, os nobres parlamentares tem assegurado uma boa dose de desconfiança. Eu creio que se trata de um signo de saúde mental e política do nosso povo que, a despeito do intenso controle ideológico e político, ainda consegue ver mesmo quando os óculos estão embaçados... A verdade é que a forma parlamentar de representação não goza de prestígio entre as massas.

Um obscuro sociólogo de extração tucana (Sérgio Abranches) criou a expressão "presidencialismo de coalizão" como se fosse possível salvar o regime político com uma sacada sociológica. Os tucanos sob a batuta do uspiano FHC anunciou a novidade e promoveram o ilustre desconhecido como produto ideológico necessário a manobra conciliatória que garantiu o assalto ao estado via privatizações e as revisões constitucionais necessárias ao processo de acumulação em via rápida para o capitalismo dependente rentístico. Na oposição, o petismo balbuciava radicalismo até que em 2002 revelou seu conteúdo: mero apetite eleitoral. No governo, Lula e Dilma, completamente convertidos a economia política do capitalismo dependente rentístico, se lambuzaram com o presidencialismo de coalização legitimado pelo "combate ao neoliberalismo" e sustentado pela filantropia implícita nas "politicas sociais" destinadas a atender os mais pobres entre os pobres.

No mesmo compasso, o regime político apodrecia aos olhos das massas e das classes médias sob impulso silencioso de uma oposição que o petucanismo jamais imaginaria. Entretanto, os alertas foram contundentes como pode ser visto nas jornadas de junho de 2013 quando o protesto popular das massas ao aumento de passagem em SP explodiu contra Haddad e Alckmin. Mais tarde, a destituição sem luta de Dilma e finalmente a derrota acachapante de 2018 exibiu a real situação política do país. O petismo, mesmo sob impacto de golpes não mudou e, agora, repete o roteiro sem os constrangimentos morais do passado alegando a "correlação de forças" adversa. Nessa cômoda versão não se trata apenas de combater o "neoliberalismo", pois temos pela frente um duro combate contra o "fascismo", neofascismo ou simplesmente a ameaça de fascismo...

Nesse contexto, o apoio a Lira por parte do petucanismo comandando por Lula/Alckmin é pra lá de compreensível ainda que o militante lulista afirme de pés juntos mero resultado da correlação de forças adversa e jamais produto da conversão do petismo à ordem burguesa. A conciliação de classe é uma arte de difícil realização quando dirigida a objetivos claros da conquista do poder mas é um desastre quando assume a forma de rendição política. A verdade é que os trabalhadores, a despeito do voto, não apoiam a operação e repudiam as manobras parlamentares da esquerda liberal com a direita no covil de ladrões.  

Nas atuais circunstâncias a burguesia não precisa conciliar absolutamente nada pois comanda a cena soberana dado o desarme ideológico e político da esquerda liberal diante do povo. Uma época fecha seu ciclo para sempre, ainda que na agonia das horas possa simular alguma vitalidade. O roteiro atual, portanto, nada garante ao governo petucano e menos ainda ao povo. A miserável PEC da Transição - 198 bilhões é farelo diante da dança dos trilhões - corresponde a manutenção da filantropia da esquerda liberal mantida por Temer e também pelo protofascista Bolsonaro mas é absolutamente insuficiente para consolidar uma coesão social de milhões de brasileiros desamparados e sem representação política real. Ademais, essa massa de trabalhadores submetidos a superexploração da força de trabalho não possui qualquer ilusão de que poderão sair da pobreza, exceto se o critério adotado pela insensibilidade dos tecnocratas e políticos vulgares for aquele indicado pelo Banco Mundial. Afinal, quando a esquerda liberal aceita míseros 2 dólares e 15 centavos como critério para tirar um trabalhador do mapa da fome, adota também a linha moral de nossos algozes como horizonte possível e nada mais lhe resta senão a digestão moral da pobreza.

