domingo, 24 de julho de 2016

Elogio a Glauber Rocha


Quando vi por primeira vez aquela parte do documentário realizado por Silvio Tendler chamado Glauber labirinto do Brasil, no qual Darcy Ribeiro faz eloquente discurso em homenagem ao amigo morto, julguei apressadamente que, talvez, se tratasse do tradicional exagero que costuma acompanhar uma perda definitiva. Darcy dizia ser Glauber o "mais indignado" de toda uma geração, um sujeito que oscilava "entre a esperança e o desespero" porque o Brasil nunca realizava nossas imensas possibilidades.

Aquele pungente discurso de Darcy me tocou profundamente. Após ver e revê-lo muitas vezes, guardei a cena como quem guarda um trecho decisivo de um autor importante ou ainda o verso de poema triste como aquele de Cesar Vallejo, à disposição da memória para ilustrar uma situação real. (Me moriré en Paris con aguacero, un día del cual tengo ya el recuerdo. Me moriré en París - y no me corro - tal vez un jueves, como es hoy, de otoño")

Na semana passada encontrei num sebo de Salvador - o Sebo do Brandão - um velho e preservado exemplar do livro Revolução do Cinema Novo (1981) de Glauber. Estou lendo aos pedaços, na verdade aos saltos, movido pelas sacadas sucessivas do gênio baiano que surgem a cada página. A oralidade da escrita é insuperável, Não conheci alguém capaz de afirmar seu estilo com tanta força. Pode-se imaginar Glauber falando, feito vulcão, convincente, profundo, seguro, profético. 

Alguém poderá afirmar tardia minha descoberta. É fato. Eu devo a Gilberto Felisberto Vasconcellos a insistência sobre a estética de Glauber, de quem já tinha visto todos os filmes sem perceber a grandeza e profundidade do fenômeno. Enviei a Giba quase tudo de Ludovico Silva e alertei à ele sobre Gunder Frank e Marini. Na boa, nada de troca desigual entre nós. Troca de equivalentes. Mas Glauber tem algo de muito especial. É síntese potente entre política e cultura.  

O livro Revolução do cinema novo é profunda reflexão sobre o subdesenvolvimento e a dependência. Sem risco de errar afirmo que Glauber bebeu fundo nas teorias sociológicas sem a boçalidade acadêmica. É claro que o cinema dele e de sua geração fazem parte do amadurecimento político e intelectual de uma época, de um amplo e inédito amadurecimento da inteligencia brasileira e latino-americana. É produto e impulso de um movimento cultural destinado a descolonizar o Brasil e reconciliá-lo completamente com a América Latina. A idolatrada semana da arte moderna é impotente diante do cinema novo. Incrível como se recorda a primeira com o mesmo método com o qual se esquece o segundo. O Brasil estava, de fato, ficando muito inteligente a partir da força do nacionalismo reformista cujo ápice foi o governo de Jango. Em perspectiva e sem saudosismo inútil, é possível ver como os últimos anos no Brasil não reverteram em maior consciência política. Não temos um movimento cultural em curso e tampouco em fraudas. O colonialismo comanda a vida cultural. Além do grito contra o golpe, o tempo que corre é de horizonte utópico miserável. É claro que existem tentativas de sair desta insuportável alienação político-cultural; é até extraordinário perceber como muita gente não se vende e não se rende em semelhante situação. No entanto, esta admirável resistência molecular não se expressa em movimento cultural contestatório e anti-colonizante pois quase todos querem entrar no orçamento da política pública. No fundo, a maioria dos ativistas e autores no terreno da cultura querem mesmo é um lugar ao sol aqui e agora, despreocupados ou até mesmo ignorantes da Revolução Brasileira. 

Glauber conhecia tudo de cinema. Era super bem informado sobre a industria cultural dos esteites e com a mesma segurança dominava a crítica ao cinema argentino, cubano, mexicano. Versava sobre Lukács e a estética condenando tanto as manifestações demagógicas da esquerda no terreno da cultura quanto a alienação de direita turbinada pela indústria cultural gringa. "Monstro produtor de ilusões e devorador de alienações, o cinema americano não pode deixar de gerar similares que logo sentiram a necessidade de devorar o pai pra sobrevier. Qualquer conversa sobre cinema fora de Hollywood começa por Hollywood".  Quanto aos expectadores brasileiros, a "imagem da vida" diz Glauber, nascia do cinema americano! Em consequência, a ditadura artística sobre o filme nacional era inevitável. Ainda é assim ou até pior, pois o exito agora parece estar confinado à condição de "melhor filme estrangeiro" na festa da industrial cultural estadunidense, o tal Oscar. Tragédia!

Eu poderia seguir repetindo as grandes sacadas de Glauber até reproduzir as 472 páginas do livro que tenho sobre a mesa. Ele analisa produtores, autores, agências, personagens, filmes com aquela oralidade felina invejável. Aulas de técnica cinematográfica sem vacilar um segundo no nobre objetivo de construir um cinema revolucionário.

