quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Voto e conjuntura no Brasil em 2014


Desde Buenos Aires, Atílio Borón faz um chamado a seus amigos e companheiros no Brasil e os convoca a assumir o voto em Dilma Rousseff nas eleições de domingo. Estou entre os amigos de Atílio, com quem tenho antiga colaboração e amizade, razão pela qual me animo a responder sua valiosa reflexão.

A Europa pode ser nosso espelho?

Creio desnecessária a valorização de Atílio sobre a conjuntura europeia, especialmente aquela relativa a Alemanha dos anos 30. A razão é simples: ainda que para efeito de ilustração é sempre útil pintar toda escolha como se estivéssemos realmente inseridos na lógica de uma situação extrema, a conjuntura brasileira em nada se assemelha com a época prévia a ascensão do nazismo e o contexto da grande crise de 1929. Nem mesmo o mais pessimista analista poderia afirmar que estamos próximos daquela situação.

No entanto, tem sido recorrente recordar a conflito entre os comunistas e a socialdemocracia europeia como se o cenário europeu da década de 30 do século passado fosse um espelho adequado para observar nossas escolhas presentes. De minha parte, creio que nos últimos anos, o uso de expressões como “fascista” ou “nazista” foi completamente vulgarizado entre nós. Há dois dias Lula afirmou que a descriminação sobre os nordestinos era expressão do “nazismo”. Nada mais impreciso e falso. "De vez em quando parece que estão agredindo a gente como os nazistas na Segunda Guerra Mundial", disse Lula em Recife. Ora, a comparação é completamente descabida! A descriminação contra os nordestinos é expressão do tradicional – nem por isso menos odioso! – racismo que constitui um pilar do desenvolvimento capitalista no Brasil. O mesmo racismo destilado cotidianamente contra a maior parte da população negra e os povos originários. Contudo, ainda estamos muito longe de uma onda nazi no Brasil. Comparação não somente indevida feita pelo ex-presidente, mas, sobretudo falsa, que termina por despolitizar a questão racial entre nós.

Avanço conservador não é fascismo

Mas nosso debate é sobre a conjuntura atual. Vamos ao ponto central da caracterização de Atílio sobre a situação brasileira; ele afirma que seria “um gesto de imprudência que a esquerda não perceba o crescente processo de fascistização de amplos setores das camadas médias e o clima macartista que satura diversos ambientes sociais”. De fato, seria grave erro subestimar o potencial fascista existente na sociedade brasileira. Também seria uma conduta irresponsável ignorar que eventual vitória de Aécio poderia até mesmo fortalecer esta tendência na ação do governo e em certas decisões do Estado. No entanto, creio necessário afirmar que numa democracia restringida como a que sofremos, num país capitalista dependente e subdesenvolvido como de fato somos, sempre será muito importante reconhecer como parte do jogo liberal a emergência de forças identificadas com o fascismo, o racismo e, desde nossa singularidade, com a ditadura militar (1964-1985). Mas é preciso insistir no fato de que a emergência desta tendência é minoritária no país e impossível eliminá-la. Enfim, é parte constitutiva da democracia liberal a presença de forças de direita mais ou menos afinadas com práticas fascistas ou com o discurso fascista. (Nos termos da perspectiva eurocêntrica tradicional: Le Pen na França é uma forma declaradamente fascista e Berlusconi também, mas nem por isso alguém poderia afirmar que a Itália e a França estão ameaçadas pelo fascismo).

Não devemos desconhecer a diferença histórica qualitativa entre Dilma e Aécio. Fazê-lo seria ignorar a importância da História, pois enquanto Dilma lutou bravamente contra a ditadura, amargou prisão e tortura, Aécio nunca passou de um bon vivant que foi logo cedo adotado pela classe dominante para servir aos seus interesses. Ademais, Aécio é discípulo devoto de FHC (algo que não ocorria com Serra nas hostes do PSDB) no estilo do discurso, na adoção da estratégia política, na identidade com os interesses imperialistas, especialmente com o Partido Democrata nos Estados Unidos. Aécio mesmo não é fascista, mas é claro que, na condição de político vulgar que de fato é, poderia – caso estivéssemos numa situação extrema – assumir um programa desta natureza. Neste contexto, é claro que precisamente em função dos antecedentes históricos, muita gente desejou ou esperava que Dilma assumiria claros compromissos com o povo, da mesma forma que muitos de nós ainda não aceitamos a renuncia da presidente pela elucidação completa e definitiva dos crimes cometidos pela ditadura, menos compreensível quando ela própria foi vítima daquelas atrocidades, para dar apenas um exemplo entre muitos possíveis.

Contudo, se é um erro eliminar as diferenças entre os candidatos no passado, é também grave erro ignorá-los no presente. Há, tal como indica Atílio Borón, um constante avanço conservador na sociedade brasileira e se trata de um movimento que não é necessariamente contra o PT e Dilma; ao contrário, é possível afirmar categoricamente que parte considerável do conservadorismo crescente no país é um ingrediente da própria estratégia do PT e das alianças realizadas pela candidatura de Dilma.

A propósito, o resultado do processo eleitoral é claro: a bancada parlamentar identificada com os trabalhadores e com os sindicalistas reduziu sua representação de 83 para 47 deputados! É o pior resultado desde 2002, quando Lula se elegeu para presidente. Do lado oposto, a bancada que integra a Frente Parlamentar da Agro-indústria conta com 253 assinaturas, praticamente a metade do congresso nacional. Enfim, é fácil perceber que importantes parlamentares afinados com interesses ultra conservadores  sustentam o governo Dilma, entre os quais merece destaque a senadora Kátia Abreu, ex-presidente da poderosa Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Apoiou Dilma e recebeu apoio da presidente para eleger-se senadora por seu estado, Tocantins. Não é, obviamente, o único exemplo, mas ninguém poderá desprezar este dato na análise da situação concreta brasileira. Enfim, ilustres representantes do pensamento conservador e mesmo reacionário estão com Dilma (José Sarney, Collor de Melo, etc).

A miséria do ecologismo e a digestão moral da pobreza

Atílio nos pergunta a razão pela qual Aécio adotou sem titubeios a agenda ecológica e social proposta por Marina? Não creio que se trata apenas de “manobra propagandista” – ainda que também tenha algo disso – mas substancialmente porque o ecologismo brasileiro jamais enfrentou a relação perversa entre homem-natureza sob as condições do capitalismo dependente. O ecologismo dominante aqui sempre foi funcional a ordem burguesa! A opção de Marina (ex-ministra de Lula) e outros conhecidos ambientalistas pela candidatura de Aécio revela antes de tudo a pobreza e a miséria do ecologismo como corrente política no país e ao mesmo tempo, a capacidade destes políticos em aceitar os crimes ecológicos produzidos pela modalidade de desenvolvimentismo em curso, certamente ainda mais agressivo na eventualidade de um governo tucano. Não devemos jamais esquecer que Marina foi especialista na defesa do “desenvolvimento sustentável”, o caminho simpático para a acumulação de capital que destrói violentamente a natureza com algum charme para os ambientalistas franceses e as organizações não governamentais (ONGs). 

Por que, afinal, Aécio adotou os programas sociais defendidos por Dilma e exigidos por Marina? Porque além de baratos – consomem um percentual muito pequeno do orçamento federal – é decisivo para estes setores aprofundar a digestão moral da pobreza em curso no Brasil. Ora, o tucano Aécio jamais ousou afirmar durante toda a campanha que a “ascensão” de milhões de brasileiros a condição de classe média esta limitada àqueles trabalhadores que recebem entre R$ 641 e R$ 1019 reais, quando o salário mínimo calculado pelo DIEESE deveria ser R$ 3.019 reais! Tampouco ousa contestar que os 100% de royalties para educação e saúde, peça da campanha oficial, não alcançam sequer 2% de toda a riqueza extraída do Pré-sal. Estes dois exemplos são importantes para observar como na prática estamos governados por um “consórcio petucano” no qual as divergências ou são alimentadas no terreno confortável do parlamento ou quando tocam em temas estratégicos, são simplesmente ocultadas pelos dois grandes partidos.

A reforma política: decisivo passo do avanço conservador

Finalmente, algo sobre nosso sistema político. A precoce adesão do PT a ordem burguesa não somente cancelou longos anos de trabalho e esforço político da esquerda para dotar as classes subalternas de um instrumento de luta. Na exata medida em que o PT se transformou em um partido da ordem, o sistema político perdeu sua capacidade de figurar como caminho de transformação para os interesses das maiorias. Em consequência, o sistema político é democrático e adequado para a dominação classista, mas é incapaz de mudar as regras do jogo em favor de outra correlação de forças, mais favorável ao combate dos "de baixo". Eis a razão fundamental pela qual a burguesia descarta nas atuais circunstâncias qualquer estratégia golpista e pode - como o fez até agora - governar com Dilma. Uma alternativa golpista de corte fascista somente se transforma numa necessidades histórica diante do avanço das classes subalternas, da elevação de seu grau de consciência e organização, capaz de tocar na propriedade, no poder político e no privilégio das classes dominantes. Ora, precisamente Dilma comanda o pacto de classe herdade de 1994 - o Plano Real - com mais maestria que FHC ou Aécio.

