sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Palestina, teu nome é liberdade


Num tempo canalha, as palavras perdem sua força e, banalizadas, já não encontram seu sentido original ou sua potência explicativa. A frouxidão ideológica, sempre um produto da hegemonia liberal (progressista ou conservadora), revela o quanto devemos cuidar da linguagem como expressão da consciência prática, tal como Marx escreveu em A ideologia Alemã. Em larga medida, essa é a razão pela qual a burguesia por meio dos monopólios de comunicação e das universidades produziram as "guerras de narrativas" onde a despeito de antagonismos, todos os gatos são, mesmo a luz do dia, pardos. Não se trata de algo novo, ao contrário; é fenômeno recorrente na História. No Brasil, a banalização da linguagem adquiriu perfil particular, praticada por todos aqueles que se julgam de esquerda ou se autodefinem como progressistas. A direita, ao contrário, especialmente após 2018, chama as coisas pelo seu nome e, aos ouvidos delicados da consciência ingênua, é considerada truculenta ou medieval quando apenas atua de acordo com seus interesses, objetivos e crenças. 

Nos últimos anos - especialmente durante a pandemia - a esquerda liberal utilizou o adjetivo "genocida" para atribuir responsabilidades criminosas ao protofascista Bolsonaro na presidência da república. De minha parte sempre atuei com sumo cuidado diante de semelhante uso, inclusive na análise da política sanitária, porque além de elementar realismo político é também necessário preservar a força das palavras. A propósito, recordo que Marcelo Freixo anunciou numa entrevista que não chamava Bolsonaro de "genocida" porque, segundo suas pesquisas, o povo não entendia o adjetivo; a esperteza eleitoreira não é de meu agrado e, em consequência, não me orienta. Bolsonaro não era um genocida porque o Brasil não sofria nem sofre um genocídio (o mesmo vale para o apelativo "genocídio negro" de Abdias do Nascimento) Tampouco utilizei a expressão "fascista" para caracterizar o governo de Bolsonaro porque entre o regime político que sofremos e o fascismo há no mínimo um abismo!

Para não ser exaustivo: enquanto a esquerda liberal (PT, PSOL, PC do B, PCB, etc) afirmava a importância estratégica da "luta contra o fascismo" e recomendava voto na chapa petucana (Lula/Alckmin), a Revolução Brasileira lutou pelo voto nulo. Ora, se a luta contra o "fascismo" ou o "neofacismo" - seja lá o que isso representa! - orientava o voto na ultima eleição presidencial e constituía de fato um horizonte estratégico, não há razão para negar apoio ao atual governo que desde sempre afirmou seu compromisso com a continuidade da economia política do rentismo e programas sociais amparados na mera filantropia. Entretanto, a constituição de um governo de compromisso democrático contra o fascismo não seria desprezível se, de fato, estivéssemos diante da ameaça fascista. Ocorre que a "ameaça fascista" é inexistente e o argumento nunca passou de álibi para a esquerda liberal e seu corolário - o cretinismo parlamentar - seguisse tateando no labirinto lulista. Entretanto, é possível ver agora o antigo oportunismo em favor de Lula em signo oposto, simulando oposição ao presidente como se o governo petucano estivesse rasgando antigos compromissos. Ora, o caráter conservador do governo não autoriza a "surpresa" pois foi anunciado com todas as letras durante toda a campanha tanto no disciplinado apego a economia política do rentismo, na política externa, quanto no respeito as instituições burguesas, etc.

Nesse contexto, nem mesmo o genocídio em curso contra o povo palestino balançou o apego liberal ao governo Lula/Alckmin por parte de movimentos sociais e figuras públicas. Nada parece comover a maioria dos liberais de esquerda, nem mesmo o assassinato em massa promovido pelo sionismo contra o povo palestino exibido ao vivo pelos monopólios de TV. Em consequência, lideranças populares, parlamentares, sindicalistas, comentaristas "alternativos", buscaram rápida filiação ao "esforço humanitário" praticado pela diplomacia do Itamarati restrita ao resgate de brasileiros confinados em Gaza e dos simulacros de resolução em busca de um cessar fogo ensaiados quando a presidência do Conselho de Segurança da ONU esteve com o Brasil mas, nunca é demais recordar, sempre sob comando efetivo dos Estados Unidos. 

A contradição salta aos olhos: enquanto setores da esquerda liberal exibem solidariedade abstrata ao povo palestino, calam a crítica sobre a cumplicidade prática da diplomacia brasileira com o genocídio. Um exagero? Não! Os sucessivos massacres contra o povo palestino praticados pelo sionismo com apoio estratégico do imperialismo estadunidense contam com a cobertura televisiva dos monopólios como a Globo e CNN, mas ainda assim não conseguem esconder as milhares de crianças, mulheres, velhos assassinados em suas casas, hospitais, igrejas, campos de refugiados, ambulâncias, etc. As resoluções na ONU são francamente inúteis e, quando estimuladas, contam apenas como artigo de consumo para alimentar a consciência ingênua em cursos universitários de relações internacionais. O genocídio praticado por Israel - com apoio completo dos países europeus - somente poderá ser resolvido no terreno militar e político; a diplomacia, tal como tem sido praticada pelo governo Lula/Alckmin, revela-se agora mais do que em qualquer outra época, completamente cativa de Washington e da direita brasileira. O rumo do governo aqui ou na economia política, é claro: somar à direita para disputar nesse terreno com Bolsonaro!

Uma vez concluída a operação resgate - ainda que brasileiros ainda permaneçam cativos em Gaza - e após as enormes manifestações em Londres (além de algumas importantes nos Estados Unidos), a miséria lulista ficou ainda mais clara. Não basta Lula reconhecer - sempre tardiamente! - que um genocídio esta em curso pois nas atuais circunstâncias, até mesmo conservadores já reconhecem os crimes sistemáticos de Israel embora adicionem justificativas para legitima-lo. A "opinião pública" mudou, para dize-lo na linguagem marqueteira, a única que, afinal, a esquerda liberal respeita. Ademais, o Hamas - com apoio heroico do povo palestino - recolocou a questão nacional palestina no centro da disputa mundial. Portanto, os apelos à paz são simplesmente inúteis, exceto quando solicitados pelo Vaticano; ocorre que o Brasil pode fazer muito mais que o impotente apelo do sumo pontífice, pois dispõe de recursos inúteis à vida após a morte, mas indispensáveis para garantir vida plena aqui e agora aos condenados da terra!

Nesse contexto, podemos ver que a ofensiva sionista/imperialista contra o povo palestino motivou, em alguma medida, a mudança de ânimo de certos setores progressistas em relação ao governo e, ainda que ligeiramente, parece ter revelado de maneira mais clara a servidão e vassalagem do Itamaraty diante da política externa dos Estados Unidos. Até a virada do século, a análise sobre a conjuntura nacional iniciava com a avaliação da luta de classes em escala mundial. A consideração da situação nacional estava com frequência baseada na criteriosa análise do conflito de classes em escala mundial mesmo quando observada pelo limitado prisma da "guerra fria". Nessa perspectiva, não somente acuso o provincianismo dominante nas tentativas de interpretação do que de fato ocorre entre nós mas sobretudo a negativa implícita ou a recusa aberta em observar as crises e conflitos mundiais desde uma perspectiva de classe, ou seja, da luta de classes. Não por outra razão, no lugar da análise rigorosa do conflito de classes mundial, o "horizonte" da esquerda liberal não ultrapassa as tradicionais e miseráveis considerações sobre resultados de processos eleitorais: "Milei venceu na Argentina, a situação é adversa" brada a sabedoria do assessor parlamentar. "Lula venceu! Uma derrota para o fascismo e a onda conservadora!", grita o sindicalista desavisado. "Petro, na Colômbia, manda pra reserva generais assassinos. Uma vitória!" ensina o deputado na tribuna.  Eis a análise da conjuntura mundial...  

O genocídio em curso contra o povo palestino na forma concreta da limpeza étnica (Ilan Pappé) promovido pelo sionismo abriu, subitamente, nova exigência política-intelectual ainda incapaz de romper a ingenuidade e oportunismo da trajetória da esquerda liberal inclusive diante do terrorismo de estado de Israel que, a despeito de forte carga ideológica e propagandística em favor do sionismo, os monopólios de TV não são capazes de ocultar. A antiga paralisia ou mesmo a recusa em ver a guerra de classes em escala mundial não foi superada, mas é evidente o descontentamento com o governo Lula e a lenta, porém inexorável, erosão do moralismo rasteiro que orienta as declarações presidenciais sobre os temas caros a tradição humanista que de alguma maneira formou a esquerda em nosso país. 

De fato, ninguém poderá explicar o moralismo lulista e seu "humanismo" rasteiro, senão como condição necessária para conviver em harmonia com a política imperialista estadunidense no Oriente Médio na qual Israel é a sentinela a serviço do imperialismo. A direita bolsonarista não vacila em seu vínculo orgânico e militante em favor do sionismo tão importante para a burguesia, os monopólios de comunicação e, não menos decisivo, na cúpula das forças armadas. Portanto, a política externa lulista é cumplice da ofensiva imperialista contra o povo palestino pois é incapaz de repudiá-la diante do genocídio e da limpeza étnica em curso em Gaza e, em breve, na Cisjordânia. Lula e seu governo conservador apostou tudo no simples e necessário resgate dos brasileiros vivendo em Gaza, a versão mais fiel e concreta do que é o inferno terrenal para aqueles que acreditam na existência (e no castigo!) dos deuses. A presidência do Conselho de Segurança (CS) da ONU apareceu nos monopólios de TV - especialmente Globo e CNN - como expressão do "protagonismo brasileiro"; entretanto, nem a apologia sobre as "possibilidades" do Brasil na presidência do CS tão funcional à política imperialista, foi capaz de ocultar sucessivos fracassos, além de revelar os limites objetivos da solução negociada de interesses numa mesa regada a cerveja e picanha... Cativo da ingenuidade, o lulista/petista não percebe sequer que até mesmo a última leva de brasileiros liberados foi produto da articulação entre Israel, Estados Unidos e o ... Catar! Portanto, o surrado  e apologético bordão segundo o qual "o Brasil voltou" nas disputas mundiais caiu por seu próprio peso! 