A derrota de Bolsonaro ainda é festejada pela esquerda liberal como conquista "estratégica" mas é possível perceber que mesmo os neófitos são capazes de sentir a insuficiência do resultado eleitoral diante da incapacidade manifesta em sequer roçar as questões centrais do estado e da economia que afetam a vida de milhões. Lula segue sabotando o regime presidencialista considerado pelo espirito republicano dominante um artificio perigoso para a estabilidade burguesa quando assume a forma "populista" ou "caudilhista". De fato, a necessária restauração da natureza presidencialista de nosso regime político não encontrará em Lula o personagem à altura dos dilemas inerentes a fase rentística do capitalismo dependente, mesmo quando a crise cíclica do capitalismo em escala mundial abriu inéditas possibilidades. 

A necessidade de enfrentar a direita e seu potencial fascista tampouco será obra do presidente eleito, razão pela qual, mais do que estabilidade, o futuro governo será muito provavelmente marcado por sucessivos acordos e respectivas renuncias, todas destinadas à corrosão da escassa credibilidade do sistema político. Assim, o movimento considerado uma tacada de mestre nos bastidores e avaliada como mais um passo necessário para garantir "governabilidade" por assessores e "dirigentes" partidários, é a mesmo que alimenta silenciosamente o ódio do povão à todos e a tudo. Até agora, tudo indica que a crítica ao sistema permanecerá mesmo como monopólio da direita.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

A carona do burguês

A imprensa nacional - especialmente os monopólios Globo e CNN - anunciam Lula como a grande estrela da cúpula sobre meio ambiente que se realiza no Egito. A manufaturação do consenso sobre a defesa capitalista/imperialista do meio ambiente produziu uma espécie de situação que, a primeira vista, a sobrevivência do planeta dependeria da política do governo brasileiro para a Amazônia. O presidente egípcio Abdul Fatah Khalil Al-Sisi convidou o presidente eleito para falar no evento onde os criminosos e os defensores do meio ambiente disputam cordialmente a condição de protetores do planeta. Ali, se costura uma "agenda" - na verdade uma ideologia - destinada a orientar a ação de partidos, movimentos sociais, acadêmicos e capitalistas em todo o mundo.

Ao aceitar o convite, Lula antecipou sua posse e decidiu comparecer ao encontro para anunciar a incrível "volta" do Brasil ao cenário mundial, superando a condição de "pária mundial que ninguém quer e ninguém visita". A esquerda liberal trata o tema como se, de fato, o presidente eleito aproveitaria a oportunidade para ensaiar nosso reingresso na civilização ocidental. De minha parte confesso que "a imagem do Brasil lá fora" não me comove em nada porque os olhos dos países imperialistas nunca enxergam e jamais enxergarão nossa humanidade. 

Janeiro parece distante demais para a esquerda liberal. Na prática, tudo funciona ordenado pela angústia ou ansiedade de tomar posse o mais rapidamente possível e inaugurar nossa "volta a normalidade" com as instituições funcionando em harmonia e independência, as políticas públicas produzindo milagres jamais vistos em outras paragens e, nas relações estritamente individuais, aquele seu vizinho, bolsonarista hostil, com a bandeira nacional ainda pendurada na sacada de seu apartamento, finalmente, terá sido devolvido ao lugar da impotência e resignação que o regime democrático o obriga.  

A viagem ao Egito, nessas circunstâncias, se tornou uma necessidade imperiosa, algo semelhante a viver cada minuto, cada evento, "como se não houvesse amanhã". Mas sempre haverá o amanhã...

Foi nesse contexto que Lula pegou uma carona rumo ao Egito oferecida por um conhecido empresário do setor de saúde chamado José Seripieri Filho, proprietário da QSaude. É uma empresa que possui 30 hospitais, 151 clínicas e l54 laboratórios. Ademais, o rapaz é um doador da campanha vitoriosa do presidente eleito (quase 1,2 milhão) e réu confesso de crime eleitoral com direito a prisão, acordo de delação que corre em segredo de justiça e, segundo a imprensa, ressarcimento aos cofres públicos de 200 milhões de reais. A "carona" é uma definição oferecida pelo vice presidente tucano Alckmin quem afirmou que Lula não tomou o avião emprestado mas tão somente pegou uma carona para um evento em que os dois - presidente eleito e o capitalista do setor da saúde - "vão juntos" a tal COP-27. 