Afinal, a burguesia pode ou não contar com uma forma de dominação democrática na periferia capitalista? Eu estou de acordo que eventual vitória de Aécio representa a restauração conservadora que Atílio indica. É verdade. Mas é igualmente verdadeiro que a “restauração conservadora” não se assemelha a qualquer onda fascista! Aécio deixou claro que teria “tolerância zero” com a inflação. Ataca, desde o espectro da direita, o “neo-desenvolvimentismo atravessado por profundas contradições” do PT e de Dilma. Caso eleito, Aécio praticaria a política da ortodoxia neoliberal que já enfrentamos durante os 8 anos de FHC. Algo muito distinto de uma onda fascista. E Dilma, continuará caso eleita com a política atual que até mesmo alguns keynesianos consideram de escassa inspiração neodesenvolvimentista. Enfim, os interesses das distintas frações do capital estão completamente contempladas no atual governo com a vantagem de que os pobres pouco "incomodam" em função da política social.   

O que leva muitos de nós ao voto nulo? Algo decisivo. Nos últimos 12 anos, em nenhuma oportunidade Lula ou Dilma convocaram o povo para alguma batalha. Qualquer batalha. Dilma nos convoca tão somente para o voto. Jamais para a luta!!! Agora, flertam com uma "reforma política" que se transformará numa plataforma do conservadorismo ascendente comandada pela presidente re-eleita. Poderá emergir uma reforma progressista de um congresso cada dia mais conservador? Nenhuma possibilidade! Será sem dúvida um simulacro de reforma destinado a afastar ainda mais o povo das decisões estratégicas e dotar os grandes partidos de imunidade diante de eventual pressão popular.  

Neste contexto, é completamento falso supor que Dilma poderia reconectar o PT com os movimentos sociais ou reativar antigo compromisso com os condenados da terra no Brasil. Depois de cada vitória, os presidentes eleitos pelo PT centram sua atenção no congresso nacional, na pratica parlamentar e, de costas para o povo, governam em santa comunhão com as classes dominantes. No limite, indicam para a esquerda marginal e para os movimentos sociais, que “ruim conosco, pior sem nós”. Com a operação garantem recursos suculentos para as classes dominantes enquanto destinam migalhas para as classes subalternas. Devo dizer com  clareza: os programas sociais atualmente praticados são importantes para um país atravessado pela desigualdade, mas é igualmente verdadeiro que também são úteis para a estabilidade burguesa porque são baratos, mantém os pobres na pobreza e não avançam em sua organização política e consciência de classe!

A opção pelo voto nulo de milhares de militantes socialistas não supõe que o caminho de reconstrução da esquerda radical seria mais fácil numa eventual vitória de Aécio. Tampouco será melhor com a re-eleição de Dilma. A esquerda socialista sai desta eleição acumulando grande derrota eleitoral. Mas creio que aprendeu - ou deveria aprender - que figurar como "espirito crítico" do petismo atual como se sua função histórica se limitasse a concluir um trabalho que o PT abandonou no meio do caminho, é um horizonte limitado diante dos dilemas históricos do país. Tampouco cabe à esquerda servir como espécie de "terceira via" entre os dois principais partidos dominantes. Trata-se de um dilema superado historicamente. A esquerda necessita afirmar-se contra a agenda do petucanismo no terreno parlamentar (a "reforma política"), na elaboração de nova praxis nas organizações sociais - especialmente os sindicatos - e de uma certeza elementar: o sistema político na qual ela figura agora como nanica ou marginal, não poderá transformar a vida da maioria da população brasileira e muito menos operar no sentido de superar as misérias tipicas do subdesenvolvimento e da dependência.   

quinta-feira, 12 de junho de 2014

As possibilidades da paz e as razões do conflito na Colômbia

Conheci Matheus e Rodrigo no curso de economia política, matéria obrigatória no curriculo de Economia, cujo conteúdo é a revisão dos clássicos europeus da matéria anteriores a Marx. Recordo que eram silenciosos e atentos. O contato com estudantes de jornalismo tem sido frequente, especialmente intenso quando ainda oferecia a disciplina optativa, Economia da América Latina. Contudo,  mesmo num tema "árido" como o estudo de David Ricardo e da filosofia moral de Adam Smith, entre outros, contar com a presença de estudantes de jornalismo era também curioso. Numa universidade marcada por carências, não descarto a falta de opção deles... A conversa ao longo do curso abrigou, numa certa noite, uma pergunta surpreeendente: "Nildo, que tal um período na Colombia para o TCC?" Claro que opinei favoravelmente. No entanto, suspeito que apenas reforcei o desejo e uma decisão já tomada. Pois bem, não serei economico: eles fizeram um belo trabalho. O essencial disse no prefácio (abaixo) e o divulgo aqui como convite à leitura do livro Colômbia. Movimentos pela paz (Editora Insular) dos jornalistas Matheus Pismel e Rodrigo Chagas.




Uma democracia sangrenta


 O jornalismo teme a opinião pública, assegurou George Orwell no esquecido posfácio de A revolução dos bichos. Creio que ele estaria de acordo com a ideia segundo a qual o “jornalismo teme a opinião pública bem informada”, razão pela qual alguns temas são, a despeito de sua importância, olimpicamente desconsiderados enquanto outros, completamente banais, tornam-se uma constante no noticiário como se de fato fossem decisivos para a vida de milhões de pessoas.

Esta é a norma do jornalismo dominante nas sociedades democráticas. Os liberais asseguram que um sistema democrático deve preservar a “imprensa livre” e a “liberdade de expressão”. Estas virtudes ou exigências democráticas somente poderiam ser asseguradas com a existência e manutenção dos monopólios dos meios de comunicação – a empresa privada – que, em consequência, estaria imune a razão de estado, distante da influência política partidária e livre para publicar o que realmente importa à cidadania, especialmente aqueles temas que podem ser inconvenientes para o poder. Na prática, nas faculdades de jornalismo ou comunicação social a grade curricular esta organizada para garantir este mito liberal e supostamente para formar um profissional competente para o “mercado de trabalho”, este eufemismo destinado a ocultar o poder monopólico sobre os meios de comunicação.

Neste contexto, é normal que um profissional assegure com plena convicção que jamais foi censurado quando trabalhava em tal ou qual monopólio e que nunca recebeu ordens sobre o que e como escrever uma determinada matéria. Ele realmente acredita que exerce na plenitude a liberdade de imprensa. Contudo, o que ele sequer suspeita e dificilmente admitiria, é o fato de que não seria contratado se já não soubesse o que realmente importa para o jornal ou a TV que lhe paga o salário. Em poucas palavras: quando contratado, o jornalista não será censurado jamais porque ele sabe, objetiva e subjetivamente, o que realmente escrever. Esta é a razão pela qual alguns temas são sistematicamente mantidos fora da atenção pública enquanto outros – decididamente menos relevantes ou mesmo banais – recebem um minucioso tratamento.

É fácil perceber o caráter ideológico da liberdade de imprensa em ação. O Brasil, por exemplo, acumulou nos últimos anos uma dívida interna gigantesca que já alcança a cifra de 3 trilhões de reais. Outro tanto ocorre com a dívida externa, superior aos 311 bilhões de dólares. É um tema explosivo com enorme repercussão na capacidade de investimento do estado brasileiro, afeta decisivamente a eficácia e alcance da política pública, implica em acentuada redução do exercício de soberania estatal; mas o tema inexiste para os guardiões da liberdade de imprensa. O tempo destinado à metereologia é indiscutivelmente maior do que aquele reservado ao endividamento interno e externo do estado brasileiro. O tempo destinado aos comentaristas de futebol representa um abismo quando comparado com aquele reservado ao tema da dívida estatal.  Finalmente, o tempo destinado a acidentes de transito ou a qualquer banalidade da vida universitária, recebe um tratamento minucioso enquanto os assuntos de estado, verdadeiramente públicos, são sistemáticamente ocultados.

Algo similar ocorre com informação sobre o cenário internacional. Há temas que merecem plena atenção dos monopólios de comunicação enquanto outros estão garantidos pela ocultação sistemática de informação. A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), por exemplo, não cansa de acusar Venezuela, Equador, Bolívia e Cuba como exemplo de países em que se fomenta o medo e o ódio contra os jornalistas e onde supostamente se pratica atentados diários a liberdade de imprensa. Contudo, na 69 assembleia geral da entidade realizada em outubro de 2013, se confirma que "quatorze jornalistas foram assassinados nesse último semestre no Brasil, Guatemala, Haiti e Paraguai, entre outros países, por denunciar os abusos do poder político e econômico, ou tocar os interesses dos traficantes de drogas — abusos e interesses que, muitas vezes, vão de mãos dadas", segundo Ricardo Trotti, diretor da SIP.

