sábado, 4 de maio de 2024

Greve nas universidades: radicalizar ou negociar?


A greve nacional dos professores produziu na UFSC um falso dilema: devemos radicalizar e fortalecer a greve em curso dirigida pelo ANDES Sindicato Nacional   ou apostar exclusivamente na mesa da negociação entre o governo e as entidades sindicais da educação (Andes, Fasubra, Proifes)?

A radicalização não excluiu a negociação; ao contrário, o recurso à greve somente se justifica como meio eficaz de pressão na mesa de negociação. A greve pressiona o governo e devemos fortalecê-la para ganhar força numa negociação que, por responsabilidade do governo, é tardia e até agora muito ruim para a categoria.

No passado – não devemos jamais esquecer! – o recurso à greve era com enorme frequência um meio para estabelecer a mesa de negociação, pois os governos recusavam sem cerimônia qualquer iniciativa do ANDES para realizar acordos; na prática, os governos empurravam a categoria para a paralização. Em não poucos casos, o movimento grevista tinha que arrancar a negociação não com o ministro da educação, mas – pasmem! –, com o presidente da Câmara ou do Senado. A propósito, recordo que em algumas oportunidades o movimento recorria aos políticos “de peso” na república burguesa e, portanto, com acesso ao Palácio do Planalto (Antônio Carlos Magalhaes, Luiz Eduardo, entre outros cumpriram essa função!). Assim, por meio de parlamentares, o movimento grevista exercia alguma pressão sobre o Ministério da Fazenda.

Nas circunstâncias atuais esse artifício não tem qualquer eficácia, pois Haddad é o representante máximo da ortodoxia liberal e defensor religioso do déficit zero; de resto, no covil de ladrões, tanto Lira como Pacheco – após conquistar do governo 44,57 bilhões de emendas parlamentares – fazem coro com o ministro e atuam como guardiões da austeridade fiscal contra o povo e, em especial, contra o funcionalismo público (exceto, é claro, com o Judiciário que já consome 1,5% do PIB).

Não nos enganemos sobre o essencial. O reajuste linear de 9% concedido pela MP 1170/23, iniciado em 1 de maio do ano passado a todo o funcionalismo público nacional não foi produto da pressão ou de uma negociação do governo com as entidades sindicais. Nem radicalismo, nem negociação! O governo decidiu o aumento em função de seus próprios interesses, mas com olhos no futuro: o “folego” do ano passado era antídoto do aperto permanente decidido na transição de Bolsonaro a Lula sob a partitura do teto de gastos considerados orwellianamente pelo petismo como “arcabouço fiscal”. Na prática, aquele reajuste não recupera nossas perdas de pelo menos 25% derivados dos acordos de 2016 e 2017 e nunca respeitados pelo governo. Portanto,  os percentuais prometidos apenas compensam a inflação que sofremos, mas estão longe – bem longe! – de recuperar o poder de compra da categoria.

A ortodoxia de Lula/Haddad poderá ceder? Sem dúvida! A Polícia Federal levou 22% e os funcionários do Banco Central 23% de reajuste; a Polícia Rodoviária Federal arrancou 27% e a Polícia Penal Federal, outros 60%. Os auditores fiscais  conquistaram um “bônus de produtividade” de R$4.500,00 iniciais. O IBGE e especialmente a FUNAI conseguiram significativos reajustes na carreira com 40% em janeiro passado. Que tal?

A greve dos auditores fiscais ensina algo valioso para todos nós. O movimento eclodiu em dezembro de 2023 e durou... 80 dias! No dia 7 de março o Sindifisco anunciou que “os valores para pagamento do bônus ficam definidos da seguinte maneira: 10,19% para os meses de fevereiro a julho de 2024, com limite mensal de R$ 4.500,00 (quatro mil e quinhentos reais); 11,33% para os meses de agosto de 2024 a janeiro de 2025, com limite mensal de R$ 5.000,00 (cinco mil reais); 15,52% para os meses de fevereiro de 2025 a janeiro de 2026, com limite mensal de R$ 7.000,00 (sete mil reais) e 25% para os meses de fevereiro de 2026 a janeiro de 2027, com limite mensal de R$ 11.500,00 (onze mil e quinhentos reais)”. Portanto, mesmo não pertencendo à vala comum dos servidores públicos – representavam uma “carreira de Estado” no jargão socialdemocrata dos finados tucanos dirigidos por Bresser-Pereira – os auditores foram à luta e arrancaram agora o bônus! Não está  descartado que tenham que retomar mais adiante o movimento, caso o governo não reconheça sua assinatura num acordo onde tudo cabe, exceto a honra. Contudo, escolado na arte de negociar com governos sem palavra, o Sindifisco afirma que o acordo está limitado ao bônus e – muito importante! – nada impede que a categoria possa “se mobilizar na luta para a conquista de outras reivindicações como vencimento básico, fim das contribuições previdenciárias e busca pela integralidade”.