A direita aproveitou o "erro" para seguir na disputa da moral pública cujo epicentro é a corrupção derivada da relação ultra parasitária entre capitalistas e o estado e na qual os governos jogam um papel central. A reação da esquerda liberal - especialmente do lulismo - foi manter o silêncio como se o episódio não existisse ou, de fato, fosse irrelevante diante da urgente tarefa de salvar a Amazônia e exibir as virtudes da "volta do Brasil ao cenário internacional".   

Lula tinha alternativas, obviamente. A primeira era solicitar que o convite do presidente egípcio viesse acompanhado de recursos para fretar um jatinho com a segurança que um futuro chefe de estado exige; afinal, não se convida um presidente eleito considerado peça decisiva na defesa mundial do meio ambiente sem a gentileza da passagem e os requisitos indispensáveis de semelhante viagem. Outra solução poderia nascer do apoio de recursos financeiros bilionários destinados ao Brasil pelos países europeus e devidamente bloqueados diante dos gravíssimos crimes ambientais promovidos pelo governo do protofascista Bolsonaro. É claro que o PT - partido do presidente - poderia simplesmente alugar um jato e enviar Lula em segurança com os recursos do fundo partidário. Finalmente, diante do fracasso das alternativas anteriores, posto que a campanha já terminou, o presidente eleito poderia simplesmente gravar um vídeo ou fazer uma participação online no evento, anunciando metas e propósitos de seu futuro governo.

A necessidade de agir como se ainda estivesse em campanha revela temores e exibe preocupações inconfessáveis pela esquerda liberal mas, ao contrário do que a ingenuidade poderia esperar, nenhum ação dirigida a corrigir "erros" do passado. A vitória eleitoral não foi e nem seria suficiente diante da podridão do sistema político inerente a crise da república burguesa. A esquerda liberal, no entanto, segue na crença segundo a qual a eleição de Lula era vital para mudar a correlação de forças, tomar um respiro e iniciar uma contraofensiva capaz de devolver a "paz social" perdida. Mas a primeira ação de Lula revela as debilidades inerentes da trama e do roteiro que o presidente eleito construiu e da qual não pretende abandonar nem por um segundo e da qual não há a menor certeza de nos tirar da crise. 

Qual, afinal, o problema de uma "carona"? 

Ora, além dos antecedentes criminais do capitalista que levou o presidente, a empresa do amigo de Lula vai se beneficiar diretamente da política pública para a saúde. A QSaúde atenderá uma promessa de campanha de Lula segundo a qual o tratamento de alta complexidade não ofertada pelo SUS será contratada junto ao setor privado onde empresas acumulam capital com a deficiência do serviço público cronicamente subfinanciado desde sempre. Não é o único setor que acumulará bilhões em nome do atendimento de necessidades do povo brasileiro. A miséria e a exploração dos trabalhadores é fonte de riqueza para os capitalistas benevolentes e contempla as pequenas ambições e o cretinismo parlamentar da esquerda liberal em nome  filantropia orwellianamente chamada de "políticas públicas". 

Após o TSE declarar Lula vitorioso, as ações dos grandes grupos capitalistas em educação tiveram altas inéditas pois é conhecida de todos a política petista de transferir bilhões de recursos públicos para os capitalistas da educação em nome da ascensão social dos miseráveis que num dia sobem pela escada e noutro, embalado pela próxima crise, desce rapidamente ao chão pelo elevador. Há poucos dias o jornalão burguês informou que as ações de empresas de educação operaram "em forte alta na B3 após o resultado das eleições presidenciais no Brasil, na medida em que o setor deve ser favorecido no governo do presidente eleito". As ações da Cogna, por exemplo, indicaram alta de 2,51%, as da Yduqs, 4,2% e as da Ânima bateram 8,59% (Valor, 31/10). No momento em que escrevo essa nota (16/11) a imprensa burguesa informa que os grupos econômicos estão ansiosos pela "ampliação do FIES" e os especialistas afirmam que o programa pode proporcionar "para Ânima, Gogna, Ser Educacional e Yduqs um aumento de 7% na receita e de 12% no lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização". Uma festa, não?!