Ademais, para a entidade “a violência é incentivada pelo alto grau de impunidade, produto de poderes judiciais fracos, ineficientes, ou subjugados pelo poder, o que permitiu que 17 casos de assassinatos de jornalistas prescrevesse na Colômbia e no México, depois de 20 anos sem justiça.” Enfim, não somente se mata de maneira indiscriminada jornalistas em países “democráticos” como também esta assegurada a impunidade para tais crimes. Contudo, toda semana podemos assistir nos canais de televisão em nosso país matérias sobre a séria ameaça à liberdade de imprensa pela “ideologia bolivariana”.

Não é necessário muito esforço para perceber que um modelo de propaganda se reproduz no jornalismo brasileiro. Após intensa campanha midiática, qualquer pessoa mais ou menos “informada” pelos monopólios dos meios de comunicação no Brasil sabe que existe uma séria “ameaça” a democracia nos países governados por líderes populares que decidiram democratizar minimamente a informação (Venezuela, Equador, Bolívia e Argentina). Contudo, o fato de que a absoluta maioria de assassinatos de jornalistas ocorra no México e na Colômbia parece não constituir uma ameaça à liberdade de imprensa e, por esta razão, é simplesmente ignorada pelo jornalismo dominante. Mais grave ainda: precisamente nos dois países – completamente alinhados com Washington – a impunidade é tal que os crimes prescreveram, fato que representa uma clara garantia de livre trânsito para sicários e assassinos a serviço do poder de estado e das corporações de todo tipo. Em consequência, é muito difícil – quiçá impossível – ler num jornal e absolutamente impensável ver na TV brasileira, que na Colômbia e no México a liberdade de imprensa esta ameaçada. Não há sequer menção aos dois países, embora qualquer estudantes de ciências sociais medianamente formado sabe que se trata de dois casos limites no continente latino-americano.

Diante desta realidade, os guardiões da liberdade não vacilam: silêncio sobre a realidade colombiana e mexicana. Na mesma linha, acendem todas as “luzes” sobre Venezuela, Argentina, Bolívia e Equador. A regularidade do fenômeno indica claramente que o jornalismo se transmutou num modelo de propaganda que somente em casos limites e excepcionalmente altera seu comportamento. Noam Chomsky afirmou que, diante do fenômeno, o resultado do sistema de liberdade de expressão representa um “sistema de controle ideológico muito eficiente – muito mais eficiente do que o totalitarismo soviético jamais foi”.

O livro dos jornalistas Matheus Lobo Pismel e Rodrigo Simões Chagas – Colombia. Movimentos pela paz – pratica, em oposição ao jornalismo dominante, uma crítica necessária e esclarecedora contra o modelo de propaganda em que aquela promessa liberal se transformou. Não deve passar sem registro que eles escreveram este trabalho quando ainda não haviam recebido o diploma de jornalistas. Eram, portanto, estudantes. A curiosidade intelectual os motivou a permanecer dois meses no país vizinho e realizar um belo trabalho para todos nós; um trabalho que combate a imensa ignorância brasileira sobre a América Latina, mesmo quando se trata de um país vizinho. Eles romperam com o academicismo alienante e esnobe que acompanha a formação do universitário em nosso país e se lançaram sem os temores contra o “bom mocismo” que orienta a profissão do jornalista desde os primeiros passos.

El Cazador, de Fernando Botero


A Colômbia é, de fato, uma democracia sangrenta, tal como os autores caracterizam o regime político no país. O adjetivo pode parecer abusivo para a consciência ingênua sobre a realidade colombiana produzida pelos monopólios da comunicação no Brasil. Contudo, as evidências são abundantes, pois desde o Bogotaço de 1948 as classes dominantes desataram uma guerra contra as classes populares que jamais cessou. Na prática, a democracia sangrenta é resultado de uma modalidade particular de regime político que somente pode passar despercebido até agora em função da completa cumplicidade dos monopólios dos meios de comunicação empenhados não somente em ocultar dados elementares por eles apresentados, mas, sobretudo de silenciar sobre os piores crimes cometidos cotidianamente no país. A Colômbia vive um regime de terrorismo de estado que seria impossível sem o apoio sistemático dos Estados Unidos. Não se trata somente do Plano Colômbia – um eufemismo utilizado por Washington para estabelecer bases militares, dirigir as forças armadas nacionais, financiar a guerra e acumular riqueza em favor de uma pequena elite nacional – senão de respaldar por meio da diplomacia e de uma poderosa máquina de propaganda que, ao contrário das ditaduras que sofremos durante décadas, a Colômbia era uma democracia plena.

O terrorismo de estado – praticado e larga escala pelos Estados Unidos no mundo – se verifica de maneira trágica na Colômbia cujo resultado pode ser medido pelo fato de que apenas 1,15% dos colombianos controlam 52% das propriedades deste rico país. Como foi possível tamanha concentração da propriedade? A classe dominante colombiana moveu uma guerra contra os camponeses que produziu – segundo cifras conservadoras – mais de 220 mil mortos, 25 mil desaparecidos e pelo menos 30 mil sequestrados. Ainda mais trágico, a decisão da classe dominante com apoio completo do estado criou a figura dos “desplazados” de guerra, aproximadamente 6 milhões de camponeses que foram obrigados pela força do exército e especialmente dos paramilitares a abandonar suas terras ou “vendê-las” a preço de banana com o único objetivo de salvar suas próprias vidas. Este mega processo de expropriação concentrou ainda mais a terra num país cujo conflito entre governo e a guerrilha nasceu precisamente em função da extrema concentração da riqueza e da propriedade e seu corolário inevitável: a maior parte da população afundada na pobreza.

Nestas circunstâncias, a Colômbia funciona como espécie de estado-satélite, com autonomia reduzida, um instrumento da política imperialista dos Estados Unidos na América Latina. A ação imperialista combinou a criação de bases militares na Colômbia – um assunto com gravíssimas implicações para todos os demais países da região – com a promoção do acordo de “livre comércio” que já produziu efeitos ainda mais perversos na agricultura colombiana. Nenhuma novidade, pois a simples análise das consequências do Tratado de Livre Comércio entre EUA, Canadá e o México, levaria qualquer observador às evidências elementares sobre as consequências para o país latino-americano que, após o tratado, passou a importar inclusive milho da potência imperialista.

Não somente por estas razões – suficientemente fortes – mas também porque temos uma importante fronteira com a Colômbia, as atenções das universidades, do jornalismo e da política externa nacional deveriam estar voltadas para este conflito que possui implicações mundiais e estratégicas para nós. Contudo, a ignorância brasileira sobre o terrorismo de estado segue sendo produzida, razão pela qual é possível observar o desprezo sistemático dos teóricos da democracia e dos defensores da liberdade de imprensa sobre esta enorme tragédia. É preciso agregar que esta ignorância produzida pelo modelo de propaganda vigente consiste precisamente em opor os regimes democráticos (Colômbia ou México) de outros (Venezuela, Equador, Bolívia e, obviamente, Cuba) cuja democracia supostamente se encontra baixo grave ameaça ou simplesmente não existe. Esta realidade poderia ser estuda por qualquer pessoa mediamente informada – e com duas moléculas de honestidade intelectual – e considero digno de atenção o desprezo que merece em nosso país. É tal o êxito da operação ideológica construída pelo modelo de propaganda que uma pesquisa de opinião constataria que para a maior parte dos brasileiros que algo “sabe” sobre a tragédia colombiana não vacilaria em afirmar que tudo se resume ao conflito governo versus guerrilha quando todas as fontes indicam – mesmo aquelas mais conservadoras – que o maior número de vítimas não decorre dos combates entre exército e as FARC (ou ELN), mas precisamente dos massacres promovidos pelos paramilitares, pela “segurança privada” de latifundiários e políticos a serviço do sistema, e de um eficaz sistema judicial que basicamente garante a impunidade para os assassinos.


