sábado, 24 de setembro de 2022

O comissário marxista do PT

No Canal Resistentes participo há mais de dois anos numa coluna quinzenal na qual abordo temas políticos da América Latina e, obviamente, também do Brasil. Na última edição do programa exibido em 17 de setembro Claudio Passos organizou um debate entre Elias Jabour – membro do comitê central do PC do B – e eu para discutir a crise chilena e as eleições presidenciais. Na oportunidade, Elias sustentou as posições de seu partido convocando voto em Lula já no primeiro turno enquanto eu defendi o voto nulo na disputa presidencial. Indagado a respeito, Walter Pomar emitiu uma opinião sobre o evento na qual tratou exclusivamente de minha posição – voto nulo – atribuindo-me o poder de “causar danos ao marxismo”. Elias teve melhor sorte pois Pomar não emitiu palavra sobre a qualidade de seu marxismo.

https://www.youtube.com/watch?v=oV6aNl_C5qQ&t=5186s

A leitura de sua brevíssima sentença sobre o encontro permite concluir que o divisor de águas para sacramentar a verdade sobre o marxismo está determinado por quem vota em Lula e aqueles que negam o voto ao ex-presidente. É Lula – e não o enorme conflito de classes que arde sob nossos pés – o critério da verdade para Pomar. A “análise concreta de situações concretas” possui uma essência eleitoral capaz de qualificar ou condenar toda posição: quem está com Lula toca na realidade e, quem, ao contrário, nega voto ao ex-presidente, não somente está fora da realidade senão que produz imenso dano ao marxismo.

http://valterpomar.blogspot.com/2022/09/nildo-ouriques-ou-sobre-como-causar.html

De minha parte,  recordo que há anos sou um crítico quase solitário dos marxistas que atuam na universidade; estes, na verdade, não representam o “marxismo acadêmico” pois suas contribuições são pra lá de modestas e constituem na grande maioria das vezes mera exegese sem conexão alguma com a evolução da crise brasileira e menos ainda com o futuro da Revolução Brasileira a despeito do conhecimento que eventualmente exibem sobre  a seção V do tomo III de O capital, da Crítica ao Programa de Ghota ou mesmo da Ontologia do ser social de Lukács... Portanto, não estou disposto a aceitar sem reserva a existência de um “marxismo acadêmico” que, nas condições brasileiras, admitiria como uma virtude semelhante àquelas que existem nos Estados Unidos ou na Inglaterra, para dar apenas dois exemplos.

Entretanto, lidando e litigando contra o marxismo que se refugiou na universidade após a domínio estalinista sobre o antigo movimento comunista internacional, eu sou capaz de reconhecer contribuições parciais e mesmo algum esforço bem logrado quando professores encaram temas de fronteira ou aspectos parciais de nossos problemas desde uma “perspectiva marxista” sem, contudo, tocar no nervo da Revolução Brasileira. Nesse contexto, creio que Pomar está muito mais exposto ao “marxismo acadêmico” do que eu e, na verdade, sua sentença sobre meu marxismo não possui os anticorpos que, por ossos do ofício, desenvolvi em quase três décadas de profissão.

O PT é um partido que exibe enorme e definitiva crise ética, programática e política cujo epílogo estamos observando nessas eleições. É um partido que há muitos anos está impossibilitado de desenvolver teoria sobre a realidade brasileira e, em consequência, aqueles que ainda resistem ao processo já concluído de sua completa adesão a ordem burguesa, importam para seu interior de maneira miserável as modas universitárias sem qualquer rigor e reproduzem toda sorte de quinquilharias ideológicas necessárias para justificar com algum “brilho teórico” as disputas eleitorais que, ao fim e ao cabo, ainda mantém o partido “vivo”. Eu devo reconhecer que, vez por outra, vejo o esforço necessariamente improdutivo de Pomar nos congressos ou encontros do PT, sempre destinados a convencer a maioria do seu partido para voltar à rebeldia que exibiu na juventude e, sejamos justos, foi precisamente aquela radicalidade que finalmente construiu a aceitação eleitoral que ainda hoje possui mesmo que sem brilho. Ainda assim, é fácil concluir que Pomar – há anos membro do diretório nacional – não sai ileso da batalha contra a maioria absoluta de seu partido pois o máximo que logrou até agora é simular que o “outrora maior partido de esquerda da América Latina” ainda estaria “em disputa” quando, na verdade, nem mesmo o caldinho de radicalidade que ele e seus companheiros logram manter consegue impedir a conciliação de classe cuja expressão maior não poderia ser mais eloquente: a chapa petucana Lula/Alckmin.

Devo registrar um grave descuido de meu crítico pois enquanto ele me indica como uma espécie de maçã podre capaz de produzir danos na cesta do marxismo, deixa sem cuidado seu próprio pomar. Ocorre que Walter está empenhado na campanha de Lula para presidente e de Haddad para governador de São Paulo. O último acaba de lançar um livro – O terceiro excluído – que ataca de maneira sorrateira a tradição marxista no que ela possui de mais vital, potente e atual. Até agora, não vi palavra de Walter sobre o tema embora seria uma tarefa a altura de um comissário marxista. Mais importante ainda: o candidato de Walter para governador e possível sucessor de Lula no futuro do partido, declara solenemente que seus “gurus intelectuais” que terminaram por lhe influenciar decisivamente na escrita de um livro abertamente reacionário são três conhecidos e festejados acadêmicos uspianos (Ruy Fausto, Roberto Schwarz e Marilena Chauí); todos eles com pinta de “marxistas” embora com reparos suficientemente claros para não se confundir com a tradição crítica de Marx e Engels.

No Brasil, ninguém vacilaria em desconhecer que São Paulo é o coração burguês do país e que a USP, embora cada dia mais decadente na batalha das ideias, ainda mantém considerável influência acadêmica no país. Ora, os três festejados uspianos homenageados por Haddad exercem de maneira distinta influência notável no partido de Walter e, creio, até mesmo ele estaria disposto a admitir caso fizesse cuidadosa revisão teórica e política, o quanto o “marxismo acadêmico” uspiano foi sempre responsável em larga medida para as sucessivas derrotas que meu crítico acumula na luta interna e que o condenaram a condição marginal nas decisões mais importantes do PT. Na verdade, emparedado pelos acadêmicos uspianos – Haddad à cabeça – Walter logra apenas marcar posição interna e figurar como testemunha singular da completa adesão de seu partido a ordem burguesa. 

Não considero uma contradição o fato de Walter me atribuir a condição de “marxista acadêmico” enquanto seu candidato a governador é expressão maior do academicismo alienante e funcional a ordem burguesa que domina seu partido com a total cumplicidade e até mesmo entusiasmo de meu inesperado crítico. Lula é, de fato, um divisor de águas entre nós nessa eleição, mas jamais poderia ser o critério da verdade. Entretanto, não devemos ignorar que precisamente Lula é apenas expressão cada dia mais pálida da conciliação de classe que eu renuncio no terreno eleitoral enquanto Walter a reproduz como se não tivéssemos alternativa senão seguir agarrado num santo que pode ter muitos eleitores, mas é totalmente incapaz de produzir algum milagre.

4 comentários:

  1. Excelente crítica, Nildo. Sigamos na tarefa de construir uma esquerda genuinamente revolucionaria e que alcance a classe trabalhadora para superar a esquerda liberal.

    ResponderExcluir
  2. O maior legado que o petucanismo deixou para a esquerda é o cinismo e a covardia.

    ResponderExcluir