Diante do genocídio sionista contra o povo palestino, o oportunismo eleitoreiro da esquerda liberal se depara com a miserável condição de reconhecer que diante de ação comandada por Netanyahu e o tradicional terrorismo de Estado praticado historicamente por Israel, o protofascista Bolsonaro é menos que um aprendiz a despeito de sua devota filiação sionista. O reconhecimento dessa diferença elementar não anistia sequer uma molécula moral e política ao personagem e seu governo, mas apenas restitui o terreno concreto da luta de classes e sua exata qualificação. Bolsonaro não é, nem de longe, Hitler ou Netanyahu. 

A diplomacia brasileira - caso estivesse de fato orientada pelo apego à soberania nacional - não poderia senão afirmar de maneira clara que nas atuais circunstâncias, Israel não tem direito a existência; não, pelo menos, enquanto a Palestina não for um estado com idêntica existência e garantias! A consciência diplomática liberal, apegada ao "direito internacional" deveria reconhecer essa condição básica pois é precisamente o que ordena a resolução 242 da sacrossanta ONU, que legitimou diante da força das potências imperialistas o deslocamento de milhões de judeus para território palestino e, no limite, permitiu o avanço do sionismo. Entretanto a tradição brasileira em política exterior é prisioneira moral e ideológica da indústria do holocausto , como acertadamente ensinou Norman Finkelstein. Além, é claro, de sua crônica incapacidade de fazer valer nossa soberania em qualquer fórum mundial necessário para assegurar controle do território e da riqueza nacional. De resto, nunca é demais recordar que "protagonismo internacional" não se conquista com a prática cínica do bom mocismo que se tornou uma especialidade da maioria do corpo diplomático com apoio completo da imprensa burguesa. 

A defesa da causa palestina está revelando também o alcance e a orientação ideológica de toda luta antirracista no Brasil. A longa reflexão crítica sobre a escravidão em nosso país - especialmente fecundas nas contribuições marxistas - foi arteira e ideologicamente substituída pelo "combate" burguês autorizado contra o "racismo estrutural" sob comando dos monopólios televisivos e da influência identitária importada do Partido Democrata dos Estados Unidos especialmente forte nas universidades. Não deixou de ser uma surpresa observar que as "lideranças" negras mais autorizadas do país e festejadas nas redes digitais ainda guardam enorme silêncio sobre o racismo sionista contras os palestinos e os árabes em geral. Você já viu ou leu algo de Djamila Ribeiro em defesa dos palestinos? Acaso, o racismo de Israel, tanto quanto aquele vigente na África do Sul até março de 1991 (Apartheid), não é uma versão particular do racismo destinado contra os palestinos? E se o racismo existente no Brasil é, de fato, detestável e merece nosso combate, o que dizer do sionismo como a maior expressão estatal e religiosa de racismo em nosso tempo? Entretanto, deputados e vereadores, assessores e lideres sindicais, da esquerda liberal guardam enorme silêncio sobre o genocídio particularmente visível em Gaza enquanto gritam todos os dias contra o "genocídio do negro" em nosso país. Mesmo agora, lideranças populares vinculadas ao PT e ao PSOL - para mencionar apenas exemplos mais grotescos e vergonhosos - guardaram silêncio diante da limpeza étnica e, somente de maneira esparsa e tímida, começam a balbuciar algo sobre a tragédia em Gaza. 

Nesse contexto, é fácil compreender os apelos genéricos a uma sorte de humanismo burguês rebaixado que reclama o cessar-fogo como se fosse possível convencer o estado sionista com palavras. Da mesma forma é possível observar o cinismo de um suposto "sionismo de esquerda" de acadêmicos a serviço da ordem burguesa condenar o Hamas como exemplo de atuação anti-moderna como se a política de Israel fosse em alguma medida defensável. Nas circunstâncias atuais o chamado "direito a existência de Israel" e seu religioso "direito à defesa" não passa de uma criminosa autorização para matar e cometer crimes de guerra, além, é claro, de permitir ou avalizar sua política sistemática e consciente de limpeza étnica na Palestina. 

Não é preciso ser um gênio político para reconhecer que, no atual contexto, somente vitórias militares do Hamas contra o exército sionista poderá mudar a correlação de forças e abrir a possibilidade remota de um cessar-fogo, a bandeira tão cínica quanto impotente da diplomacia petucana praticada por Lula. Não obstante, se somente a luta dos palestinos poderá produzir efeitos capazes de interromper o genocídio em curso, há uma batalha aqui que devemos travar. Essa batalha não admite vacilo: é contra a política externa do governo petucano Lula/Alckmin. Não devemos vacilar no mais mínimo contra um governo cúmplice, funcional aos interesses imperialistas materializados por Israel contra o povo palestino em particular e os árabes em geral. De resto, a inesgotável fonte energética do Oriente Médio deveria alertar aos desavisados e ingênuos sobre o entreguismo praticado pelo lobista e senador do PT Jean Paul Prates na presidência da Petrobrás sob orientação de Lula, apoiados pela cúpula sindical da FUP e da FNP.

Alertei acima que não seria essa a primeira vez na história que nos defrontamos com opções realmente dramáticas inerentes a lógica das situações extremas que, finalmente, se impõe como o critério da verdade. Na tradição socialista, é útil lembrar a aguda análise de Rosa Luxemburgo a respeito das decisões dos bolcheviques sob comando de Lenin em 1918, oportunidade em que acusou os comunistas alemães sobre suas responsabilidades diante dos limites objetivos da Revolução Russa. Rosa argumentou que "o desenrolar da guerra e da Revolução Russa mostraram não a falta de maturidade da Rússia, e sim a do proletariado alemão para cumprir sua missa histórica... O destino dela dependia inteiramente dos (acontecimentos) internacionais" (A revolução russa). Não serei exaustivo sobre a polêmica Rosa x Lenin, mas a lembrança é suficiente para observar que o genocídio do povo palestino exige outra orientação e conduta dos revolucionários no Brasil. Em larga medida, nem a histórica capacidade de luta do povo palestino, nem eventuais vitórias militares do Hamas, poderão bloquear a ofensiva sionista cujo horizonte é a solução final nazista destinada aos palestinos. Nesse contexto, será preciso que forças políticas se levantem no mundo inteiro e cabe lembrar ao provincianismo que nos domina que "o mundo é aqui". 

No Brasil, a recusa em reconhecer questões elementares da luta contra o sionismo já se transformou num esporte nas filas da esquerda liberal. Assim, é possível ver que especialmente no início do recente conflito iniciado em 7 de outubro as críticas eram dirigidas ao Hamas e "suas ações terroristas" responsáveis por "matar inocentes" na mesma medida em que também reprovavam Israel pela "desmedida reação" as ações do Hamas. O comportamento da esquerda liberal em "condenar os dois lados" nunca passou de um artificio para permanecer no campo da hegemonia da classe dominante. A crítica ao terrorismo de Estado de Israel apoiado pelo imperialismo estadunidense e todas as potencias europeias, ainda não ganhou cidadania em suas filas. É tão tímida quanto cúmplice. Essa linha de atuação mantém laços com a pratica "civilizada" na política e afirma o bom mocismo que também a orienta internamente em sua relação carnal com o governo Lula. 

Portanto, a exigência de ruptura de relações diplomáticas do Brasil com Israel entre outras medidas possíveis e necessárias simplesmente não entraram ou foram lembradas tardiamente por alguns deputados, sempre, obviamente, de acordo com o decoro parlamentar. A propósito, a recente nota de 61 deputados entre os quais a bancada inteira do PSOL, sequer menciona a exigência de ruptura de relações diplomáticas mas a "simbólica" e patética convocatória para que o embaixador brasileiro em Israel retorne a Brasília. Haveria algo que o diplomata pode nos revelar além do que já vemos na TV? No entanto, a ruptura com o governo petucano encabeçado por Lula e a passagem para a oposição de esquerda aberta como único meio de pressão contra a hegemonia liberal não passa pela cabeça de nenhuma de suas "lideranças". O artifício adotado para manter fidelidade à Lula/Alckmin consiste em decifrar as intenções embutidas nas posições de Lula ou aproveitar qualquer declaração ou ato da direita para subir na tribuna e atacar o protofascista Bolsonaro. Nada mais.

É necessário reconhecer que as manifestações militantes de apoio a causa palestina realizadas no Brasil foram, de fato, modestas, a despeito da clara oposição contra a política sionista responsável, entre outras, pela sutil mudança nos discursos de Lula, personagem sempre atento aos ventos do humor popular. A antiga filiação internacionalista de extração comunista na qual grande parte da esquerda brasileira se formou, desapareceu para sempre. Ocorre que a concepção internacionalista jamais esteve confinada no dominante bordão "marxista-leninista", um produto típico da ideologia do estado soviético. As revoluções sociais - como a Nicarágua, por exemplo - não assumiu aquela tradição e o nacionalismo terceiro-mundista cumpriu também função importante na luta anti-imperialista, especialmente aguda no Oriente Médio. Entretanto, se aquela tradição não comportava as forças vitais da Revolução Brasileira e merecia todos os reparos que a história registra, o comportamento atual da antiga esquerda brasileira expressa todos supostos liberais e encontra nos Estados Unidos - o mais importante país imperialista - seu horizonte político-ideológico. Em consequência, o artigo de consumo mais importante das filas da esquerda liberal é o identitarismo de extração estadunidense e cuja função ideológica é esterilizar até o fundo e o fim qualquer vestígio de classe nas lutas parciais (mulheres, negros, gays, etc). O conceito de classe e povo são subordinados quando não simplesmente desconsiderados e, no limite, tratados como se nações fossem "imaginárias". O individualismo burguês que legitima a concorrência capitalista é o mesmo que informa a mobilidade social das políticas de reconhecimento e ações afirmativas incapazes de contemplar milhões num país mestiço como o Brasil.  