Manuel Marulanda, de Fernando Botero
Entre nós se consolidou a ideologia segundo a qual não existe na Colômbia uma opção de esquerda civil, disposta a disputar o poder pela via das eleições, razão pela qual não restaria ao estado senão a guerra contra a subversão. Rodrigo e Matheus revelam precisamente o oposto ao resgatar a importância histórica de iniciativas eleitorais – com partidos e frentes de esquerda sem qualquer vínculo com a luta armada – que de maneira heroica tentam construir no país vizinho uma saída para a guerra e, precisamente por isso, foram sistematicamente perseguidos e viram milhares de seus militantes assassinados de maneira impune na Colômbia. A trajetória da União Patriótica (UP) revela o quanto a guerra – e o regime de terrorismo de estado – é a opção preferencial das classes dominantes colombianas com apoio sistemático dos Estados Unidos. O assassinato do candidato liberal Jorge Eliézer Gaitán em 9 abril de 1948 inaugurou meio século de “violência” na Colômbia e não deixou de ceifar vidas de outros tantos candidatos a presidência assassinados brutalmente em plena luta eleitoral, quando defendiam uma saída negociada para o regime de terrorismo de estado atualmente vigente. Não cabe, pois, após examinar esta trajetória aqui recuperada, falar somente na existência da “violência” generalizada no país. Considerando o caráter sistemático que a “violência” assumiu, a longevidade que possui e a resistência das classes dominantes em aceitar com seriedade uma saída pacífica para a crise, temos a obrigação de analisar a hipótese sobre o terrorismo de estado como um regime que combina eleições regulares com assassinatos em massa. Portanto, é adequada – ainda que trágica – a denominação de uma democracia sangrenta com a qual os autores denominam o regime político colombiano. Uma democracia sangrenta – portanto, adjetivada – escapa por completo aos marcos analíticos da sociologia da ordem produzida pelo liberalismo político cujo único interesse consiste em opor de maneira simplória regimes “democráticos” a regimes “totalitários” ou “autoritários”. Na Colômbia, há “imprensa livre”, os tribunais funcionam, existem eleições periódicas, não existiu no último meio século um golpe de estado destinado a levar os militares ao poder – tal como nas ditaduras militares que sofremos no cone sul – e, não obstante, os resultados são em muitos aspectos, ainda piores que aqueles produzidos pelas ditaduras militares.

O regime de terrorismo de estado ganhou nova roupagem durante o governo do presidente Álvaro Uribe Vélez e durante seu governo aplicou a política de “segurança democrática” destinada a produzir mais uma operação orwelliana: mudou o Plano Colômbia (1998) – a principal peça do terrorismo de estado – para o Plano Patriota, a mesma política com maior liberdade ainda para o estado mudar a constituição, fazer letra morta de outros tantos artigos e seguir produzindo miséria, exploração e violência em amplos setores sociais, especialmente a massa de camponeses.

Não por acaso, a violência se multiplicou durante o período presidencial de Uribe, pois a política de “segurança democrática” sempre foi uma estratégia de guerra total dirigida não somente contra a guerrilha, mas, sobretudo, contra todos os setores sociais com alguma capacidade de reivindicação e organização – sindicatos operários e camponeses, movimentos indígenas, intelectuais críticos, jornalistas independentes – que formam agora, mas do que em qualquer outro período da história colombiana, uma imensa comunidade de vítimas. Há pouco, Uribe elegeu-se senador novamente. O papel político que representa agora é uma extensão de político-parlamentar de seu período presidencial e sem dúvida alguma seguirá atuando contra toda e qualquer possibilidade de acordo político entre o governo do presidente Juan Manuel Santos e as FARC que atualmente se realiza em Havana. Mais importante ainda, seu discurso e sua prática pretendem eternizar o regime de terrorismo de estado com amplo apoio dos Estados Unidos. A revista Newsweek publicou o conteúdo de informes produzidos em 1991 e finalmente desclassificados agosto de 2004 pelo Departamento de Defesa, nos quais Uribe aparecia como colaborador do Cartel de Medellin e figura muito próxima de Pablo Escobar. Em 1990, começou o segundo mandato como senador, foi também governador de Antioquia e, finalmente, em 2002 Uribe elegeu-se presidente com óbvio apoio dos Estados Unidos. O episódio revela que antes que um problema moral, a política estadunidense esta submetida à razões de estado, motivo pelo qual o antigo membro da blacklist, figura supostamente detestável para a política anti-drogas da potencia imperialista, se transformou em “defensor da democracia e dos mercados livres”, peça fundamental da expansão imperialista na América Latina e figura destacada na luta contra a “narco-guerrilha”, na expressão de Ronald Reagan. Esta súbita e cínica mudança obedecia ao fato de que precisamente naquela conjuntura os resultados das chamadas “reformas neoliberais” produziam resultados contraproducentes para a eficácia da dominação política em nosso continente. Emergia, naquele momento, aquilo que o General James T. Hill, chefe do Comando Sul dos Estados Unidos, chamou de “populismo radical”, ou seja, a aparição de líderes com capacidade de radicalização. Nas palavras do general – pronunciadas numa comissão do senado estadunidense – esta radicalização era produto “das profundas frustrações derivadas do fracasso das reformas democráticas em fazer chegar os bens e serviços prometidos, Utilizando estas frustrações que se combina com as frustrações causadas pela desigualdade econômica e social, estes líderes são ao mesmo tempo capazes de reforçar suas posições radicais inflamando o sentimento anti-estadunidense”.

Não por acaso, Uribe confrontou sempre que pôde a política do presidente Hugo Chávez, mesmo quando este declarou de maneira clara que o tempo da luta armada havia sido superado e que correspondia, em consequência, a luta pela democracia participativa e protagônica que o líder bolivariano fomentava em seu país. Desde Venezuela, o presidente Chávez clamou pela negociação e para que o governo colombiano reconhecesse o caráter de força beligerante às FARC, antes que simplesmente considerá-la uma “narco-guerrilha”, conceito que eternizaria a política anti-drogas dos republicanos nos Estados Unidos e, responsável última, pela manutenção do terrorismo de estado na Colômbia. 

Ainda não sabemos como terminará a atual negociação entre o governo e as FARC. Contudo, mais importante que prever ou torcer para um final feliz, é estudar as raízes da violência na Colômbia e a evolução de um regime de terrorismo de estado que segue intacto e produzindo vítimas em escala monumental. O livro de Matheus e Rodrigo é uma contribuição notável nesta direção. É também um ativo ato de solidariedade às vitimas da máquina de guerra que parece não ter fim na Colômbia e que encontra nos Estados Unidos um ponto fundamental de sustento. O estado brasileiro não pode permanecer ignorando ou simplesmente atuando com baixo perfil nesta imensa tragédia que nos afeta diretamente como parte da comunidade latino-americana a qual pertencemos. Os brasileiros não podem tolerar mais o rebaixado horizonte da política partidária que sofremos e no qual os temas estratégicos de segurança e solidariedade entre os povos latino-americanos sigam ditados pelos interesses estadunidenses e não pelas necessidades de milhões de pessoas que estão longe – muito longe – de merecer um tratamento destinado a pessoas.

Finalmente, este livro é também um ato de honestidade e rebeldia intelectual, uma demonstração cabal de que, mesmo limitados pelo academicismo alienante e esnobe que domina a universidade brasileira, somos o suficientemente livres para fazer pequenas escolhas aqui e agora destinadas a contribuir modestamente com a superação do ambiente estéril que termina por produzir um silêncio cúmplice com as atrocidades de nosso tempo.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Um filme contra GETULIO, um filme contra a memória histórica

Entre todas as mortes de Getúlio Vargas, não vi ou li nada pior que a versão oferecida por Carla Camurati e João Jardim, o casal que produziu GETULIO, o filme. A trama desenvolve-se no curto intervalo de 19 dias, ou seja, entre o tiro que vitimou o major Rubens Florentino Vaz, feriu o principal inimigo político do presidente - o jornalista Carlos Lacerda - e o suicídio de Getúlio Vargas ocorrido em 24 de agosto de 1954.

Em uma peça promocional Carla Camurati afirma objetivo da empreitada: "o que a gente queria é que a historia do Brasil contaminasse emocionalmente o público. Que você assistisse este filme e ficasse realmente emocionado com a historia do seu país, porque é isso, esta é a nossa história, esta é a sua historia".

Diante de tal propósito, nada poderia ter sido mais desastroso. Nem falso. A diretora tenta estetizar a solidão do poder, revelar a intimidade supostamente dura de seu exercício por um personagem que tanto marcou a vida nacional quanto soube como poucos manter o controle da política por um largo período histórico. No entanto, antes de mostrar a trajetória de um líder que efetivamente comandou grandes transformações no Brasil, o filme exibe um Getúlio cativo do medo, um homem vacilante e sobretudo angustiado; naquele roteiro Getúlio nunca superou a posição de um sujeito atormentado pelo fantasma da prisão, de alguém que deixaria o poder não na condição de mártir mas de um relés corrupto, algemado e encurralado pela ação oposicionista liderada na aparência pelo jornalista Carlos Lacerda. Para todo aquele que desconhece a Historia e acreditou na historinha condensada pelos autores do filme, Getúlio nunca passou de um chefe de governo marcado por um "mar de lama", ou seja, um governo atravessado pela corrupção não somente sem controle, mas sobretudo intolerável para a "opinião pública" porque supostamente contaria com a cumplicidade presidencial. Não vemos um filme que retrata os dias finais de um estadista que decide pelo suicídio nos estreitos limites da lógica férrea das condições políticas e sociais extremas, mas precisamente de seu oposto. A trama histórica cede lugar quase que completamente para o drama pessoal de um homem finalmente fraco, débil - e insisto - medroso. Ora, nada mais distante da realidade do que um Getúlio sendo devorado pelos fatos sem reação ou simplesmente tomando medidas que terminam por incrimina-lo ainda mais num episódio que não foi, nem de longe, a razão fundamental de seu suicídio. Em resumidas contas, impossível amar a história neste enredo. Menos ainda identifica-la como "nossa história".

