A informação é oficial: segundo o
ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Wellington Dias, no cadastro
do Programa Bolsa Família estão inscritos mais de 2 milhões e oitocentos mil
brasileiros com diploma de ensino superior, muitos deles com pós-graduação, a
despeito da ideologia liberal, que afirmou a relação positiva entre o nível de
renda e a formação educacional. A quinquilharia ideológica rendeu até prêmio
Nobel para Gary Becker e Teodoro Schultz, ambos “teorizando” na linha de
reforço do liberalismo. Entretanto, a realidade é obstinada e não cede
facilmente aos ideólogos, mesmo aqueles agraciados e festejados na academia e
na imprensa burguesa.
Os partidos da esquerda liberal,
os sindicatos vinculados às universidades, os defensores das políticas de
inclusão, os acadêmicos preocupados com a sorte da universidade pública
desprezaram completamente a informação ministerial. De certa forma, é tão compreensível quanto revelador: ver universitários na vala comum do sofrimento humano parece completamente absurdo ao senso comum. No Bolsa Família – em maio -
estavam inscritos 21,1 milhões de brasileiros. O programa já foi tomado como a
medida social mais importante aplicada na periferia capitalista, colecionando
elogios que vão do Banco Mundial aos padres católicos da Trindade, em
Florianópolis.
Nos governos de Lula e Dilma, o
Bolsa Família foi considerado pela consciência ingênua como exemplo de ação
social destinado a mitigar o sofrimento, a miséria e a exploração dos
trabalhadores; no limite, foi também considerado, não sem boa dose de cinismo,
como ação de combate à pobreza! Entretanto, o governo liberal e corrupto de
Michel Temer não interrompeu a benesse e – pasmem! – o protofascista Bolsonaro
e seu ministro ultraliberal Paulo Guedes não somente elevaram o benefício aos R$ 600,00 atuais, como ampliaram
o cadastro (entre outras intenções, para ganhar votos na última eleição de
maneira ilegal). O entusiasmo político e, em consequência, a propaganda sobre a
benevolência do programa cederam, mas a reflexão crítica ainda não emergiu. A
caridade católica, creio, tem ampla aceitação numa sociedade com os níveis de
desigualdade típicas de países periféricos e dependentes.
No Brasil, país onde a superexploração do trabalho comanda o processo de acumulação de capital, a concentração da renda é a norma e a miséria ou a “desigualdade”, sua expressão visível. A PNAD de 2022 indica que nada menos do que 73,1% da população economicamente ativa recebe entre 1 e 2 salários mínimos, míseros R$ 2.640,00 ao mês. A tragédia é ainda maior quando desagregamos um pouco mais os dados: 11,8% recebe até ½ salário mínimo (R$ 660,00) e 59,9%, até 1,5 salário mínimo!!! O Dieese informa que a diferença entre o salário mínimo nominal e o salário mínimo necessário cresceu na última década: o primeiro é de R$ 1.302,00 enquanto o segundo alcança R$ 6.676,11. Em bom português, a informação estabelece que a vida para milhões de trabalhadores é um inferno ou algo muito próximo disso.
Diante dessa estrutura salarial, nós,
professores das Instituições Federais de Ensino Superior nos encontramos no topo da terrível pirâmide,
ou seja, entre os 5% que mais recebem no país. Portanto, podemos levar uma vida
pequeno burguesa relativamente folgada sem contato algum com o abismo social no
qual estão afundados a maioria dos trabalhadores. Não carrego culpa alguma por
estar aqui, mas tampouco sou indiferente à realidade. Em consequência, tenho
plena consciência sobre a origem de certo orgulho exibido por muitos colegas da
condição de professor universitário e não ignoro as razões pelas quais se defendem,
afirmando a ideologia meritocrática. A constatação não tem carga ou condenação
moral alguma, pois aprendi com Marx que a
moral é a impotência em ação. Na verdade, pretendo apenas chamar a atenção
para o caráter social de nossa posição numa sociedade de classes situada num
país dependente e subdesenvolvido, nossa mais importante característica.