O internacionalismo comunista orientado pela URSS até 1989 desapareceu mas não foi substituído pelo "reino da liberdade individual" onde cada um faz o que quer em defesa do pluralismo funcional a sociedade capitalista e a correspondente ideologia burguesa do "ser livre". Agora, como podemos ver a luz do dia, a liberdade de pensar esta totalmente garantida na mesma medida em que completamente filiada aos "valores" e praticas sociais emanadas do centro do Império. O novo templo de adoração não é mais Moscou, mas Washington! O outrora "detestável ouro de Moscou" foi substituído pela grana turbinada e fácil das ONGs e das Fundações num sistema de cooptação que incluiu parlamentares, burocratas dos partidos e lideranças da "sociedade civil". Tudo à luz do dia! Portanto, não estou alertando contra um "provincianismo" qualquer mas, ao contrário, acuso o provincianismo de extração colonial, pendente da "orientação" do Partido Democrata e das migalhas ideológicas oriundas na Europa submissa aos Estados Unidos, aquela também completamente sem projeto próprio. A hora e a conjuntura mundial exigem radical revisão da orientação ideológica entre nós: após o 7 de outubro, quando você falar em "resistência", pense na Palestina! Quando acusar o racismo, estude o sionismo! Quando clamar pela paz, analise os horrores  e as causas da guerra. Quando clamar pela solidariedade, atue duas vezes antes de pensar! Washington não é a capital das luzes, mas o centro de decisão do genocídio.

A luta nacional palestina, tal como registra a História, conta com inimigos poderosos mas não invencíveis. Portanto, em perspectiva histórica, a lógica das situações extremas vigente na Palestina e nos territórios ocupados, incluiu também todos nós, a despeito da distância geográfica. Ora, Gaza e Cisjordânia constituem a vala comum do sofrimento humano que hoje mata impunemente crianças, mulheres, velhos, adolescentes, homens e mulheres, gays e heteros sem qualquer distinção, exceto a nacionalidade: basta ser palestino para estar sob a mira assassina do sionismo. A luta palestina foi, desde sempre, uma luta universal desde uma perspectiva nacional. A despeito da adversa situação em que se encontram os palestinos e também suas organizações políticas - entre elas o Hamas - sabemos que o combate ainda será longo e sem sentença prévia sobre o vencedor. Aqui, no Brasil, gozando de completa liberdade política e dispondo de meios ainda importantes para fortalecer a luta nacional palestina, caberá à esquerda revolucionária empenhar-se na solidariedade ativa em favor da liberdade de todo um povo. Não uma liberdade abstrata, mas a liberdade de dispor de seu território e a segurança para sua existência sem qualquer restrição. Nessa batalha, ao contrário do que a consciência ingênua e não rara oportunista que a esquerda liberal pratica, há que ter clareza sobre o outro nome da liberdade que pretendemos também para os brasileiros: Palestina Livre! 

Revisão: Junia Zaidan

 

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Dias Toffoli, o ministro delator

 

"Você hoje não é mais apenas um juiz, mas um grande líder brasileiro (ainda que isso não tenha sido buscado). Seus sinais conduzirão multidões, inclusive para reformas de que o Brasil precisa, nos sistemas político e de justiça criminal. Sei que vê isso como uma grande responsabilidade e fico contente porque todos conhecemos sua competência, equilíbrio e dedicação".

                                                                   Dalagnoll  à Moro em 13 de março de 2016


"La historia es siempre concienzuda y pasa por diversas fases antes de enterrar a las formas muertas. La fase final de una forma de la historia del mundo es la comedia" 

                                                              Marx. En torno a la crítica de la filosofía del derecho de Hegel, 1844

 

 

A decisão do ministro Dias Toffoli do STF, proferida em 06 de setembro, anulando todas e quaisquer provas obtidas dos sistemas Drousys e My Web Day B utilizadas a partir do acordo de leniência celebrado pela Odebrecht no âmbito da Lava Jato, foi recebida com júbilo pela ingenuidade e alienação lulista, igualmente dominante no conjunto da esquerda liberal. A desinibida felicidade de "militantes" é inocultável com o avanço do cerco sobre Sérgio Moro, outrora xerife do bairro no comando da Lava Jato, verdadeiro herói das classes médias endinheiradas e da astúcia burguesa versada na arte de iludir. Ademais, como nada no mundo da política ocorre por acaso, poucos dias depois (15/9), a Corregedoria Nacional de Justiça adicionou combustível ao entusiasmo geral ao publicar a investigação (ainda parcial) destinada a avaliar a "imprudente" administração de Sérgio Moro dos bilionários recursos obtidos em delações ilegais e abuso de autoridade praticadas contra ladrões e corruptos de toda espécie. A cascata de denúncias contra Moro avançou ainda mais quando (28/9) a defesa de Tony Garcia - um capitalista réu confesso, chantageado sistematicamente por Moro, solicitou ao mesmíssimo Dias Toffoli o reconhecimento de parcialidade do xerife que usou todo tipo de chantagens para mantê-lo como informante por longo período (2005-2018), segundo documentário produzido pelo canal ultra-petista 247 há um mês. A propósito, nesse documentário, é verdadeiramente revelador que o posto de ministro da Justiça dos governos de Lula e Dilma estava vago pois não há notícia de ação ministerial contra as tramoias e ilegalidades de Moro, Dallagnol e sua turminha!

Com os olhos fixos no presente, as decisões do ministro Toffoli não descuidaram do futuro imediato e, em consequência, alcançaram também o destino da Lava Jato ao anular a suspeição de Eduardo Appio. Muito provavelmente Toffoli pretende criar as condições para a devolução ao açodado magistrado o comando da afamada operação até agora sob o fugaz reinado da juíza Gabriela Hardt, a queridinha de Moro e Dallagnol na 13ª. Vara Federal de Curitiba. Nem tudo são flores, razão pela qual o Conselho Nacional de Justiça conduzirá análise do processo disciplinar instaurado para julgar o comportamento de Appio no breve período em que comandou a Lava Jato e contra o qual há acusações igualmente graves para as quais não se deve esperar decisão salomônica.

O entusiasmo da consciência ingênua, entretanto, não foi o suficiente para que o lulista/petista entoasse o enfadonho bordão "a justiça voltou". A alegria é indisfarçável, mas a situação não permite cinismo desmedido. Escolado nos vaivéns da vida, até mesmo o mais ingênuo lulista desconfia que a política se move tanto quanto as marés. No terreno especificamente jurídico, a consciência ingênua da esquerda liberal - filha órfã da democracia burguesa em grave crise - se apressou no elogio das decisões orientadas pelo "garantismo" contra os medievais justiceiros como se tivéssemos descoberto eficaz antídoto contra a "ameaça fascista". Eles de fato acreditam que a defesa da legalidade não nos mata, mas, ao contrário, nos salvará! Alegam, portanto, que tanto Moro quanto Dallagnol terão a garantia do devido processo legal, que, como sabemos, negaram a Lula, aos petistas e a uma corja de funcionários e políticos burgueses corruptos condenados pelo arbítrio de Moro e seu bando. 

Entretanto, o pragmatismo da esquerda liberal insinua lições de realismo ao afirmar que não temos tempo para pruridos e, a despeito de atropelos aqui e ali, o fundamental é tirar Moro, Dallagnol e seu mais íntimos colaboradores da política agora. A mesma "estratégia" vale pra o protofascista Bolsonaro, cada dia aparentemente mais emparedado nos marcos da legalidade burguesa. Uma peça por vez, declara a sabedoria lulista/petista contra todos aqueles que julgam o excesso de prudência um risco, recado também dirigido aos críticos contumazes como eu, sempre considerados eternos insatisfeitos.  

No limite - para o liberalismo de esquerda - a ordem jurídica é essencialmente boa e uma garantia diante do pesadelo petista de 8 de janeiro, quando a mobilização da direita gritava pela "intervenção militar" e a "resistência civil". Nesse contexto, alegam que a defesa das instituições e da ordem democrática é o mínimo que toda a esquerda deve fazer! A ambiguidade petista não consegue ocultar sua extração bovarista, pois, ao mesmo tempo em que declaram a iminência de um golpe de Estado exibido na primeira semana do novo governo, (liderados pelos militares), afirmam também que não existem condições internas e internacionais para a intentona da direita! A ginástica ideológica deixa o petismo numa situação tal qual Madame Bovary, que, num só momento pretendia viajar a Paris e morrer. Mas morrer e viajar a Paris ao mesmo tempo é, como sabemos, impossível!

Os advogados alinhados com o petismo evitaram os arroubos militantes próprios do bordão "o Brasil voltou" e, em consequência, deram um tom sóbrio à análise das decisões dos eminentes ministros: segundo a versão interessada, Toffoli decidiu, antes de mais nada, nos marcos da legalidade e apresentou uma "peça jurídica" considerada um primor "técnico". Ademais, inaugurando um novo tempo, registram que o juiz teria evitado a espetacularização da sentença, um recurso usual no STF quando o país estava tomado pelo "espírito maquiavélico da farsa lavajatista". Agora, ao contrário daquele obscuro tempo, o ministro agiu com "seriedade, coragem e didatismo". Uma beleza! 

O mundo dá voltas, transformando em mentira o que ontem era considerada a mais pura expressão da  verdade. No passado, Moro afirmava que "a Lava Jato é a maior operação de combate à corrupção do mundo". Agora, o ministro Toffoli - recolhendo lições de um jornalista do The New York Times - escreve que a operação é, ao contrário, "o maior escândalo judicial da Humanidade". O entusiasmo com a boa nova impediu a leitura cuidadosa da sentença emitida pelo eminente juiz da Corte Suprema. Entretanto, vale dedicar alguma atenção ao documento pois ali podemos ler uma verdadeira delação - essa sim, voluntária! - de todo o sistema de justiça nacional.