De resto, Carlos Lacerda, um jornalista sem virtudes, venceu uma vez mais Getúlio. Agora na ficção. A visão que prevaleceu no filme foi, sem dúvida, precisamente a marca construída por Lacerda contra Getúlio. A trama consegue inclusive esterilizar a importância estratégica da carta testamento de Getúlio, um documento de caráter histórico, denso, anti-imperialista, no qual as forças que conspiram contra seu governo são reveladas e não podem ser resumidas nas denuncias de um personagem menor como Carlos Lacerda, conhecido pelo apelido de "o corvo". Eu bem sei que a ficção tem lá suas liberdades, exceto a de falsificar a historia. É isso que o filme faz. Não é um filme deprimente apenas, É sobretudo falso.

Palmério Dória conta em um de seus últimos livros que o jornalista Armando Nogueira, única testemunha ocular do atentado da Rua Toneleiro, confidenciou anos atrás quando ambos trabalhavam na Globo que mentiu no episódio: jamais teria visto Gregório Fortunato na cena do crime. No entanto, guardou silêncio e levou o segredo ao túmulo. No filme, sequer as evidências de que Lacerda teria atirado contra seu próprio pé são levadas a sério. Toda a carga da "emoção" é despejada sobre Getúlio e suas insuperáveis angústias.

A exemplo de outras tantas gerações, também a minha nasceu sob o signo da profunda desconfiança em relação ao nacionalismo, razão pela qual, desde sempre, todo e qualquer nacionalismo soava nocivo. Durante muito tempo, o ex-presidente João Goulart, por exemplo - sem duvida um grande político - jamais logrou superar em minha imaginação a estatura de uma figura boemia, um mulherengo incorrigivel e sobretudo vacilão diante de decisões políticas cruciais. Jango, ademais, figurou durante muito tempo como alguém despreparado para o exercício do poder político e muito possivelmente ainda é esta a imagem que as escolas e os partidos políticos reproduzem.

Em relação a Getúlio Vargas o preconceito - e o desconhecimento também - sempre foi mais profundo. O estado moderno no Brasil nasce com a Revolução de 30 encabeçada pelo líder gaúcho; ainda assim, Getúlio sempre foi homem associado ao "caudilhismo", expressão com a qual a sociologia brasileira tratou de exorcizar como fenômeno necessariamente nefasto, anti-democrático, autoritário e, sobretudo, atrasado. À luz das transformações que operou no estado, na economia e na cultura do país, deveria parecer fácil, mas na verdade é difícil observar Getúlio Vargas como o líder político mais moderno que já possuímos. Todas as grandes instituições políticas e estatais foram basicamente construídas em seus governos: do voto feminino a instituição do salário mínimo, da siderurgia ao  controle do petróleo, sem falar no fortalecimento da identidade e cultura nacional. Getúlio é o personagem que organiza o estado burguês num país periférico latino-americano. Desde esta perspectiva, nada poderia ser mais "moderno". Na tradição hispânica, descobri que um caudilho, antes que expressão exclusiva de autoritarismo, sempre foi na verdade um termo que salienta as virtudes daquele líder capaz de reunir dotes militares e políticos. O caudilho era, em resumo, um líder de massas. E um líder de massas nas sociedades modernas não é algo que podemos depreciar e menos ainda prescindir, embora a maioria o faça. O caudilho não é, obviamente, uma deformação típica de países periféricos, especialmente os latino-americanos, pois também verificamos este tipo de liderança nos países metropolitanos. No entanto, a sociologia e a ciência política dominante os classifica como "estadistas", figura supostamente dotada de todas as virtudes que raramente podem aparecer na periferia capitalista. O estadista é, de maneira geral, tratado como um vitorioso enquanto o caudilho ineapelavalmente aparece como um derrotado. Não importa a causa como tampouco faz sentido buscar as razões uma vez que todo caudilho está, previamente, condenado.

Longe de minha intenção idolatrar Getúlio pois tampouco são pequenos alguns de seus erros e algumas de suas opções políticas são mesmo gravíssimas. O tema agora é o filme. Um filme cuja pretensão é fazer a gente amar a história, a "nossa história" segundo a própria Camurati. Mas a história ali recuperada - insisto - é a versão lacerdista. O contraste é tal que por primeira vez pensei no suicídio de Getúlio como um ato de coragem e não de covardia como a trama sugere e os livros de história ainda ensinam. Não há povo no drama individual do ex-presidente. O povo finalmentre aparece quando o filme termina e cenas de época revelam a comoção popular em função da desaparição do grande líder. Há, de fato, um abismo impossível de explicar entre o solitário e perplexo Getúlio que perambula angustiado, quase inerte, aparentemente sem alternativas nas noites intermináveis do Palácio do Catete, e a movimentação de massas espotânea que mobiliza milhares e milhares de pessoas após o anuncio de sua morte, e que deixou seus adversários e críticos em silêncio além de ocultos durante meses. Getúlio aparece como se ele, de fato, não tivesse outro recurso senão o tiro no peito.

Conversa com soldados em 1942.  
Há dois meses - mera coincidência - li os dois primeiros tomos da trilogia sobre Getúlio publicada pelo jornalista cearense Lira Neto. Aguardarei o terceiro volume sem esperança alguma de que possa ser muito distinto dos volumes anteriores, obra de natureza idiográfica, quase que exclusivamente orientado pelo valioso diário que Getúlio Vargas escrevia e onde deixava preciosas notas e indicações. O livro de Lira Neto - elogiado por Fernando Henrique Cardoso e Lula - não me despertou particular interesse, embora me benificiei com a riqueza de detalhes sobre a vida política nacional que somente de maneira geral conhecia. Foi útil, pois é impossível nada aprender em mais de 1000 páginas. No entanto, o alcance político da obra é limitado e não atribuo esta notória insuficiência a débil formação sociológica e política que os jornalistas de maneira geral sofrem. Numa obra exaustiva, há episódios decisivos que simplesmente não podem ser tratados com superficialidade, como por exemplo, entre tantos outros, a vitória de Getúlio sobre os paulistas em 1932. Em dois parágrafos a batalha esta decidida! Getúlio não brilha por dotes militares - que certamente tinha - e tampouco figura como hábil negociador diante do poder econômico que já se estruturava em São Paulo contra um Brasil soberano, somente possível quando distantes dos Estados Unidos. Uma lástima!

Quanto a GETULIO, não resta dúvida que o filme pretende reduzir o horizonte histórico da época ao drama pessoal do ex-presidente, não por razões estéticas, mas por clara motivação política. Não se trata de pedir à obra de arte uma lição de História. Uma obra de arte com clara intenção politizante deve ser, antes de qualquer coisa, uma obra de arte. Não é o caso. No livro, questões relevantes são superficialmente tratadas. No filme, a falsificação da historia é grotesca. Suspeito não tratar-se de mera coincidência. Tudo indica que para a produção cultural dominante, estamos condenados a ser um povo carente de grandes políticos. Estadistas e heróis existem? Sim, certamente, mas além mar. Aqui, entre nós, nem pensar.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Pra não dizer que não falei do Che

A historia é deliciosa. Ocorreu há alguns anos e revela o quanto um reitor pode ser miserável intelectual e politicamente. Era um reitor provisório, é verdade. Mas era um reitor. Com a pretensão de tomar medidas de impacto logo de assumir a função, armado com a ilusão de marcar para sempre sua fugaz gestão, decidiu eliminar uma enorme figura do Che há anos ilustrada na parede de um edifício central da Universidade Nacional de Colômbia, em Bogotá. Algo assim como quem diz, "a moleza acabou, agora há aqui, finalmente, uma autoridade". Ele julgou seu ato protegido pelo clima dominante no país que sempre garantiu larga margem de impunidade a qualquer autoridade, mesmo as mais insípidas e pouco influentes. No entanto, no dia seguinte o retrato do Che brilhava na parede novamente. De quebra, desafiados, os estudantes não somente rapidamente reconstruíram a enorme gravura, mas reproduziram centenas de minúsculos retratos do Che Guevara nas calçadas, muros, prédios, como se uma especie de febre guevarista tivesse afetado a estrutura física da universidade após a decisão da autoridade. Diante da ausência de vacina para tal enfermidade, o reitor esqueceu a disputa rapidamente como se nada tivesse acontecido e muito provavelmente, no íntimo, aceitou de bom grado a volta da imagem consagrada pela fotografia de Korda. Talvez tenha julgado adequada a "troca" inesperada imposta pelos estudantes.