Ora, a negociação em curso com os professores está ancorada na promessa de aumento nos próximos anos, mas nenhum aumento agora: zero em 2024! De fato, a proposta é inaceitável até mesmo para o Proifes. Mais: é um estímulo à greve que já mobiliza mais de 40 universidades. Portanto, a despeito de promessas e eventuais acordos sobre ganhos no futuro, a questão é, como em toda a greve, o agora. Fortalecer a greve nesse momento é a única maneira de influenciar na negociação em curso em Brasília. Até mesmo o bom moço Keynes alertou que “no longo prazo todos estaremos mortos” e, em consequência, os pontos mais importantes não estão na promessa de reajuste em 2025 e 2026. Ora, diante da mais absoluta ortodoxia liberal, qual é a garantia de que o governo cumprirá o acordo no próximo ano?

Nesse contexto, devemos buscar o grau máximo de unidade entre os professores e lutar também pela máxima adesão dos professores. É um trabalho essencialmente político. A divisão entre o ANDES e o Proifes – entidade reconhecida pelo governo Lula para dividir a categoria quando o ministro da educação era ninguém menos do que Fernando Haddad em 2007 – é um obstáculo objetivo a ser superado. Até aqui, as suspeitas e fatos que marcaram a trajetória do movimento docente foram produtos de erros e acertos do ANDES. Entretanto, águas passadas não movem moinho! É preciso somar com o Andes com a mesma força  com a qual devemos exigir a renovação de sua práxis política sindical.

Qual projeto de universidade?

Há outros problemas mais graves do que o índice de reajuste. A classe dominante já decidiu a sorte da universidade no Brasil e o governo Lula/Alckmin segue à risca o roteiro. Há sinais evidentes que nem mesmo o rebaixamento do debate sobre a “função social” da universidade pode ignorar[1] . O financiamento das universidades praticado por Lula para 2024 foi inferior ao do protofascista Bolsonaro em 310 milhões!! Até agora, a ANDIFES não tem uma ação decisiva para arrancar recursos adicionais destinados à recomposição orçamentária necessária à restauração das condições mínimas para nosso funcionamento. De resto, a aposta oficial do governo – anunciada em 12 de março de 2024 – se resume à expansão de 100 novos institutos federais com a abertura de 140 mil vagas. Ademais, no MEC, Camilo Santana goza de enorme prestígio e, em consequência, em posição confortável, segue dando as cartas com orientação da Fundação Lemann. Aqui – e em todo o Brasil – as universidades exibem sua miséria na gravíssima crise da infraestrutura, nos déficits permanentes e na crônica falta de investimentos. O planejamento está morto! Em consequência, resta o miserável recurso às emendas parlamentares e a sorte de pequenas negociações no modesto balcão em Brasília. Enfim, o cenário não é nada bom.

A universidade, nas condições de um capitalismo dependente rentístico – sem base industrial e aprofundando a dependência científica e tecnológica – indica que a função social da universidade é, de fato, complementar. Na prática, a universidade presta serviços a órgãos de Estado (ministérios, estatais, fundações, etc) e busca nas empresas nacionais e multinacionais nichos para garantir seu funcionamento. Portanto, não há função estratégica para o sistema universitário no ideológico “desenvolvimento nacional”. Aos que duvidam, basta analisar com algum cuidado a proposta da “neo-industrialização” anunciada por Alckmin: não há recursos do tesouro Nacional e a “proposta” conta apenas com reduzidos recursos do BNDES. Na prática, o BNDES funciona como política compensatória de uma lumpem burguesia capaz apenas de contemplar pequenos e médios empresários longe da disputa tecnológica e migalhas para os neófitos adeptos das “start up” e do empreendedorismo.

Finalmente, a austeridade permanente contra as universidades constitui um impulso à mercantilização de todas as atividades possíveis entre nós. O pragmatismo não perde tempo e anuncia sua legitimidade: se o financiamento público é mesmo reduzido, o recurso ao privado ou a venda de serviços aos ministérios e às estatais sobreviventes ganham um ar de “legitimidade” inédito. No surrado bordão liberal, a universidade se tornou uma instituição “cara demais” para um país subdesenvolvido e dependente. A greve atual precisa ampliar o horizonte da reflexão para além do combate necessário destinado a arrancar reajuste e eventual melhoria na carreira.