Ora, em 135 páginas Toffoli destila seu ácido contra o Ministério Público Federal, a Procuradoria Geral da República e especialmente Janot, a Polícia Federal, a impoluta Receita Federal, o outrora beatificado TRF-4, e contra a antiga reserva moral da nação, a impoluta 13 Vara Criminal de Curitiba. Finalmente, sobrou algo também para a imprensa, ainda que tratada genericamente como manda a tradição da neutralidade. Numa nota de pé de página, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério de Justiça teria pecado por "omissão". A lista das cumplicidades e omissões é considerável a tal ponto que não seria exagero afirmar que o sistema inteiro estava contaminado por grave doença. Por fim, a indicação da absoluta falta de competência para a 13 Vara julgar em Curitiba as acusações contra Lula (e não Brasília) também foi agora considerada como ilegalidade flagrante quando, no auge da Lava Jato, foram simplesmente ignoradas por juízes de "notório saber" orientados para preservar as leis com zelo e rigor! 

De minha parte, não recordo sentença semelhante na qual um juiz da Corte Suprema faça juízo tão ácido contra as instituições burguesas. Mas esse "aspecto" não chamou atenção dos lulistas e todos os dedicados e atentos lutadores contra o "neofascismo". Ao contrário, a julgar pelo comportamento político e sobretudo pela ausência de ações, tudo indica que antes de seguir a marcha da podridão, as instituições estariam, na verdade, renascendo após a vitória de Lula/Alckmin. Não obstante, as instituições se encontram todas aí e sequer há notícia de algum projeto de reforma do sistema judicial nacional.

Pois bem, em longa sentença, Toffoli declarou a nulidade absoluta dos acordos de leniência produzidos pela Lava Jato. Ademais, afirma que Moro não cumpriu "determinações claras e diretas emanadas da mais alta Corte de Justiça do País", fato que deve agravar a crítica situação do senador ainda no exercício do mandato. Não deveriam existir dúvidas de que a nulidade absoluta dos acordos de leniência abre possibilidades extraordinárias para empresas reclamarem prejuízos reais e imaginários ao Estado. Esse é um capítulo que apenas começa e não constitui surpresa se notórios corruptos receberem no futuro breve, suculentas indenizações pelos prejuízos que a "violação do devido processo legal" causou às empresas responsáveis pela "geração de empregos e renda ao povo" tal como reza o jargão lulista. No embalo, tampouco duvido que escritórios de advocacia cobrarão cifras milionárias não contabilizadas no cálculo do déficit público porque estarão dirigidas à restauração do Estado Democrático de Direito. É atual a severa crítica do audaz e honrado Mandeville!

Ao ler o documento, há algo que deveria chamar a atenção de qualquer analista ou militante com duas moléculas de memória histórica, afinal, todas as ilegalidades agora reconhecidas como tais sempre estiveram na cena pública nas páginas da imprensa ou mesmo na defesa das suposta vítimas. Por que, afinal, somente agora um ministro que também cometeu atrocidades em sua atuação no STF acordou? Toffoli afirma que em não poucos casos ocorreu "ostensivo descumprimento de determinações claras e diretas emanadas da mais alta Corte de Justiça do País"; declara também que o "reclamante" (Lula) alertou o Juízo de Curitiba em cinco oportunidades de negativas da Vara de Curitiba a seguir as determinações do STF, como se estivéssemos diante de um segredo de Estado! Ocorre que as denúncias de Zanin atuando na defesa de Lula sobre as sucessivas negativas do bando de Curitiba em permitir acesso às delações eram públicas, muitas vezes registradas em grandes jornais e TVs!!

Eis o cerne da questão: os crimes cometidos pelos procuradores e juízes de Curitiba que levaram Toffoli a denunciar as atrocidades político-jurídicas praticadas por Dallagnol e Moro não constituem novidade alguma, mesmo antes da publicação de documentos e provas de conspirações expostas na Operação Spoofing na qual um suposto hacker acessou e divulgou as falcatruas, ilegalidades e atrocidades do ex-xerife do bairro atualmente senador da república! Não há nada absolutamente novo no cenário e qualquer um pode rastrear na imprensa as denúncias repetidas sobre cada ponto agora presentes na sentença. O mesmíssimo Toffoli afirma (p. 21) que a Lava Jato negou aos defensores de Lula nos últimos três anos acesso aos "elementos de prova" a despeito das determinações expressas do Colegiado e do próprio relator (Toffoli) para que seu cliente tivesse acesso aos segredos de Moro e Dallagnol. Por que, afinal, somente agora o ministro emite tão grave sentença?

Nem tudo mudou, mas o país respira novos ares, afirma a consciência ingênua. A "derrota eleitoral do fascismo" nas eleições levou Lula à presidência e, portanto, há um novo governo; ademais, a ofensiva dos "golpistas" contra a sede dos três poderes que arrancou autênticas lágrimas de Rosa Weber diante da destruição do STF, permitiu a contraofensiva do tribunal embora de curso e destino, ainda incertos. De resto, no turbilhão da crise, o protagonismo de Alexandre de Moraes ganhou força e justificativa após a aparentemente desastrosa ofensiva contra os três poderes ocorrida no segundo domingo de 2023. Há quem afirme com profunda convicção nossa dívida com o Judiciário pois ao final das contas, o egrégio tribunal salvou nossa sempre frágil democracia! De resto, acreditam, uma vez mais a vida ensina que a despeito de suas enormes insuficiências, a democracia não é assim um adversário tão simples de bater e nem tão fácil de desprezar. 

Entretanto, a delação de Dias Toffoli não despertou o instinto reformista aparentemente necessário para religar a fé do povo nas instituições apodrecidas da república burguesa. Ao contrário, ao embalo do alienante bordão "O Brasil voltou", a antiga legalidade se apresenta não como aquela velha senhora repleta de vícios para a qual amor é impossível, mas, ao contrário, emerge com a força virtuosa de uma paixão que após breve separação regressou simulando saudades e virtudes que merecem um jantar à luz de velas em nova e certamente breve reconciliação. Nesse caso, o caráter fantasmagórico do fascismo cumpre a função de anistiar todos os crimes da democracia restringida que se abatem implacavelmente sobre os trabalhadores e garantem super lucros e vida mansa às distintas frações burguesas. Nunca foi tão inequívoca a existência da extração liberal da esquerda, que recusa com radicalismo qualquer vocação de ruptura com o sistema apodrecido! [JZ1] É uma esquerda da ordem, ainda que sôe raro. A razão da burguesia nas condições do capitalismo dependente rentístico é sua razão e, posto que a burguesia não é reformista, a esquerda liberal tampouco, especialmente na periferia capitalista onde com a intervenção decisiva das forças armadas pode, em última instância, colocar tudo nos eixos.

A fonte da crise atual consiste precisamente no fato de que a esquerda liberal não constitui força mobilizadora em favor de reformas no interior do sistema. Ao contrário, na ausência de um programa reformista, o governo conservador Lula/Alckmin orienta-se pela "agenda" necessária às frações do capital dirigidas a aumentar seu poder sobre o Estado e realizar mudanças que favorecem não somente a superexploração da força do trabalho mas o desmonte final das "conquistas constitucionais de 1988". Nesse contexto, pouco importa se a demolição de direitos sociais da Constituição de 1988 se realiza em acordo ou de maneira conflituosa com o covil de ladrões dirigido por Lira e Pacheco ou se, voluntariamente, é praticada por meio de medidas do Ministério da Fazenda. A verdade é que mesmo os chamados mínimos constitucionais da saúde e da educação serão revisados a pedido do governo, assim como a privatização dos presídios já começou com estímulo oficial (BNDES), a liberação de 103 agrotóxicos represados no governo de Bolsonaro, a ausência de iniciativa para recuperar a Petrobrás e a Eletrobrás, e todas as promessas da campanha eleitoral sobre a revisão da legislação trabalhista sequer são lembradas num país onde 93% dos trabalhadores recebem até 2,5 salários mínimos e 40% sequer possui carteira assinada.

A direita, ao contrário, na completa ausência de um programa reformista por parte da esquerda liberal, mantém o firme comando da luta ideológica, das iniciativas políticas e parlamentares e do assalto ao Estado com medidas de política econômica destinadas a fortalecer os interesses da coesão burguesa em nome do "emprego e da renda". Portanto, o programa da direita é implementado pelo governo da esquerda liberal responsável em última instância pela permanência de milhões de trabalhadores no abismo social próprio de um país subdesenvolvido e dependente. Entretanto, se a política econômica do governo da esquerda liberal aprofunda a miséria e a exploração sobre a maioria da classe trabalhadora, nas condições atuais a política social nem sequer pode mitigar o sofrimento, a violência e a miséria como pretendeu durante os 14 anos de seus governos anteriores.  A antiga filantropia católica atualizada na cansativa e impotente afirmação de Lula pela "inclusão do pobre no orçamento" (não é digno comentar a emenda ao soneto de "meter o rico no imposto de renda") não possui aderência para manter o governo estável e menos ainda para garantir estabilidade ao sistema político. Nas condições atuais da crise capitalista em escala global e sua intensa repercussão na periferia capitalista, o Brasil sofrerá mais do que qualquer outro país latino-americano as consequências políticas e sociais acumuladas pela acelerada transição de sua fase industrial para a rentista. O antigo desenvolvimentismo emerge com força na cabeça dos otimistas mas é incapaz de realizar qualquer arremedo de política industrial necessária para competir com os preços de produção asiáticos. Em consequência, resta o patético apelo à "economia verde" e às "janelas de oportunidades" abertas pela demanda de energia (hidrogênio verde) cuja consequência é sacramentar a posição do país na divisão internacional do trabalho de maneira mais perversa, que faria corar um desenvolvimentista dos anos 60 e 70.  