Foi por esta pequena disputa que o retrato do Che ainda descansa na parede de um importante edifício na Universidade Nacional. Não tenho saudades de 68 pois, entre outras razões, foram anos que não vivi. Não os fantasio e tampouco os ignoro. Há, de fato, grande importância na década de sessenta, pois foi uma época onde compromisso militante, movimento de massas, horizonte utópico e importantes contribuições teóricas coincidiram. Sem saudade, repito, considero que todos aqueles que conseguem respirar no esterilizado ambiente acadêmico que sofremos, deveriam olhar e quem sabe estudar algo sobre o período. De minha parte, entre os autores daquele efervescente tempo, li com devoção Marcuse, pois era evidente tratar-se de um dos intelectuais frankfurtianos nada disposto a deixar "mensagens em garrafas", para usar uma feliz expressão de sua autoria. O filósofo radicalizou, foi considerado "profeta" pela armadilha midiática e provou também o amargo sabor de uma derrota histórica. No entanto, jamais perdeu a lucidez e muito menos arregou, o que não é pouco. Antecipou com invejável precisão o fim das barricadas, a partir do qual a vida se reduziria a "larga marcha através das instituições" e na qual o trabalho educativo seria o mais importante ainda que menos sedutor. Vaticínio certeiro, afinal, o antigo militante compromissado de outras épocas cedeu espaço para o "agitador" eletrônico, e as novas lideranças estão mesmo de olho numa candidatura a deputado ou numa assessoria parlamentar, antes que arregaçar as mangas em projetos educativos de resultados mais lentos, menos visíveis e com efeitos mais duradouros. O deputado e o sindicalista querem, quando muito, melhorar o sistema na ilusão de que tal meta é possível.   

Este inicio de século pinta distinto. O pragmatismo comanda a vida política e mesmo entre aqueles com inclinação "critica", predomina certo ceticismo funcional à ordem dominante. Não creio que um retrato na parede possa mudar alguma coisa e tenho plena convicção de que os estudantes - aqueles mesmos que reafirmaram o lugar do Che de maneira tão vistosa - tampouco alimentam qualquer ilusão a respeito. As paredes da universidade lá em Bogotá estão bem animadas, como vocês podem ver. De minha parte, trocaria a limpeza geral dos edifícios por uma boa reforma curricular que enfrentasse a paralisia intelectual,a repetição canônica, o eurocentrismo, e a mais completa falta de contato com a realidade que orienta a formação universitária em todo o continente.

Estudantes pintam edificios na UNC
Os estudantes também aceitariam esta troca, estou seguro. É óbvio que nenhum reitor ou reitora na atualidade possui a coragem intelectual suficiente para mexer numa linha da grade curricular, um tema praticamente proibido entre nós. Ministro algum arriscaria seu cargo num projeto semelhante. Os pro-reitores silenciam também... Os estudantes, o únicos interessados em tal mudança estão demasiadamente partidarizados (não politizados!) para tematizar o currículo e os métodos de ensino como um problema político central. Nestas circunstâncias, o que pode uma gravura na parede diante de aulas enfadonhas e alienantes que ocupam diariamente a imaginação na sala de aula com o intuito de aliena-la? Nada, obviamente. Os professores que ditam o ritmo nas universidades se julgam sábios superiores aos doutores escolásticos do século XVI ou simulam a autoridade dos catedráticos da antiquada universidade colonial latino-americana que finalmente foi enfrentada em 1918, em Córdoba, Argentina. Em consequência sentem-se - e atuam - com pedagogia reacionária. As pinturas acima funcionam como alegoria, sem potencia reformadora e menos ainda revolucionária. Recordam, no entanto. E alguém tem que recordar porque afinal, esta é também a nobre função da filosofia. Ainda que o tempo presente pareça ter condenado para sempre uma possibilidade radical de mudar o estado das coisas. 

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Apesar de Veríssimo

Não poucas vezes comprei a edição dominical de algum jornal somente para ler Luiz Fernando Veríssimo. Tenho, de fato, simpatia pelo escritor gaúcho e apreço por sua crônica sempre bem-humorada, uma de suas qualidades literárias. Ele parece um sujeito sereno - inclusive quando torce pelo Internacional -, razão pela qual é bem provável que até mesmo gremistas o reverenciem, ainda que de maneira discreta como recomenda a rivalidade no Rio Grande amado. É possível que sua simpatia não tenha produzido um único e indispensável inimigo até hoje. Ele, tal como Leandro Konder, é um homem sem inimigos.

Mas ontem, num canal de TV, falando para milhões, ele comentou a morte de Gabirel García Márquez nestes termos:

"apesar de ser latino-americano e escrever muito sobre nossa realidade meio fantástica mesmo, né, ele foi um autor internacional, universal, lido e compreendido em qualquer lugar do mundo"

Doze contos peregrinos
Eu tomava minha primeira cerveja e não podia crer no que acabava de ouvir. Atribuí meu espanto ao ruído do bar e já em casa fui ver novamente a declaração na internet. Tudo se confirmou. Não havia qualquer efeito de álcool na minha compreensão: "apesar de latino-americano....". Novamente vi e ouvi Veríssimo dizer, "apesar de latino-americano..." Apesar? Ora, Gabo foi enorme precisamente porque era latino-americano e escrevia sobre nossa realidade. As editoras, o especialista universitário, o presidente dos Estados Unidos e todos os demais que o consideraram grande escritor, leram Gabo porque precisamente ele escrevia sobre nossa realidade e era um latino-americano. Enfim, na cabeça do jornalista colonizado Gabo transformou-se num autor "universal" ou "internacional" apesar de ser latino-americano. No entanto, estou seguro de que Gabo jamais se sentiu um universal, porque não era um bocó ou esnobe. A literatura e o jornalismo que praticou buscavam antes de mais nada afirmar ou definir nossa identidade latino-amerciana comum e a caribenha em especial.

Não é necessário mais do que ler "Boa viagem, Senhor Presidente", publicado em "Doze contos peregrinos" para confirmar esta incessante busca. A respeito, recordo o orgulho com que o leu num seminário na UNAM, antes mesmo de disponibilizá-lo aos seus fiéis leitores. Eu o escutei como quem escuta um testamento. Tomei aquele conto como "sintese" de sua missão literária. Gabriel Garcia Márquez foi, entre nossos grandes escritores, aquele que, por razão desconhecida, mais li. Contudo, não sou senão um curioso na literatura e não estou proferindo sentença alguma sobre Veríssimo. No próximo domingo, é claro, vou buscar na banca mais próxima a crônica do gaúcho.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Sobre o patriotismo


Diante de qualquer manifestação nacionalista, escutei não poucas vezes o antigo bordão de Samuel Johnson proferido feito sentença: "o patriotismo é o último refúgio dos canalhas"

Quando explodiram as manifestações de junho de 2013 a partir da convocatória feita pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra o terrível sistema de transporte que sofremos, não faltaram vozes contra o uso das bandeiras brasileiras pelas mãos delicadas de uma classe média que parecia descobrir o gosto pelo protesto social. Muitos amigos afirmavam que a evocação do nacional era um mau sinal: a direita ganhava as ruas. Mais ainda: a direita nacionalista finalmente rangia seus dentes contra um governo “progressista” que a mídia golpista quer derrubar. Enfim, eles concluíam que nenhuma manifestação nacionalista pode ser de esquerda porque – comprava-se uma vez mais – o nacionalismo é historicamente uma arma da direita.


Diante do espasmo nacionalista do ano passado ouvi, especialmente de pessoas com passado ou sentimento de esquerda, que o nacionalismo – não havia mais dúvidas – também aqui era expressão do “último refúgio dos canalhas”, tal como o escritor inglês havia vaticinado de maneira aparentemente irremediável em 1735. Afinal, “esta gente” que então reclamava é a mesma que sempre calou diante das imensas carências do povo brasileiro. Esta gente – repetiam – jamais subiu num ônibus ou metrô!! Não possuem, portanto, direito ao protesto com o sofrimento alheio. De fato, é típico do comportamento classemédia a indiferença diante da superexploração a que estão submetidos milhões de trabalhadores brasileiros. Com frequência ideológica, a classe média, especialmente a alta, não cansa de culpar os miseráveis por sua própria miséria: não gostam de trabalhar, possuem muitos filhos, não tem disciplina, bebem, sambam, perdem tempo com futebol, etc... Em consequência a classemédia acredita que o PIB cresce por passe de mágica e não em função do suor e sangue de milhões de seres humanos que jamais poderão usufruir dos resultados de seu próprio trabalho.