O desafio do “professor novo”

O grau de regressão político-intelectual da esquerda liberal é profundo e reduziu o horizonte da luta sindical nos campi além de obstaculizar a reflexão sobre a função da universidade num país subdesenvolvido e dependente. A greve atual exibiu a imensa dificuldade dos “progressistas” em defender o elementar: nossos salários! Não poucos defensores do atual governo consideravam – e outros ainda consideram – que uma greve “contra o governo” fortalece uma modalidade de “neofascismo” que somente existe em suas cabeças! A derrota eleitoral da direita liderada até agora por Bolsonaro somente poderia ocorrer na ruptura com a economia política do rentismo, mas, ao contrário, o governo petucano segue à risca a partitura inaugurada com o Plano Real em 1994 e levada com truculência por Paulo Guedes no governo anterior.

Nesse contexto, a defesa dos salários ainda é cativa de um economicismo rasteiro (a luta dos salários contra os preços) mas não devemos desprezar que em determinadas circunstâncias pode adquirir um caráter transformador. Ora, nossa greve bate de frente com o teto de gastos adotado como virtude pelo governo Lula. O professor cativo de uma perspectiva individualista considera ingenuamente que, de fato, há algo especial em nossa profissão e, em consequência, supõe que, ao contrário dos demais servidores  públicos, ainda gozamos de prestígio social capaz de conquistar algum reajuste sem cair na vala comum do sofrimento humano. Ledo engano!! O princípio da austeridade é uma declaração de guerra contra os trabalhadores em geral e contra o serviço público em particular. Os baixos salários (90% da PEA ganha até 2,5 salários mínimos) e a dívida pública turbinam a acumulação no capitalismo dependente rentístico enquanto a consciência ingênua sonha com a volta de uma modalidade qualquer de keynesianismo impossível na periferia do sistema.

Aqui reside o caráter essencialmente político de nossa greve a despeito do economicismo dominante e da vã tentativa de poupar o atual governo de merecidas críticas! De um lado, o professor novo quer apenas seu salário e, de outro, o antigo militante petista quer agora evitar o “ataque” ao seu governo. A despeito de acusações mútuas, ambos são produto do mesmo processo. As greves – públicas e privadas – crescem em função das péssimas condições reservadas aos trabalhadores. O DIEESE informa que em 2020 foram 649 greves e em 2021 subiram para 721; em 2022 superaram a marca do milhar (1.067) e, finalmente, em 2023 novo patamar (1.132). A pressão é, portanto, anterior ao atual governo e indica um ativismo sindical ainda com “caráter defensivo”, porém com potencial diante dos aviltantes salários pagos aos trabalhadores.

A eleição da chapa petucana (Lula/Alckmin) era defendida pela esquerda liberal como necessária, um passo na derrota do “neofascismo” (seja lá o que isso significa) e uma possibilidade para a retomada da luta por melhores condições de vida e trabalho. A eleição figurava no discurso da esquerda liberal como condição para permitir melhores condições para a luta dos trabalhadores! Agora, subitamente, antes mesmo de defender seu salário, a esquerda liberal indica que a prioridade é... preservar o governo e impedir “a volta da direita”. Ora, essa concepção parlamentar de política que pretende confinar o conflito de classe cada dia mais intenso numa urna eleitoral é um caminho suicida! A “defesa da democracia” termina por legitimar um sistema político corrupto e funcional à ordem burguesa, que já conta com o repúdio de milhões de trabalhadores! Portanto, a “defesa do governo” não pode ser feita senão mobilizando e elevando o grau de consciência e autonomia dos trabalhadores diante dos partidos e do Estado! A propósito, esse era o postulado básico do PT e do sindicalismo de Lula antes de sua completa e definitiva integração à ordem burguesa!

Entretanto, o governo petucano (fusão de petistas e tucanos) goza de simpatizantes tanto no ANDES quanto no decadente Proifes. Lula aparece – para ambos! – como um perverso horizonte do possível no terreno do político como se estivéssemos, de fato, condenados a aceitar as misérias desse governo no suposto de que nenhum outro é viável nesse momento. Em nossa categoria – a despeito da desilusão manifesta, crescente e discreta – ouvi de setores da esquerda liberal a negativa de participar da greve porque estaríamos atuando contra “nosso governo”. Há também aqueles que pretendem afirmar a superioridade do governo petucano diante do protofascista Bolsonaro porque agora estamos pelo menos diante de uma negociação. É verdade que há uma negociação, entretanto, os argumentos em defesa do voto em Lula contra Bolsonaro eram precisamente porque em caso de vitória do primeiro, as condições para a luta melhorariam!