A impotência política do governo petucano e de Lula - principal personagem da esquerda liberal - expressa no genérico "combate ao fascismo" não poderia ser mais eloquente. O desarme político-ideológico é tal que podemos ouvir ministros e "pensadores" da esquerda liberal afirmarem sem pejo que, nas circunstâncias atuais, o "judiciário salvou a democracia"! Ora, a renúncia sistemática dos poderes inerentes ao regime presidencial caracteriza Lula e o petismo desde sempre; portanto, a convocatória ao povo como único meio de pressão contras as classes dominantes e as eternas lutas entre as distintas frações do capital está descartada! Lula não cansa de afirmar que a "mão rebelde do trabalho" é carta fora do baralho! Em consequência, o cretinismo parlamentar se pavoneia como se fosse, de fato, a razão da política de "resistência" sem a qual estaríamos ainda mais desprotegidos diante da ofensiva real e fantasmagórica da ultra direita. De resto, a "ação política" do governo e seus partidos não acumula forças e tampouco dirige esforços para mobilizar uma força capaz de enfrentar nas ruas eventual ofensiva da direita. Ao contrário, Lula/Alckmin não fazem menos do que avançar à direita - na composição e nas medidas governamentais - na vã tentativa de subtrair bases sociais do conservadorismo e da direita! É o perfeito caminho do desastre!

A recente sentença de Dias Toffoli anulou os acordos de leniência validados pelo sistema jurídico dominante e, antes de tentativa do ministro em justificar seus próprios pecados na trama dirigida por Moro, a decisão constitui verdadeira delação contra todo o sistema de justiça da república burguesa! Afinal, fica difícil explicar como tantas ilegalidades foram praticadas durante tanto tempo por Moro, como se o país, finalmente, estivesse resgatando a moral e as virtudes republicanas por órgãos de Estado sob controle de uma figura agora considerada não somente patética mas também nefasta! Não é ocioso recordar que todas as ações de Moro, Dallagnol e seu bando foram consideradas por muita gente dentro e fora dos tribunais - sem falar também nas denúncias que de alguma maneira apareciam na imprensa burguesa - como flagrantes violações do "Estado Democrático de Direito". Entretanto, a despeito de notórias evidências e não poucos alertas, o próprio STF consolidou maioria para permitir, senão favorecer, o comando de Moro em favor da moralidade burguesa!

A história da república ensina que também os tribunais burgueses se movem segundo o balanço da luta de classes. Os liberais de esquerda com alguma autenticidade estão agora hegemonicamente dominados por carreiristas de toda espécie, prisioneiros de parlamentares degradados dispostos a trocar qualquer antiga convicção pela autorreprodução parlamentar, responsáveis por transformar o outrora combativo movimento social em meros comitês eleitorais com resultados pífios e, diante do abismo cavado por seus próprios pés, não pode constituir surpresa alguma o fato de apostar suas fichas na "firme atuação" do Judiciário contra a ofensiva burguesa. A "luta contra o fascismo" e a "defesa da democracia" abriga, portanto, os interesses de todo tipo de canalhas, ladrões, carreiristas, oportunistas, que, ao primeiro sinal da mudança dos ventos, rapidamente adaptarão o comportamento para buscar sua readmissão na sociedade respeitável.    

A reforma da ordem burguesa não figura nos planos da esquerda liberal. Portanto, recusam ingenuamente a luta de classes como se pudessem arrefecer os efeitos da ofensiva da direita e, cinicamente, recusam a dialética da luta dentro e contra a ordem apostando no bordão popular segundo o qual "quando um não quer, dois não brigam". Objetivamente, não arrisco dizer em qual medida é uma mistura de oportunismo e suicídio. No limite, a esquerda liberal espera tão somente que seu governo ajude no esforço de restauração da democracia ameaçada pela ofensiva burguesa encabeçada pela ultra direita vitoriosa na disputa presidencial de 2018. A despeito de suas esperanças, a crise segue curso normal e se manifesta no conflito entre os poderes republicanos como expressão concreta da luta entre as frações burguesas unificadas no reconhecimento de que em larga medida a Constituição abriga direitos que "não cabem no orçamento". Ora, enquanto o presidente com voz cada vez mais rouca balbucia colocar o pobre no orçamento como mera propaganda – e nada faz para colocar os bilionários no imposto de renda! – a  burguesia declara a obsolescência de toda política social. Definitivamente, agora, nem mesmo migalhas ao povo. O imenso deserto construído a partir da renúncia do socialismo e da revolução social será o destino dos liberais de esquerda.

A restauração da velha ordem é impossível mas seguirá sendo a ladainha do liberalismo de esquerda dirigido por Lula, Alckmin e seu governo conservador. Toffoli delatou sem pretensão a podridão das instituições burguesas na vã tentativa de limpar as impressões digitais dele e da maioria de seus colegas de corte na farsa lavajatista. Nas circunstâncias brasileiras, a harmonia entre os três poderes é ideologia sem qualquer sustento para além das aparências e, mesmo quando "unidos e harmônicos", estão orientados pela economia política do rentismo que tem na superexploração do povo seu fundamento comum. Mais do que em qualquer outro momento de nossa história recente, aqueles que pretendem efetivamente construir uma "alternativa civilizada" devem compreender que deverão assumir com radicalidade nossos adversários tanto à direita quanto à esquerda do liberalismo.

 Revisão: Junia Zaidan

sábado, 9 de setembro de 2023

PT, "o ultimo refúgio dos canalhas?"

A repetição é tão certa quanto os dias santos no nosso calendário: enquanto o desfile militar ocorre em Brasília após autorização presidencial, alguém nas filas da esquerda liberal aproveita a data nacional para espinafrar o patriotismo ou qualquer forma mais fecunda de nacionalismo como se estivéssemos diante de uma lepra ou contágio capaz de nos levar de maneira definitiva ao abismo e ao caos.

O bordão predileto da esquerda liberal semi-analfabeta em economia política é a conhecida sacada de Samuel Johnson contra os oportunistas ingleses do século XVIII (1774): "o patriotismo é o último refúgio dos canalhas". O leitor desavisado divulga a crítica fora de tempo e lugar convicto de que toda manifestação de patriotismo e nacionalismo seria expressão de irracionalismo da direita. O mundo é das nações, é também um mundo capitalista ordenado pela lei do valor e falseado pelo estado nacional, recurso especialmente importante para os países imperialistas. Ou seja, tudo que os preços de produção não resolvem na concorrência capitalista é solucionado por uma boa dose de nacionalismo econômico na forma de protecionismo que somente os estados imperialistas podem praticar enquanto condenam a prática a todos os seus adversários. 

A afirmação inocente e irresponsável condenando o "patriotismo" termina por levar águas para o moinho da direita na exata medida em que o nacionalismo - especialmente aquele que denomino revolucionário - antes de fortalecer a luta pelo socialismo termina por permanecer como monopólio da direita. A esquerda liberal é pródiga em se definir cosmopolita embora distante do espelho não passe de um subproduto ridículo do Partido Democrata dos Estados Unidos com visitas à Bernie Sanders e direito a fotos com Alexandria Ocasio-Cortez em recente giro de inspeção no Brasil.

Panfleto de Johnson de 1774

No 7 de setembro - tal como invariavelmente ocorre todos os anos! - recebi num grupo de aplicativo de celular texto de professor universitário onde o postulado de Samuel Johnson é repetido com enorme dose de ignorância sobre sua origem, reproduzindo asneiras como se fosse sabedoria ou mesmo erudição. A crítica de Johnson segundo a qual o patriotismo seria mesmo "o último refúgio dos canalhas" pretendia alertar os patriotas ingleses do século XVIII contra os inimigos da nação, os traidores dos trabalhadores em luta por seus direitos e especialmente contra os sacanas de todo tipo que circulavam em torno do monarca via parlamento. Aqui, como manda a ignorância histórica, é utilizado em seu sentido oposto, destinado a alimentar a dúvida sobre toda e qualquer manifestação nacionalista. Esse procedimento ilustra o quanto os acadêmicos praticam a papagaiada sem conhecimento histórico elementar.

Ademais, o breve texto do acadêmico divulgado em rede digital, "ilustrou" com os tradicionais vícios as quinquilharias retiradas de literatura rebaixada, cuja expressão máxima é o livro de Benedict Anderson, festejado aqui como se fosse o último grito de sabedoria sobre o destino das nações (Comunidades Imaginárias). No entanto, o escrito de Anderson não possui qualquer importância, especialmente para quem vive na periferia do sistema capitalista. Exceto, é claro, porque se trata de ideologia destinada a esterilizar aqui a luta pela soberania. Na mesma linha de argumentação, o clássico texto de Ernest Renan (O que é uma nação?), pronunciado numa conferência na Universidade de París-Sorbonne em 11 de março de 1882, aparece como se fosse suficiente para lançar todas as dúvidas sobre o caráter perpétuo das nações, considerada uma reminiscência da época burguesa em vias de desaparição, razão pela qual toda defesa da pátria seria um exercício não somente improdutivo mas sobretudo duvidoso e, no limite, perigoso. Em defesa de Renan é preciso informar que a despeito de sua precária definição ("uma nação é uma alma, um princípio espiritual... resultado das complicações profundas da história"), o texto indica os perigos daqueles que pretendem afirmar a existência da nação pela força da raça, do idioma, da religião. Entretanto ele evita em dois parágrafos a abordagem exaustiva da "comunidade de interesses" e, a despeito de sua honestidade, não podemos esquecer que o autor escreve desde um país imperialista, a mais burguesa das nações de sua época, a França. Enfim, tanto a defesa do patriotismo de Johnson como os alertas de Renan são apresentados como antídotos diante do nacionalismo quando, na verdade, foram escritos para outro fim. Aqui figuram como expressão da luta ideológica destinada a esterilizar a luta pela soberania. 

A esse respeito, há muito as quinquilharias ideológicas que circulam nas universidades são adotadas acriticamente por partidos da esquerda liberal e especialmente pela militância identitária, como se fosse  ciência certa e não apenas ideologia destinada a iludir trouxas boçais, dentro e fora da academia. Da mesma forma, as misérias dos partidos políticos da esquerda liberal são ignoradas - quando não justificadas!  - pelos acadêmicos como fenômenos secundários ou expressão de determinações sobre as quais não temos qualquer governo e diante dos quais o trabalho político se resume a justificá-los. 