Não há dúvidas sobre a falta de sensibilidade social da classe média, pois ela pensa e atua assim; mas este reconhecimento não concede razão aos “críticos progressistas”. Há grave contradição na consciência sempre ingênua de pessoas “progressistas”. De maneira geral o bando progressista defende os governos Lula/Dilma. Alegam que diante dos tucanos e das circunstancias, é tudo que podemos conseguir. Eles parecem esquecer – por pura conveniência - que precisamente os governos Lula/Dilma são os maiores representantes do sentimento de classe média, esta poderosa ideologia que atualmente governa a cabeça da maioria. Não à toa, Lula insistia na exibição dos supostos 30 milhões de brasileiros que assumiram a condição de classe média. Os analistas difundem esta ideologia como algo essencialmente positivo, mas jamais eles próprios pensaram em participar da nova classe média brasileira, pois esta incluiu tão somente aqueles que recebem até 3 salários mínimos. A “nova classe média” seria muito boa para os miseráveis, nunca para os defensores do governo que analisam a situação em salas confortáveis ou em seminários acadêmicos; portanto, observam a vida nacional longe, bem longe da tristeza que implica a vida comum, quase miserável, de milhões de brasileiros.

Há algo de perverso nesta operação política.  A ideologia que afirma a emergência de uma nova classe média é também uma forma de digestão moral da pobreza que conforta e ilude os “progressistas”. A política social – sempre necessária em países dependentes – é motivo de orgulho para os petistas, mas é também conveniente para a classe dominante na medida em que a famosa “questão social” encontrou finalmente uma fórmula mágica e eficaz de solução: não mais se trata de “um caso de polícia” – como aprece ter afirmado na década de 30 o presidente Washington Luís – mas um caminho seguro de atender aos pobres e miseráveis sem tocar no poder, na propriedade e nos ganhos dos ricos. Não há que iludir-se com o fundamental, afinal, como insistiu Lula, “os ricos nunca ganharam tanto no meu governo”. Os pobres e os miseráveis, sempre submetidos à superexploração, votam massivamente em Lula e Dilma para não perder as migalhas que ganharam. Os ricos seguem acumulando sem grande estorvo. Enfim, parece que vivemos no “melhor dos mundos possíveis”!

Contudo, o bando que divulga a melhoria da situação do país reconhece que os serviços públicos são mesmo péssimos, razão pela qual o protesto pode emergir de maneira inesperada em qualquer momento e situação.

Foi neste contexto que as bandeiras verde-amarelas voltaram às ruas. Não era a primeira vez, é preciso recordar. Na campanha das “diretas já” (1985) a bandeira nacional figurava como artigo quase militante e nos principais comícios se cantava o hino nacional com fervor contra a ditadura. Mas a memória é, nas filas da esquerda, um recurso de luxo e à direita, um artigo inconveniente. Por esta razão, a crítica contra o uso da bandeira nacional – e o nacionalismo ambíguo – voltou com força e figurou como expressão de novidade. Chegamos ao absurdo de supor que ninguém pode reivindicar a condição de crítico senão se afastar do nacionalismo, esta força que figura entre nós como espécie de lepra política.

O uso indevido da famosa frase de Johnson (“o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”) é, ainda que não pareça, fruto de um enorme desconhecimento da história da Inglaterra. Mas também é produto de um gigantesco erro estratégico da esquerda brasileira, tributária do eurocentrismo, esta poderosa ideologia fomentada desde a Europa e os Estados Unidos. Entre nós, o eurocentrismo aparece como apreço alienante ao cosmopolitismo e rechaço ao nacionalismo.  
Vamos analisar os dois temas.

O nacionalismo inglês de Johnson

Os patriotas eram na Inglaterra de Johnson uma tendência política tal como existiam trabalhistas no Brasil ou existem peronistas na Argentina e democratas nos Estados Unidos. Enfim, antes que necessariamente nacionalistas, eram uma corrente de opinião, partidária e política, numa Inglaterra que apenas começava colher os frutos daquilo que os ingleses chamam com desmedido orgulho nacional, Revolução Gloriosa. Os patriotras, em consequência, militavam no patriotismo

Foi precisamente em 1774, portanto um ano antes de afirmar que “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”, que Johnson escreveu um famoso panfleto de campanha – The Patriot – destinado a defender uma vez mais o voto nos patriotas. Trata-se de um texto por encomenda que o escritor produziu com evidente ardor patriota e profunda convicção política.

Donald Green, organizador de vários escritos de Johnson, afirma que “desde a década de 1730 esta palavra havia sido o grito de todo grupo de oposição descontente, qualquer que fosse sua composição e objetivo”.  Os patriotas atravessaram um século com certo prestígio de tal forma que os radicais de 1760 e os reformadores parlamentares de 1780, recorriam a legitimidade histórica para afirmar suas ideias e políticas muitos anos depois de ter inicio este curioso movimento de ideias. Betty Kemp escreveu que “o programa patriota significava, na prática, place bills, parlamentos de curta duração, eleições livres, a destruição da influência do Rei sobre o Parlamento”.

Não estavam sozinhos. Jamais esqueço David Ricardo, segundo Marx o mais importante economista do século XVIII, também apresentou uma reforma parlamentar em 1818 e jamais conseguiu aprová-la porque, precisamente, tentava diminuir o poder do Rei com a introdução do voto secreto, mandatos parlamentares curtos e direito de voto aos que pagavam impostos e não exclusivamente aos proprietários. O parlamento nunca aprovou sua tímida proposta de reforma. E David Ricardo era um fervoroso nacionalista, embora jamais se definiu como tal pois, ao contrário de Johnson, viveu numa época em que seu país já era a potencia dominante na Europa. Na época ricardiana a Inglaterra já era a nação mais poderosa do continente europeu e a tarefa de todo inglês culto era condenar os demais povos na pretensão de construir sua nação. Enfim, toda figura inglesa de prestígio e/ou influencia era, antes de qualquer outra coisa, nacionalista.

Na Inglaterra do século XVIII os nacionalistas consequentes assumiam o patriotismo. Os oportunistas, após tentarem de todas as formas coquetear com o Rei, após operar inúmeras manobras e bandaços – hoje com os liberais e amanha com os conservadores – quando viam as portas da política parlamentar se fecharem, não vacilavam em recuperar o prestígio perdido candidatando-se pelo patriotismo que atravessava décadas resistindo o teste decisivo do tempo com vitalidade e credibilidade junto ao povo inglês.

Portanto, o patriotismo – antes que uma tendência nacionalista semelhante que aflora na América Latina – era uma espécie de tradição política que marcava a linha oposicionista ao Rei num contexto de uma operação difícil. Mas era evidente que os patriotas professavam amor à Inglaterra e, a sua maneira, eram também nacionalistas. Nunca foi fácil opor-se a reis na Europa. Johnson, em consequência, escreveu profusamente tentando sempre salvar o patriotismo dos oportunistas de todos os matizes. Não poderia ter sido mais favorável ao patriotismo ao afirmar que “um Patriota é aquele cuja conduta pública esta regulada por um único motivo, o amor a seu país; aquele que, como agente no Parlamento, não tem esperança nem temor por si mesmo, sem amor nem resentimento, mas para o qual tudo se refere ao interesse comum”. 

Alguém poderia ter dúvida de seu absoluto entusiasmo pelo patriotismo? Agregou que a “qualidade do patriotismo é ser zeloso e vigilante, observar todas as maquinações secretas e ver os perigos públicos a distância. O verdadeiro “amante de seu pais” esta disposto a comunicar seus temores e a dar alarme cada vez que percebe que se aproxima um mal...”. Enfim, escreveu copiosamente a favor dos Patriotas com um único objetivo: revelar os falsos patriotas, especialmente aqu*eles que sendo execrado pelos demais partidos pela porta de trás pretendiam ressurgir das cinzas entrando no patriotismo pela janela. Diante de seu fracasso em impedir os oportunistas e trapaceiros de toda espécie em prosperar nas fileiras em que ele com tanto zelo militava, não vacilou em alertar que o “patriotismo é o último refúgio dos canalhas”! Jamais foi sua intenção liquidar ou diminuir o patriotismo (ao contrário!!!), mas única e exclusivamente impedir o domínio da canalha nesta importante tradição política.