Desde uma perspectiva sindical, é preciso recordar que a fundação da CUT sob controle petista consistia justamente na defesa radical da independência e autonomia sindical. Os atuais defensores do governo esqueceram o fundamento sindical do petismo originário? Ao recusarem este princípio básico do sindicalismo nascido do protesto operário contra a ditadura, apenas confirmam o quanto estão submetidos a uma razão de estado e às graves consequências de tal orientação para a sorte dos trabalhadores. Ademais, o governo está completamente comprometido com o postulado da austeridade ultraliberal – a adoção do teto de gastos o comprova – responsável direto pela degradação do serviço público em geral e da saúde e educação em particular.

Aos que responsabilizam os “novos professores” pela situação atual e os acusam de despolitizados ou ainda de seres cativos de um miserável individualismo sem “espirito coletivo” unicamente apegados a seu pequeno mundo num laboratório semi financiado ou agraciado por algum contrato mais ou menos sólido com uma estatal ou multinacional, eu recordo que a renovação de nossa categoria ocorreu num período de ausência completa do radicalismo político e do mais absoluto desarme ideológico praticado como virtude pela antiga esquerda cuja representação máxima segue sendo o octogenário Lula. Acaso, após a miserável integração do PT e Lula à ordem burguesa com a consequente esterilização da práxis política radical, alguém poderia esperar que “jovem professor” entraria numa assembleia do sindicato com um volume de “A ideologia alemã” de Marx embaixo do braço?

O que pretendem zelosos defensores da “consciência de classe” quando responsabilizam os “novos professores” pela falta de mobilização da categoria? Ora, não pretendem menos do que isentar a “despolitização dos últimos 20 anos” propulsora da ascensão da direita que encontrou em Bolsonaro um inesperado “crítico da ordem” dominante! Acordem: ao calar sobre as misérias cada dia mais visíveis do governo e sua economia política que condena a maioria absoluta dos trabalhadores à superexploração da força de trabalho não fazem menos que deixar o monopólio da crítica para a direita!

Os baixos salários, os orçamentos sob permanente restrição, a mercantilização como aparente alternativa, o colapso da “universidade inclusiva” (Janine Ribeiro) evidente com a “sobra de vagas” e a redução acentuada da relação candidato-vaga em um sistema de ingresso (ENEM) que já deveria ter sido superado produz um evidente e justificado pessimismo nos novos professores. Como superar essa situação? No âmbito sindical, podemos retomar a reflexão crítica sobre a função da universidade num país cada dia mais afundado na dependência científica e tecnológica e abandonar definitivamente a miragem da inclusão social universitária num contexto onde os miseráveis são multiplicados pela taxa de juros mais elevada do planeta, os baixos salários e políticas compensatórias incapazes de tocar no nervo da marginalidade definitiva de milhões de brasileiros. 

Portanto, o suposto “vazio ideológico” do “despolitizado” jovem professor não é menos que um produto necessário da renúncia voluntária daquele radicalismo[2]  político identificado com o socialismo e a revolução social que era um combustível tão necessário para a politização dos colegas quanto da afirmação da universidade como instituição de Estado! Agora, diante de um sentimento de desânimo sobre o futuro e enquanto alguns professores sonham com uma temporada em Yale e Columbia, Sorbonne ou Oxford, não se dão conta de que estamos com os pés afundados num país subdesenvolvido e dependente que importa máquinas e equipamentos para a indústria, adubos para o latifúndio e não duvidaria que até mesmo a roupa intima que usam possui a marca indelével no selinho: made in China!

A greve, portanto, exibe não apenas nossas misérias, mas também as exigências de nosso desafio comum. O governo não tem projeto para o país – exceto a reprodução ampliada da dependência – e, portanto, tampouco pode oferecer algo digno para a universidade. A divisão sindical que nos enfraqueceu até agora precisa terminar de uma vez por todas, a despeito do caráter cada dia mais fantasmagórico do Proifes. Na mesma toada, o ANDES necessita da renovação de sua práxis sindical e a mais completa independência de qualquer governo. Mas essa é apenas uma condição necessária, jamais suficiente. É preciso que nosso sindicato abra um debate nacional sobre o futuro da universidade que já não cabe no surrado bordão de outras épocas (a defesa de uma “universidade pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada”) para enfrentar níveis de dependência jamais sofridos anteriormente.

Entre a conversão liberal da antiga esquerda radical existente nos anos oitenta do século passado – agora cínica defensora da ordem burguesa e do bom-mocismo – e a brutalidade da direita capaz de atuar sem vacilação rumo a uma modalidade qualquer de estado policial, a tarefa da greve é imensa: novos e antigos professores necessitam lutar pela imediata recuperação dos salários num tempo em que a própria existência da universidade como instituição está em questão.

Revisão: Junia Zaidan

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