A lenta, inexorável e definitiva adesão do PT à ordem burguesa sob comando de Lula não deixa dúvidas sobre a natureza do processo, embora os acadêmicos desprezem as lições diárias da crise da república burguesa sob condução da esquerda liberal. Os militantes de esquerda que teimosamente resistem no interior do PT têm vida testemunhal e restam apenas como vã tentativa de evitar a decadência política, programática, moral e ética do partido exibida com requinte tanto na oposição quanto no governo. Aqueles que possuem uma molécula de respeito pela história, podem observar que no lugar do antigo militante - mesmo aqueles cativos da consciência ingênua -, agora reina de maneira plena uma bola de parlamentares e burocratas sem qualquer compromisso com o povo alimentados por catolicismo rasteiro agitando a bandeira da filantropia para as maiorias enquanto seu governo engorda sem medida a conta bancária e o poder político de todas as frações do capital reunidos na coesão burguesa. 

Em consequência, a "disputa" nos congressos internos, nas decisões de cúpula, há muito deixou de ser modulada pelo antigo e combativo núcleo de base e/ou a zonal para tornar-se o espaço por excelência do político profissional, representante das distintas frações do capital que você pode ver em seu estado em exemplares quimicamente puros. A metamorfose do PT à condição de partido da ordem permanece como critério social de tal forma que mesmo um partido relativamente jovem como o PSOL já reproduz todos os seus vícios sem nenhuma de suas virtudes originárias! 

No processo de adequação à ordem burguesa, antigos desafetos se filiaram ao PT de Lula para seguir renovados em suas carreiras sob os escombros do sistema político. Adversários acirrados de outrora se elegeram pelo Partido e prosperam na vida pública como "dirigentes" ou ministros de Estado. Inimigos declarados que juraram ódio eterno aos "socialistas do PT" são agora portadores de nova cidadania outorgada pelo próprio Lula ao afirmar Alckmin como "companheiro".

A tragédia não pára por aqui. O vice presidente nacional do PT é um tal Washington Quaquá. notável contribuição fluminense à nova cultura nacional petista. O último candidato a prefeito de São Paulo foi Gilmar Tato, cuja reputação levou milhares de petistas ao voto no candidato do PSOL ainda no primeiro turno. O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues é um autodenominado indígena cuja PM mata tão impiedosamente quanto o bolsonarista Tarcisio em SP. O senador Rogério Carvalho de Sergipe aprovou em plena pandemia o PL 3.877/2020 de sua autoria que autoriza o Banco Central a remunerar depósitos voluntários, o maior assalto ao Estado à luz do dia de que temos notícia. Na Petrobrás, o senador petista pelo Rio Grande do Norte, Jean Paul Prates, comanda a entrega dos recursos valiosos do petróleo aos rentistas internacionais com sorriso de bom moço completamente amparado por Lula. A qualidade da metamorfose petista é muito evidente mas os acadêmicos e os cínicos preferem acusar o protofascista Bolsonaro como origem e destino de todos os nossos males.

"Éramos felizes e não sabíamos"

No terceiro mandato, tudo ficou ainda pior. Na véspera do dia da pátria, para dar apenas um exemplo, Lula trocou Ana Moser por um deputado de nome Fufuca, um sujeito que votou pelo impeachment de Dilma e agora é o oitavo membro do bloco "golpista" no governo de reconstrução nacional... Na semana da Pátria, Lula defendeu - pasmem! - o voto secreto dos membros do STF como forma de proteger os ministros da Corte Suprema do protesto popular, uma posição inacreditável até mesmo para nós, acostumados com o avanço desinibido do presidente à direita! Incorrigível, a servidão voluntária praticada pelo petista/lulista ingênuo prefere registrar que o presidente tinha ao seu lado no desfile militar várias mulheres, um contraste "simbólico" com o desfile anterior presidido pelo protofascista, enquanto ao petista autêntico, quase uma peça de museu, resta-lhe o lamento solitário num canal de Youtube. Uma miséria!

Voltemos a Johnson e a questão nacional. O desfile militar e principalmente o estéril discurso do dia da pátria pronunciado por Lula em horário nobre na véspera do 7 de setembro só não envergonha porque desarma as maiorias e não toca nos nervos de nossa crítica situação. Entretanto, os acadêmicos mantêm fidelidade à Lula como se o país não tivesse outro horizonte senão aquele traçado pelo Partido Democrata, o Vaticano e a coesão burguesa fortalecida pela economia política do rentismo tocada por Lula e Haddad. Portanto, o recurso aos textos esquecidos não produzem sequer a desconfiança de que algo semelhante poderia estar acontecendo aqui, em baixo de seus narizes. Quando Johnson proclamou em alto e bom som que "o patriotismo era o último refúgio dos canalhas" pretendia nada menos do que a defesa de seu partido, o patriotismo. Não era a denúncia do patriotismo ou do nacionalismo, mas, ao contrário, sua defesa, destinada a preservar os patriotas na luta contra os desmandos do rei e a corja de parlamentares que sustentavam a monarquia!

Na cabeça dos acadêmicos, a despeito de tantas evidências, a pergunta não emerge: acaso seria o PT, "o último refúgio dos canalhas"? 

Revisão: Junia Zaidan

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

O inimigo aparente

  

Nós que nascemos no aparente, poderíamos suportar o real?

Fernando Pessoa

 

A aparência é a essência de nossa época – aparência é a nossa política, aparência a nossa moral, aparência a nossa religião, aparência a nossa ciência.

Ludwig Feuerbach

 

“... toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem diretamente...”

Karl Marx

 

 

Há algum tempo – não saberia dizer com precisão quando o fenômeno realmente iniciou – a luta política assumiu entre nós uma forma “simbólica”, para dizê-lo no jargão acadêmico. O real importa pouco, mas a disputa pelo “simbólico” ou “imaginário” simula-se quase redentora! A radical operação é consequência da ofensiva burguesa em curso responsável por confinar a esquerda à disputa meramente moral, como se fosse possível transformar a realidade com a simples mudança de mentalidade ou a disputa de valores. É uma vitória considerável da ideologia das classes dominantes e um recurso cínico e impotente da esquerda liberal, pois enquanto essa busca tão somente um lugar confortável no interior da ordem burguesa, àquela amplia de maneira inédita sua dominação político-ideológica na sociedade capitalista sem verdadeira contestação. A afirmação de valores supostamente “humanistas” por parte da esquerda liberal, ao contrário da vã pretensão, apenas valida a sociedade capitalista no reforço do pluralismo tolerado pela direita liberal sempre que as condições da crise econômica e do regime político permitem.

A análise sobre recentes acontecimentos indica que, em larga medida, a esquerda liberal dominante não cansa de combater inimigos opacos e em não poucos casos, até mesmo inimigos invisíveis ou fantasmagóricos. A primeira vez que observei o “ato” foi quando alguns estudantes orientados pela esquerda liberal denunciaram as pichações nos banheiros de nossa universidade como um atentado à moral, aos bons costumes e, sobretudo, destinados ao enfrentamento do racismo, do nazismo e do fascismo. Em minha trajetória política, jamais me ocorreu o uso de pichações no banheiro para convocar as massas ou mesmo para fazer agitação política... Tampouco ouvi algum publicitário exitoso, dirigente partidário experiente ou líder sindical antenado, indicar as paredes dos banheiros como meio para insuflar as massas; afinal, a despeito do eventual uso diário, a capacidade de difusão de uma pichação ao lado do vaso sanitário não pode competir remotamente com qualquer grupo de whatsaap de uma Atlética ou Centro Acadêmico. É ocioso falar do poder de divulgação do Face, Twitter, Instagram ou canais de Youtube, com milhares de seguidores... O contraste é demasiado gritante para ser ignorado: enquanto até mesmo os políticos burgueses lançam mão dos benefícios da big data e o governo conservador petucano defende uma CPI das “Fake News”, os universitários se ocupavam das pichações em banheiros?

As pichações anônimas denunciadas na UFSC – de inequívoco apelo racista – também praticavam apologia ao nazismo. Não por coincidência, pouco tempo depois, a polícia federal identificava e prendia quatro estudantes de nossa universidade organizados em uma “célula nazista”. Em sessão extraordinária realizada em 22 de novembro de 2022, o CUn reuniu, discutiu o problema e votou por unanimidade o merecido repúdio da instituição à propaganda da direita liberal. Entretanto, identificado e repudiado o crime pela instância máxima da universidade, a batalha cessou.

Ao utilizar os banheiros no CSE no final do semestre passado observei que ainda exibem propaganda de todo tipo – racistas e homofóbicas – mas eram especialmente insistentes e agressivas contra os comunistas. Genocidas é o adjetivo mais leve destinado a nós, os vermelhos. É ilustrativo da conduta da esquerda liberal acolher e proteger o “outro”, embora a defesa dos comunas não figure entre suas prioridades. Assim, o repúdio ao racismo e ao nazismo são frequentes enquanto o anticomunismo é simplesmente ignorado como se não existisse. Há, de fato, uma hierarquização moral do protesto, razão pela qual os comunistas não são objeto de solidariedade. Nada no mundo da política ocorre por acaso, motivo suficiente para colocar alguma atenção nesse esquecimento ou omissão deliberada. Ademais, ninguém com os dois pés na rapadura pode ignorar a importância social do anticomunismo em nossa história. A propósito, pesquisa de recente divulgação indica que 31% da população teme a ameaça comunista e outros 13% aceitam a hipótese em parte. A ideologia anticomunista é recurso antigo do liberalismo e notadamente mais eficaz diante da despolitização produzida pela hegemonia liberal no interior da esquerda nas duas últimas décadas. 

Um retrato na parede

Expressão de tempos não tão distantes, na entrada do Centro Sócio Econômico (CSE) dividem a parede de maneira quase harmônica dois personagens: Karl Marx e Ludwig Von Mises. A origem da homenagem a Marx foi o evento anual da WAPE (World Association for Political Economy) que o IELA sediou, com a presença de muitos intelectuais de vários países do mundo em 2013 (China, Índia, Canadá, Vietnam, Escócia, México, Alemanha, Estados Unidos, Japão, Brasil, etc). O registro comemorativo daquele seminário internacional é uma placa com a célebre sacada de Marx elaborado com o refinado estilo literário do alemão presente no Manifesto Comunista de 1844 (“tudo que é solido se desmancha no ar”). Algum tempo depois de nosso evento – numa revanche que me rendeu muito riso e nenhuma indignação – os liberais de direita solicitaram a diretora do CSE permissão para a publicação de outra placa em homenagem ao teólogo austríaco Von Mises ao ladinho do Marx. Na verdade, o ato cômico não me importou, pois, a disputa “simbólica” se referia a algo concreto: a hegemonia liberal no currículo de economia era real e desde sempre dominante; portanto, nada mais justo que figurar na parede o que já estava na cabeça da maioria dos alunos e professores.