Este é o sentido profundo da famosa frase de Johnson que antes de morrer – em 1775 – escreveu um largo ensaio sobre as Ilhas Malvinas, este território que até mesmo os britânicos cosmopolitas ainda acreditam ser propriedade inglesa. O estilo literário do escritor inglês não esconde algo fundamental: seu texto era, de maneira discreta, uma defesa sobre a soberania inglesa das Ilhas que são da Argentina. No entanto, com tom de quem desdenha o território além-mar, ele não deixou de defender discretamente a soberania inglesa sobre o território argentino, mesmo espetando o Rei e o desejo de parte dos políticos ingleses em fazer e lucrar com as guerras. Não por acaso, quando madame Margareth Teacher decidiu atacar a Argentina para recuperar o território perdido momentaneamente em 1982 em plena ditadura militar no país vizinho, o velho panfleto de Johnson foi novamente editado aos milhares pela elegância e por sua discreta natureza nacionalista. Ninguém pode duvidar da devoção de Johnson à Inglaterra. Ele jamais se alinhou ou escreveu sobre as virtudes do cosmopolitismo. Jamais se pensou “cidadão do mundo”, como se as fronteiras nacionais não mais existissem porque precisamente na época em que viveu elas estavam apenas nascendo.

Cosmopolitismo cultural na rua onde vivo


O erro estratégico da esquerda
A esquerda brasileira sofre profundo processo de redefinição. Também o protesto social busca caminhos eficazes de combate e reivindicação, moldando lentamente, de maneira acidentada, seu novo perfil. Neste contexto, é claro que esta difícil definir quem é de esquerda no Brasil. Não tenho dúvidas que muita gente auto-definida como “progressista” pretende, na verdade, o monopólio da esquerda. É a forma envergonhada de “afirmação” do campo da esquerda, atitude que expressa além de oportunismo, uma dificuldade real do processo político. Em geral eles defendem Lula e Dilma como se, de fato, o atual governo fosse o horizonte da política possível. Em consequência, os “progressistas” atribuem às massas seu próprio limite político e, das frações de classe, constituem a mais vulnerável ao modismo cultural from esteiteis. Esta é uma das razões pelas quais não aprovam a cultura nacional e não poucos duvidam abertamente de sua existência. Também por isso, estão sempre “abertos” ao modismo cultural, via pela qual tem livre curso o colonialismo emanado dos centros metropolitanos (Nova York e Paris, na cabeça).

Para estes, nada pior que um proleta carregando uma bandeira do Brasil. Nada mais alienante que um negro favelado empinando o pavilhão nacional. Enquanto condena a lepra política do nacionalismo nos trópicos, o sujeito vai pra Europa e se encanta com a comemoração dos 200 anos da Revolução Francesa – uma data nacional – ou vive com êxtase os festejos do “Independence day” nos Estados Unidos, mas detesta qualquer manifestação na sua própria Pátria, cuja manifestação, mesmo quando singela, não será considerada menos que um estorvo. Nestas circunstâncias o nacionalismo é, para os progressistas, uma demonstração inequívoca de que os pobres são massa de manobra da direita. Os progressistas agregam que nada pode ser mais provocador que um sujeito de classe média coberto pela bandeira nacional protestando contra o governo que mais fez pelos pobres em nossa história. Nada pior que uma classe média de unhas bem pintadas, cabelos ordenados, roupa clean e pele branca protestando contra o “seu” governo. É precisamente nestas circunstancias quando recordam e repetem com entusiasmo que “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”.

Embutido na operação, claro está que os “progressistas” reafirmam sua filiação ao internacionalismo abstrato que os impede de se assumir como esquerda nacional. Prefere, em oposição, professar apego ao cosmopolitismo idiota e alienante que orienta sua literatura preferida, as marcas do vinho francês que aprecia, o padrão de vida e o consumo típico da indústria cultural. Eles resistem em assumir a cultura nacional como condição necessária da Revolução Brasileira. No limite – repito – duvidam ou rechaçam inclusive a ideia de uma “cultura brasileira”. Em consequência, mesmo que expressem certo apoio aos “bolivarianos” de outros países, na prática não deixam de considerar esta perspectiva como “brega” ou imprópria para um país moderno e “complexo” como o Brasil mais assemelhado a França do que ao México ou Argentina.

A chamada inteligência brasileira, quase que reduzida ao mundinho universitário e a sedução midiática, não consegue romper com sua formação europeia, canônica, repetitiva da indústria cultural. Em consequência, ela adora shoppincenter. Cinema Cult. Escrever e publicar em inglês. Quando se debruça sobre a cultura brasileira, prefere sempre Machado à Lima Barreto na mesma medida em que dedica atenção especial à Chauí – e  seu infinito apreço pela cultura nacional francesa – enquanto desconhece Álvaro Vieira Pinto com seu enorme conhecimento sobre o Brasil. É neste momento conclusivo que nos espetam contra a lepra nacionalista e repetem Johnson. Contudo, devo recordar uma vez mais, para desespero dos opositores do nacionalismo, que Johnson morreu patriota.

O nacionalismo na América Latina
O nosso nacionalismo, o nacionalismo latino-americano é, como podemos ler num texto esquecido de Gilberto Freyre, um “nacionalismo de proteção” que somente se justifica porque o mundo esta comandado por um “nacionalismo agressivo”, de corte imperialista, aquele mesmo com o qual os ingleses inauguram sua hegemonia mundial no século XIX. Este reconhecimento elementar sobre a natureza decisiva do nacionalismo nos países dependentes registrado por um conservador como Freyre passa batido pela esquerda que se pretende “moderna” e “culta”, sem vínculos profundos com a cultura nacional. Aqui entre nós, nem nacionalismo, nem patriotismo é conveniente, ensinam os moderninhos. Eles esquecem – ou fingem esquecer – que a vida nos Estados Unidos, ou em qualquer país europeu “civilizado” de preferência, esta orientado por profundo nacionalismo. Bastaria ler o discurso de posse de Barak Obama para perceber o elementar ou acompanhar com alguma atenção as ações e discursos de senhora Merkel na Alemanha ou Holland na França. Ambos são, cada qual à sua maneira, disciplinados nacionalistas. Agressivos nacionalistas, diria.

E o que seria o nosso patriotismo? Na pluma de Lima Barreto, as virtudes de Policarmo Quaresma definem o tema: “Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte anos, o amor da pátria tomou-o por inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio, fora um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi um conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa”. Enfim, nada que se possa aprender num texto de Raws, Bourdieu ou Habermas.


Na pista literária de Lima Barreto, o gênio esquecido


Bem sei que no lugar da cultura nacional, o colonialismo alienante que comanda a vida acadêmica no país – especialmente no jornalismo e na reduzida vida intelectual – indica as virtudes do cosmopolitismo como caminho racional e seguro pra êxito profissional e audiência pública. A conduta nacionalista é logo escrachada impiedosamente enquanto para o “universalismo” se rendem todas as homenagens. Colonialismo na veia, apresentado como se de fato fosse universalismo virtuoso, representante do bem da Humanidade.

Alguém, acaso, poderia ser contrário a influencia da “cultura universal” sobre nossas vidas? Bem, se tal coisa existisse – a cultura universal – definitivamente não poderíamos nem deveríamos nos opor. Ao contrário, se um belo dia, ao despertar, nos encontrássemos com a existência da “cultura universal” deveríamos abraçá-la como patrimônio comum da Humanidade. O que temos, no entanto, é algo substancialmente diferente. Quando alguém aqui no Brasil reivindica as virtudes do cosmopolitismo com inusitada frequência pretende, na pratica, tão somente a defesa da indústria cultural dos Estados Unidos. No rádio, no jornal e na TV. Na editora e na linguagem corrente. Na novela com grande audiência e na canção de moda. Na arquitetura estilo shopping e na vestimenta. Em quase tudo. Ligue uma emissora de rádio qualquer e desfrute da música universal que ali toca: não há – quase nunca há – música  árabe, latino-americana, francesa, espanhola ou catalã. Não toca Vila Lobos, Yamandú ou Paco de Lucia. A música que ali domina é from esteites, em geral de péssima qualidade. A boa música gringa – que de fato existe – quase não chega até nós.

Ardor cosmopolita no bairro onde vivo
Trindade - Florianópolis


É por esta razão, e não por suposta deformação genética dos latino-americanos, que a atitude nacionalista ou o programa nacionalista entre nós adquire muito facilmente um caráter anti-imperialista na defesa da economia, da cultura, do território, da soberania. O poder dos Estados Unidos é tal sobre nossa vida material e espiritual que, por mero ato de sobrevivência, deveríamos ser todos, em medida distinta, nacionalistas. Enfim, deveríamos ser patriotas, tal como Johnson o foi na sua amada Inglaterra no século XVIII. Melhor ainda seria se adotássemos a perspectiva de Marx e entendêssemos que o fim das nações seria efetivamente bom pra todos nós e fatal para os capitalistas. Mas eu sei que seria pedir demasiado.