Ora, educação e saúde num país subdesenvolvido sempre são mercadorias em qualquer governo, mas, no Brasil, a vitória do cinismo burguês transformou a miséria do povo e a promessa de mobilidade social em suculenta fonte de acumulação de capital além de fundamento material da digestão moral da pobreza. A filantropia é transformada em política pública com a mesma força e eficácia em que rendem bilhões aos capitalistas da educação e saúde que, por sua vez, não vacilam em exibir sua sensibilidade social na mesma medida em que sua conta bancária cresce. O alerta de Bernard de Mandeville - a quem Marx chamou de "bom e nobre homem" - segundo o qual as virtudes públicas nascem dos vícios privados segue ignorado pela esquerda liberal.

De minha parte reconheço a habilidade de Lula na arte de iludir mas devo adiantar que ele não mentiu sobre o conteúdo conservador de sua aliança e tampouco de seu futuro governo; ao contrário, sempre foi explícito em afirmar que "esse governo não será do PT", uma partitura, de resto, conhecida. As sucessivas declarações do eleito encontrou logo uma benevolente tradução na esquerda liberal orientada por um bordão tão antigo quanto miserável: "o governo esta em disputa". Em consequência, caberia aos movimentos sociais e a "sociedade civil", arrancar cada conquista com o suor de seu apoio e da mobilização na base... 

Na realidade, cativa do lulismo - uma degeneração do fracasso histórico do petismo - essa formulação justifica não somente a degradação completa do regime presidencialista cuja autoridade diante do povo marca nossa evolução histórica mas, sobretudo, permite ao PT e a esquerda liberal, a condição de ator coadjuvante (de caráter parlamentar) cuja expressão mais vulgar pode ser constatada no apelo permanente de "voltar para a base" e trabalhar duro junto ao povo para empurrar o presidente para à esquerda. O resultado da rendição é conhecido: em primeiro lugar, a pratica de um parlamentarismo atravessado pelo "presidencialismo de coalisão" de extração petucana novamente desinibido pois a direita no governo o praticou em larga escala. Em segundo, a absolvição prévia de Lula de qualquer deslize ou erro grave, pois é muito provável que a pressão dos milhares de "comitês populares" criados na cabeça de alguns dirigentes do movimento social jamais exibirão força de massas.

A carona do burguês tem ida e volta; é, pois, via de mão dupla. Tal como reza o ditado popular, "uma mão lava a outra e as duas lavam o rosto". É legitimo concluir que o gesto de Lula em aceitar o favor do capitalista milionário, antes que imprudência, anunciou no terreno da política a verdade já revelada pelos tribunais superiores em relação aos absurdos jurídicos e violações das normas do direito praticados pela Lava Jato sob condução do antigo xerife do bairro agora eleito senador pelo Paraná. Assim, os preconceitos do distinto público devem ceder a certo pragmatismo, parte constitutiva da volta a normalidade, entende? 

Na oposição, entretanto, há a partir de janeiro uma direita cuja liderança na disputa da moral pública ainda permanece forte como demonstra tanto sua campanha quanto os votos recebidos. Não sabemos se os crimes do protofascista e sua família denunciados com certa insistência pela mídia burguesa chegarão aos tribunais e, nesse caso, se contribuirão para colocar o protofascista na cadeia ou apenas na vala comum da corrupção. Há pouco, ouvi João Pedro Stedile comparar Lula a Moisés quando este, segundo o livro sagrado, comandou a travessia do mar vermelho. A direita também nutre um sentimento religioso manifesto pelo seu Messias que agora vai para a oposição. Nos dois casos, a despeito das evidências, nenhuma acusação parece colar no bezerro de adoração. Mas a História ensina que quando a conduta religiosa comanda a ação política, a esquerda, mesmo quando liberal, sempre perde.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