Diante da amnésia social que marca nosso tempo, é preciso recordar que a disputa ideológica nas universidades já foi muito mais intensa que a agitação barata em banheiros. A luta ideológica não é simbólica ou imaginária; ao contrário, historicamente foi responsável, por exemplo, pela mobilização estudantil à sucessivas reivindicações de reformas curriculares destinadas a colar sua formação às condições da realidade brasileira, orientada por espírito crítico e sólida formação científica. Mas à falta de memória atual corresponde a ausência de um movimento estudantil forte, representativo e real (o mesmo ocorre com os professore sob circunstâncias particulares). No entanto, a direita liberal não desistiu da luta ideológica e, em consequência, segue soberana no comando das ações sem as “mediações” que a esquerda liberal tanto valoriza como refúgio político.

A campanha contra o IELA

A propósito, lembro de uma época recente em que nós, os bolivarianos, sofríamos uma campanha cerrada de maneira bem menos discreta e com meios infinitamente mais potentes do que as pichações confinadas nos banheiros da UFSC. Os elogios aos estudos latino-americanos desenvolvidos nas duas últimas décadas no IELA-UFSC não brotavam em paredes reservadas à meditação solitária determinada por razões fisiológicas; ao contrário, a direita liberal não vacilava em cuidar de nossa reputação com insistência e método. Há pouco tempo, o trabalho ideológico da direita liberal utilizava a Revista Veja na qual a coluna de Reinaldo Azevedo cumpria função estratégica para combater e manufaturar a opinião pública contra nosso Instituto. Fundado em 2006, o IELA-UFSC já nasceu sob intensa campanha contra sua existência.

Em 29 de janeiro de 2009, Reinaldo Azevedo não vacilava nas páginas da Veja:

Na Universidade Federal de Santa Catarina, existe um troço chamado Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA)... A principal atividade do IELA é promover, atenção!, as Jornadas Bolivarianas. Sim, vocês entenderam. Em abril, acontece a quinta edição. Aí o leitor cético pensa assim: “Ah, Reinaldo, a UFSC não tem nada a ver com isso”. Tem, sim. Na página oficial da universidade, as tais jornadas merecem destaque, como vocês poderão ver.

Em 28 de outubro de 2011, o colunista reproduzia carta de um estudante com a manchete de letras garrafais:

“A Universidade Federal de Santa Catarina é uma das instituições em que o delírio da extrema esquerda chegou longe. Há lá até uma facção bolivariana, acreditem!”

Em 26 de março de 2014, Reinaldo separava novamente o joio do trigo: a maconha na UFSC não era bom sinal, mas havia coisa muita pior:

De toda sorte, consomem-se drogas mais pesadas na Universidade Federal de Santa Catarina. Que eu saiba, é a única do país que conta com um núcleo bolivariano: o “Jornadas Bolivarianas”, que tem o “Instituto de Estudos Latino-Americanos”. No mês que vem, eles vão até fazer um seminário. Convenham: até que a maconha, nesse contexto, é inofensiva, né? Já o bolivarianismo, não. Este mata mesmo, como prova a Venezuela.

Na mesma linha, Felipe Moura Brasil, outro jornalista devoto do liberalismo e anti-comunista convicto repetia que

A UFSC é aquela universidade onde há “Jornadas Bolivarianas”, nas quais é ensinada uma droga muito mais pesada que a maconha, como já comentou Reinaldo Azevedo. La se reclama das balas de borracha da política contra aqueles que infringem a lei, enquanto se faz propaganda da ditadura assassina que manda chumbo grosso em manifestantes que exigem democracia.

O cerco ao IELA-UFSC permaneceu por anos como pauta permanente na principal revista do jornalismo brasileiro com óbvia repercussão em dezenas de blogs, comentaristas de rádio e TV, com direito a discursos parlamentares pelo país afora. Até mesmo no episódio em que a polícia buscava consumidores ou supostos traficantes na UFSC, o problema de fundo deveria ser o... IELA

Após a “batalha do bosque” ocorrida em 25 de março de 2014 no CFH – recebi a visita de uma jovem jornalista da afamada revista semanal (porta voz mais importante da direita) pronta para me espetar com perguntas previamente elaboradas em conjunto com seu editor e o núcleo duro da publicação. O alvo era claro: o “caos” na UFSC tinha certamente um mentor intelectual, alguém por trás dos panos com astúcia e financiamento externo capaz de conspirar contra a paz de nossas inocentes universidades. A aprendiz de jornalista buscava provas porque já tinha firmes convicções anti-bolivarianas.

A campanha da Revista Veja contra o IELA gerou repúdio irrestrito entre nós ao ponto de todos seus membros recomendarem não receber a jornalista com o “sólido argumento” de que aqui, na UFSC, somente o diretor do CTC teria concedido a entrevista; ao contrário das previsões sombrias, a entrevista foi ótima e lamento não ter solicitado permissão para gravá-la. As perguntas concluíram abruptamente quando a repórter indagou sobre as razões das Jornadas Bolivarianas e da presença inusitada e suspeita da concepção bolivariana presente em nossa universidade, especialmente grave quando considerados os perigos decorrentes do conceito de “Pátria Grande”, que, aos seus olhos, antecipavam o fim ou a diluição de nossa integridade territorial e nosso futuro como nação. Não tive outro recurso senão ler com parcimônia e lentamente – para espanto da jovem e desavisada jornalista – o primeiro capítulo de nossa constituição, especialmente importante e claro no parágrafo único, aquele que estabelece os princípios fundamentais da Constituição de 1988

“A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

A surpresa da “foca” não poderia ter sido maior diante da inesperada revelação do conteúdo bolivariano da Constituição de 1988; contrariada, sem esconder a enorme decepção, ela agradeceu, encerrou melancolicamente a entrevista e saiu afirmando a publicação da matéria na nova edição. No fim de semana, num caixa de supermercado, vi a nova edição da Revista Veja; folhei ali mesmo e constatei que nada havia sido publicado. Na segunda feira, a primeira hora, liguei para a jornalista e perguntei, curioso, sobre a sorte da entrevista: “professor, sabe como é, a situação no país é muito volátil e tudo é muito rápido... a agenda mudou, emergiram outras urgências e o editor decidiu se dedicar a outro tema”. Claro, “entendo perfeitamente”, respondi, quase as gargalhadas. Um foca é um foca! Um foca servil será sempre um jornalista servil.

No IELA, desde sempre nos orientamos pelo jargão popular segundo o qual “bom cabrito não berra” e, portanto, jamais denunciamos a campanha midiática contra o bolivarianismo do Instituto. Ao contrário, a cada peça publicitária contra o esforço intelectual produzido aqui, simplesmente dobrávamos a aposta. Um personagem de Cervantes tão ignorado quanto incompreendido na ciência política, orientava nossos passos: se os cães ladram, é porque a caravana passa.

A consciência ingênua que informa a esquerda liberal cuja maior expressão é indiscutivelmente Lula, somente percebeu a consistência ideológica da campanha da direita quando, numa disputa presidencial, a direita ultraliberal indicou o futuro venezuelano como a ante-sala do caos definitivo do país, além de exemplo da irracionalidade humana da qual todo eleitor supostamente deveria fugir. O brado da direita era claro: “O Brasil não será uma Venezuela”! A despeito da agressividade, a campanha dirigida contra nós do IELA não sensibilizou ninguém; entretanto, mais tarde, a esquerda liberal percebeu o problema a partir do viés eleitoral porque na prática, é cativa da concepção parlamentar de política; ou seja, o que não tem expressão eleitoral, não existe! Na eleição presidencial de 2014 a “ameaça bolivariana” era ingrediente decisivo na propaganda da direita contra a esquerda liberal ao apontar a Venezuela como expressão de nosso futuro e inevitável fracasso, caso Haddad vencesse a disputa presidencial.

O leitor sem memória dirá: “Reinaldo Azevedo, escreveu isso”? Sim, o jornalista agora dedicado à apologia da esquerda liberal contra a ameaça bolsonarista era um dedicado servidor da ideologia anti-bolivariana! Ele mesmo!! Ontem o rapaz estava dedicado à luta contra a esquerda radical e hoje, convertido, é devoto aprendiz da esquerda liberal contra o “neofascismo”. “Rei”, como é tratado pelos íntimos, nunca brinca em serviço. Naquele tempo, a revista Veja vendia nada menos que 1 milhão de exemplares semanais e turbinava também a versão eletrônica. A linha editorial era anticomunista, mas o foco era mesmo o sistemático ataque aos bolivarianos. Enquanto a direita liberal considerava o bolivarianismo um tumor mais maligno e agressivo que o comunismo, a esquerda liberal dava de ombros, afinal, tal como expressou o ex-chanceler mexicano e acadêmico Jorge Castañeda instalado confortavelmente na Princeton University, Lula em seus dois mandatos matinha saudável distância de Hugo Chávez, a representação mais fiel da “esquerda irracional”.

A despeito de tropeços, a campanha ideológica da direita seguiu seu ritmo normal mas ganhou contornos mais graves aqui na UFSC. Nas edições das Jornadas Bolivarianas de 2015, 2016 e 2017 a direita liberal não vacilou em intervir diretamente em nossos eventos. Nas três edições – uma realizada no auditório do CSE e as demais na reitoria – a direita ultraliberal invadiu nossos eventos em protesto contra a existência do IELA e a presença de convidados comprometidos com “terrorismo” e “assassinatos em massa” em seus países, especialmente na Venezuela. Em uma das invasões, a “terrorista” em questão era uma perigosa ex-ministra da educação da Venezuela responsável – segundo a UNESCO – de erradicar o analfabetismo no país de Bolívar. Os atos da direita liberal eram devidamente filmados por seus militantes – entre os quais duas estudantes de pós-graduação do curso de Direito – e poucos minutos depois se proliferavam nas redes digitais na conhecida operação inaugurada por Edward Bernays em 1933 destinada a organizar o caos.