As universidades são instituições
de Estado e, desde Darcy Ribeiro e Álvaro Vieira Pinto, constituem valioso
instrumento de desenvolvimento científico, tecnológico e cultural. Entretanto,
é visível que a função social da universidade no Brasil está rebaixada a níveis
críticos nunca antes observados. A política de inclusão social equivale, na
prática, a certa defesa moral da universidade e – com ou sem consciência – um
meio de validação social da instituição a partir de uma concepção de mobilidade
social inerente à sociologia positivista. Ocorre que na sociedade de classes –
especialmente num país dependente e periférico – os casos nos quais um filho da
classe trabalhadora “vence” no interior da sociedade respeitável não passam de “simbolismo” ou, nos meus termos, de uma
ideologia cuja função é a validação da dominação classista. O auge dessa
ideologia pôde ser observado, por exemplo, na eleição de Barak Obama para a
Casa Branca, cuja receita ele aprovou nas prévias do Partido Democrata quando
derrotou seu adversário identitário afro-americano com a mesma perspectiva, que
expressou nas duas disputas presidenciais: o “sonho americano” da mobilidade
social via valorização da classe média.
O Bolsa Família possui três objetivos estabelecidos na MP 1.164: o combate à fome, a proteção social das famílias em situação de pobreza e “a interrupção do ciclo de reprodução da pobreza entre as gerações”. Na verdade, cumpre marginalmente os dois primeiros e apenas pode anunciar a intenção no terceiro. Entretanto, em todos os casos, tangencia o grave problema da fome e nem de longe toca na reprodução da pobreza intergeracional. Uma organização criminosa como o Banco Mundial publicou no final de 2002 o relatório Poverty and shared prosperity, no qual anuncia a boa nova: um “pobre” é aquele que recebe menos de US$ 2,15 ao dia, ou seja, no câmbio de hoje, quando escrevo esse artigo, míseros R$ 10,65 diários. Você já se imaginou vivendo com semelhante “quantia” quando valida as “conquistas” dos governos da esquerda liberal em nosso país? Esse é o critério da cidadania que devemos adotar?
Ora, um trabalhador que recebe
US$ 2,17 desaparece da estatística e,
nesse caso, o país pode deixar serenamente o “mapa da fome”. Não é uma
maravilha? A direita liberal cala sobre o assunto enquanto a esquerda liberal
grita a pleno pulmões as “conquistas sociais de seus governos” que apenas
logram superar a miséria e a fome a partir dos critérios estatísticos do...
Banco Mundial!!!! Na prática, a esquerda liberal adota a definição de cidadania
de nossos algozes e, em consequência, pratica em larga e cínica escala a digestão moral da pobreza. Há um
perverso pressuposto oculto na
operação ideológica: é impossível mudar radicalmente nossa realidade! Os
sabichões da esquerda liberal afirmam que o tempo das revoluções sociais
desapareceu para sempre e não resta às pessoas racionais e realistas senão a
administração democrática da pobreza nos marcos da ordem burguesa. O
subdesenvolvimento – uma formação social monstruosa, segundo o pensamento
crítico das décadas de sessenta e setenta do século passado – é agora
considerado uma realidade intransponível. Ajoelhe: o obscuro Francis Fukuyama
venceu nas fileiras da outrora esquerda radical!
A informação do ministro de Desenvolvimento e Assistência Social não despertou atenção de ninguém. Entretanto, ela exibe o limite objetivo da política social até agora praticada como se fosse, de fato, virtude republicana. Ademais, indica que o diploma universitário não é via de mobilidade social nas sociedades latino-americanas, como pretende o liberalismo em qualquer versão; de resto, erodiram-se o discurso e a prática das políticas de inclusão social praticadas pela esquerda liberal desde uma perspectiva moralista, rasteira e completamente funcional à ordem burguesa. Não me desespero: a despeito do otimismo cínico dominante, pode ser que o tempo da queda das ilusões tenha chegado e, finalmente, possa abrir as portas da consciência crítica.
Revisão Junia Zaidan
Estou enormemente distante em ser expert em economia, mas me parece que duas moléculas de lucidez sejam suficientes para compreender que nenhuma moeda - qualquer que seja ela - representa uma quantidade constante de valor. Dito isso é por certo que o que US$2,15 compravam em 2002 não é o mesmo que compram hoje... Muito esquisito esse critério do Banco Mundial! Como se a pobreza fosse reduzida meramente a uma aparência estatística. E o próprio conceito "pobre" não seria algo vago, induzindo a reduzir as relações entre classes sociais a filantropia estatal/privada?
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