O ministro Xandão

Não é prudente decretar a morte de qualquer personagem político, exceto quando ele não mais respira. O caso de Alexandre de Moraes, atualmente alçado a condição de um super herói pelo espirito republicano, é um caso típico de quem já esteve próximo do ostracismo e voltou radiante à ribalta. Ele ganhou notoriedade na cena política quando o tucano Geraldo Alckmin o nomeou secretário de segurança em São Paulo em 2014. 

Nos protestos de 2016 organizados pela direita liberal para a destituição da ex-presidente Dilma, o atual "Xandão" viveu dias amargos e chegou a ser expulso da avenida paulista aos gritos de "aproveitador", "mata pobre e mata criança" e "ladrão", segundo a nota do portal G1 da Globo. Não é pouco, convenhamos. Entretanto, os dessabores de março daquele ano não impediram sua nomeação como ministro da justiça de Michel Temer já em maio, pouco tempo antes do afastamento definitivo de Dilma Rousseff. Em 2017, também por indicação de seu colega do Largo São Francisco, chegou ao STF. Uma carreira meteórica em meio a enorme turbilhão político! A História ensina que nas tempestades, além da prudência, também existe espaço para a lucidez e a ambição. 

Pois bem, desde então Alexandre de Moraes não abandonou a condição de protagonista no interior da república burguesa em crise. Até mesmo o experiente Gilmar Mendes, mestre na arte de iludir e outrora figura política central na trama sob condução do rentismo que levou Lula à cadeia, aceitou disciplinado a condição de coadjuvante. Moraes, em momentos cruciais, não vacilou em esquentar a chapa contra o protofascista e, num passe de mágica produzido pela mais absoluta falta de memória histórica, se transformou numa esperança da esquerda liberal cativa das ilusões republicanas. Há que reconhecer a capacidade revelada por Alexandre de Moraes em navegar a favor da maré pois nem todos dominam essa arte; ao contrário, é fácil constatar que muitas figuras (parlamentares, ministros, presidentes, etc) trocam os pés pelas mãos no manejo de duas moléculas de "poder" quando no governo. É chato lembrar isso, eu sei... mas num tempo dominado pela amnésia social, é necessário.

Após a vitória da frente ampla petucana, Alexandre de Moraes liberou uma vez mais o "Xandão". Os liberais de esquerda aplaudem sua decidida atuação contra a Polícia Rodoviária Federal sob comando bolsonarista pois o ministro do STF estabeleceu a multa horária de 100 mil reais ao diretor-geral e anunciou a possibilidade de seu afastamento imediato além de prisão em flagrante por crime de desobediência caso não atue com a energia necessária. A instituição - segundo os monopólios de comunicação (CNN e Globo) - atua com parcimônia cumplice com os baderneiros e, em consequência, os canais de TV estabelecem uma linha editorial repleta de reportagens infindáveis mostrando os prejuízos para a burguesia agrária, os comerciantes, hospitais e a paz social derivados dos bloqueios ilegais. No antigo jargão esgrimido contra os governos do PT: a PRF estaria "aparelhada" e, como ensinam os esquecidos manuais de ciência política, o "Estado deve estar acima das classes sociais".

O ministro acumula força e autoridade em defesa das instituições burguesas que, afinal, é mesmo sua função. Mas quem disse que a lei comando a História? O novo governo não medirá esforço para restituir a autoridade democrática e republicana ao regime político em crise. Por enquanto, todos parecem bem alinhados na defesa da democracia e de uma transição estável e republicana mesmo quando o protofascista fala de maneira eloquente quando permanece em silêncio. Por primeira vez em muitos anos, janeiro parece tão distante... O paradoxo aparente consiste no fato de que, mesmo batido eleitoralmente, as ruas ainda estão sob comando do protofascista.