Nos atos da direita liberal contra o IELA não faltavam elogios a todos nós e, especialmente salientes, era o adjetivo de... “genocidas”. A divulgação das imagens obedecia à lógica do “cancelamento”, mais tarde utilizada em larga medida pela esquerda liberal identitária. A ação da direita não era episódica; ao contrário, foi cumulativa e, portanto, sistemática. A interrupção da prática ocorreu quando de maneira preventiva reuni-me com o reitor às vésperas das Jornadas em 2018 advertindo pessoalmente que se os liberais de direita invadissem novamente nosso evento – posto que a reitoria após reiterados pedidos respondia afirmando seu zelo apenas pelo patrimônio material – nós mesmos cuidaríamos da segurança do evento à maneira bolivariana. Foi o suficiente para conquistar a paz.

No entanto, a despeito de nossa firme disposição, a verdade é que a pressão da direita liberal contra os bolivarianos e seu “estranho” Instituto diminuiu também por razões político-ideológicas. A ofensiva ultraliberal arrefeceu aqui na UFSC por causa elementar: é sempre mais fácil adorar Von Mises e Hayeck em abstrato do que justificá-los a luz da ação de Michel Temer, Henrique Meireles e Pedro Parente. Da mesma forma, é melhor indicar o paraíso liberal no livro-texto dos teólogos do que sustentar as “virtudes” de um governo ultraliberal de Bolsonaro e Mourão. O liberalismo tem certo poder de sedução quando discutido em abstrato... O aprofundamento da linha liberal a partir do governo Temer foi gradualmente tirando o encanto do apelo ideológico do liberalismo.

Não obstante, a campanha contra as universidades públicas seguiu seu curso normal e creio que nem mesmo o suicídio de Cao ocorrido naquele triste 2 outubro de 2017 logrou estancar a ofensiva burguesa. O governo do protofascista Bolsonaro tentou o “Future-se” mas, sem recursos para cooptar uma parte dos universitários, assistiu impotente à derrota do projeto pela força combinada do protesto estudantil, do rechaço da burocracia universitária e de parte importante de professores e técnicos. Assim, durante seu mandato atuou na regra básica: congelar e contingenciar recursos orçamentários. De resto, limitou-se a recusar o primeiro da lista nas eleições para reitor e nomear, aqui e ali, reitores de sua conveniência.

A universidade, ao contrário do que supõe a consciência ingênua, encontra-se em situação difícil. O fracasso completo do projeto da “universidade inclusiva” (Haddad e Janine Ribeiro) e a impossibilidade real cada dia mais evidente de avançar para um novo impulso industrializante, redefiniu drasticamente a função social da universidade no terreno da ciência e da tecnologia. O academicismo dominante no seu interior opera fortalecendo a consciência ingênua e paralisando a necessária transição para a consciência crítica; por isso, o academicismo representa tão somente uma espécie de autolegitimação de nossa existência sem validação social. É verdade que em algumas áreas existem projetos vinculados às empresas (estatais e multinacionais) além de extensões realizadas junto aos chamados “movimento sociais”. A despeito de eventuais méritos, semelhantes iniciativas são completamente insuficientes para justificar a existência das universidades. A percepção dessa inutilidade social aparece entre nós pelo reclamo permanente contra a austeridade orçamentária particularmente aguda desde janeiro de 2015 quando Dilma – empunhando o bordão de seu segundo mandato, a “Pátria Educadora” – cortou quase 10 bilhões do orçamento na educação; após o empurrão da ex-presidente, o bonde da austeridade não parou mais. Nesse ano, a “reconstituição do orçamento” realizado pelo governo é efetivamente simbólica. Em abril, Lula anunciou míseros 2,44 bilhões aos famintos reitores, montante que, quando dividido, é notoriamente incapaz de resolver a grave crise de investimento e custeio que se acumula durante décadas entre nós e, ademais, totalmente insuficiente diante das exigências sociais de um país dependente e subdesenvolvido com enorme dependência científica e tecnológica. Na verdade, além da propaganda oficial, as universidades seguem submetidas a mais completa austeridade. A diferença agora é que nem mesmo um modesto “protesto simbólico” há entre nós. Aos que recusam meu diagnóstico, busquem informações sobre a última “disputa” pela presidência da Andifes.  

Nessas circunstâncias – sem o projeto da universidade necessária e com financiamento escasso – podemos compreender o insistente recurso aos inimigos invisíveis como mera expressão da ideologia da esquerda liberal destinado a justificar nossa existência que, tal como afirmou Florestan Fernandes, somente pode tirar os recursos da miséria do povo. Na solidão política ou sob hegemonia do liberalismo de esquerda, o professor, aluno ou técnico, busca justificar sua existência sem conexão real com a gravíssima e histórica condição de dependência. A vitória eleitoral da esquerda liberal nas eleições presidenciais e a firme decisão do governo petucano (Lula/Alckmin) em seguir com a econômica política do rentismo agora dirigido pelo uspiano Haddad, indica que as tensões inerentes da economia e do regime político em frangalhos, tende a fomentar ações da direita também contra a existência das universidades públicas. É difícil não reconhecer que seremos um alvo fácil a despeito do otimismo interessado daqueles grupos que em nosso meio se julgam suficientemente produtivos ou úteis para escapar dos cortes e sobreviver, mesmo com o eventual fim do sistema universitário atual. 

É preciso dizê-lo de maneira clara: não temos fascismo no Brasil! O grau de liberdade que de fato desfrutamos é imenso a despeito da renúncia voluntária à ação política de natureza crítica. Nossos sindicatos não estão sob intervenção; realizam congressos e deflagram greves. Os partidos de esquerda não estão proscritos: lançam candidatos à presidência e elegem deputados à luz do dia. As editoras não são empasteladas, estão todas abertas e os jornais das organizações de esquerda são regularmente publicados. A liberdade para movimentos sociais é igualmente ampla nos limites do direito burguês. A corte suprema funciona como sempre funcionou, tal como o congresso nacional. A imprensa burguesa-livre pode ser acessada sob a proteção da livre escolha. Enfim, todos os cânones do liberalismo são respeitados pela classe dominante a despeito dos conflitos com o governo do protofascista Bolsonaro. Qual a razão então para a invocação do fantasma do fascismo? Ora, ocorre que a evocação fantasmagórica do fascismo é um instrumento valioso para justificar a paralisia política e a submissão intelectual e política ao governo petucano diante das classes dominantes. É uma paralisia intelectual profunda, jamais vista em nosso país, inexistente durante a ditadura! É também uma covardia político-intelectual sem precedentes em nossa história e, ademais, um cimento seguro para que a classe dominante possa – quando e se necessário – lançar mão de uma modalidade qualquer de terrorismo de Estado para assegurar seus privilégios de classe e seu domínio político completo sem oposição ou resistência necessária. É uma servidão voluntária fora do contexto medieval do século XVI!!!

A despeito da derrota eleitoral da direita liberal, o inimigo aparente segue aqui distribuindo as cartas comodamente porque é importante para o sustento da esquerda liberal limitada à enfadonha repetição da digestão moral da pobreza no terceiro mandato de Lula sob a “novidade” de sua versão petucana Lula/Alckmin.

Portanto, o miserável artifício do inimigo aparente cumpre uma função ideológica para o liberalismo de esquerda e o apoio a um governo que nos assuntos fundamentais do Estado, da economia, da consciência de classe e da disputa cultural, se comporta como se estivéssemos condenados a viver na margem, figurando tão somente como o testemunho impotente sob a bandeira do pluralismo.

Eis a razão pela qual a defesa das ações afirmativas opera objetivamente como renúncia à busca do acesso universal à universidade, ou seja,  o fim do vestibular; o “combate” às pichações contra o “fascismo” é útil para justificar a renúncia real da disputa ideológica a partir de interesses de classe; a defesa das políticas de permanência ignora o desespero originado no desemprego elevado e nos baixíssimos salários impostos a massa dos trabalhadores,  nossos potenciais alunos; da mesma forma, a defesa abstrata da universidade se cala diante da grave evasão escolar cuja origem é atribuída ao mundo pós pandêmico e às “tendências mundiais”; o elogio ao reajuste das bolsas de pós-graduação ignora a maior crise de legitimidade e da quase nula função social da universidade nas condições do capitalismo dependente rentístico. A despeito de suas limitações, essa linha orientada pelo menor esforço seguirá existindo porque é peça fundamental no sustento do atual governo e jamais o caminho para superar nossas graves limitações e impasses. Portanto, não estamos diante de políticas transitórias, necessárias para a conquista de outra universidade – ilustrada, com força científica, atenta à realidade brasileira e aos ares do mundo – mas tão somente de políticas ùteis à defesa eleitoral do governo petucano.

Ademais, constitui grave erro afirmar os limites político-ideológicos dominantes a partir do surrado argumento da “adversa correlação de forças” quando temos combates urgentes ao alcance de nossas mãos! Entretanto, enquanto o inimigo aparente comandar cada passo, cada minuto da existência da maioria dos professores, alunos e técnicos, nada será possível até que os fatos ou as tragédias (como o suicídio de Cancelier, o nosso Cao) nos atropelem novamente. Não seria exagero prever que, diante da eventual emergência do inimigo real – resultado necessário da ofensiva político-ideológica da classe dominante contra todos nós – o grau de resistência seria nulo. Afinal, o progressismo que informa a esquerda liberal já teria sido domesticado em plena liberdade para a mais completa servidão como destino.

Revisão: Junia Zaidan

 



[i] Professor do departamento de economia e relações internacionais da UFSC e presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA-UFSC)