O anti-imperialismo não é panfleto nem bordão morto na sua análise: é principio que organiza um projeto cultural próprio, emancipatório, revolucionário. É mundial porque pretende expressar a rebeldia da periferia capitalista e enfrentar o cinema europeu e estadunidense sem vacilação, complexo ou submissão colonial. Glauber sabia tudo sobre o cinema europeu, estadunidense e especialmente o latino-americano. Neste, conhecia a qualidade de nossos cineastas, escritores, nossos dramas, as opções, os detalhes da produção de um filme importante, a política de financiamento e comercialização como se estivesse falando da Embrafilme. Ademais, o conhecimento de Glauber sobre a cultura brasileira é espantoso!! É um conhecimento vital, em larga medida temperado pela vivência direta com situações e pessoas, articulado milimetricamente com sua teoria do Brasil e da Revolução Brasileira. Glauber não se perde no argumento, é preciso na informação, certeiro no golpe.

Glauber seguirá sendo nosso gigante da cultura durante muito tempo. Eu entendo agora mais do que nunca as razões pelas quais a política cultural do Brasil durante todos estes anos produziu o esquecimento de sua obra. A política cultural do estado brasileiro - comandado por democratas ou golpistas - não se afasta um segundo da produção do esquecimento sobre este sujeito luminoso.

Não poderei terminar amanhã a leitura sistemática do livrinho bomba atômica que comprei na Bahia há uma semana. Mas logo que recuperar as energias novamente não largarei o tomo até devora-lo completamente. É pura luz, necessária para economistas, sociólogos, antropólogos e também para engenheiros, médicos e advogados, pois à ninguém esta vetada a cultura. Mas Glauber é particularmente importante para nós de esquerda e para todos aqueles que se definem com maior ou menor rigor como de esquerda. Glauber Rocha é a linha política e estética que divide quem esta com a cultura brasileira e quem esta com o colonialismo dominante. Enfim, define quem esta com a Revolução Brasileira e quem esta com a reprodução cultural e política do subdesenvolvimento e a dependência. 

terça-feira, 12 de julho de 2016

Mito e verdade da revolução brasileira


Mito e verdade da revolução brasileira  é um retrato do clima intelectual e político do início da década de sessenta e condensa, sobretudo, a intensa polemica no interior da esquerda entre as tendências socialistas e os nacionalistas, capítulo inconcluso da Revolução Brasileira. Não cometo injustiça em dizer que Alberto Guerreiro Ramos era o intelectual mais importante do país antes da ditadura; era também a cabeça pensante mais importante e fecunda do trabalhismo brasileiro e do ISEB. Guerreiro Ramos foi pioneiro em divulgar a força da obra de Lúckacs no Brasil e, tal como o filósofo marxista húngaro, abriu ácida polêmica em relação ao “marxismo-leninismo”, a ideologia de estado divulgada na Rússia e adotada, sem restrições, por grande parte da esquerda no mundo. No entanto, ele não confundiu o essencial: Marx e Lenin figuram para Guerreiro Ramos como homens de excepcional capacidade intelectual e, no caso do revolucionário russo, um gênio de “irrepreensível honradez revolucionária” pelo qual nutria admiração, especialmente pela sua “sincera convicção de que estava trabalhando pelo desaparecimento da espoliação do homem”. Guerreiro Ramos acusou o caráter obsoleto da teoria leninista do partido indicando que o problema da organização não poderia mais ser resolvido nos termos da Revolução Russa. Ademais, alertou com sabedoria que o “marxismo-leninismo” era um fenômeno tipicamente nacional e somente poderia ser compreendido a partir da história da intelligentzia russa e das condições sócio históricas que permitiram sua aparição. Nunca foi, portanto, uma solução de caráter universal.

O ponto central da polêmica segue, em larga medida, atual, pois Guerreiro Ramos defendeu neste livro a “dissolução do marxismo” e indicou o “marxismo ortodoxo” – segundo o cânone soviético – como o maior obstáculo para a elaboração de uma “teoria da revolução nacional”. Hoje, há quem possa supor uma polêmica superada. Estarão errados o que assim pensam, razão pela qual é indispensável recuperar com generosidade e rigor este ponto elevado da trajetória de nossa esquerda para atualizar a teoria da revolução brasileira, tão desprezada nestes tempos de pragmatismo e empobrecimento da práxis política quanto necessária para superar a dependência e o subdesenvolvimento. 


Guerreiro Ramos nutria-se da ambição de fazer a “crítica revolucionária da revolução brasileira”, recusando-se a importar o que chamou de “defeitos eslavos”. Nas circunstâncias difíceis de 1963, sua grande honestidade e não menor capacidade intelectual rendeu muitos adversários e inimigos tanto entre os comunistas quanto nas fileiras nacionalistas onde militava. A solução da questão nacional segue aberta e, se dúvida, é o grande desafio da Revolução Brasileira para comunistas, socialistas e nacionalistas.
Ademais, há algo valioso na conduta intelectual de Guerreiro Ramos que jamais podemos perder de vista: ele renunciou sempre tanto a comodidade acadêmica e o oportunismo político quanto o bom mocismo que corre solto na atualidade. Este bom mocismo é, na verdade, expressão de cinismo e, lamentavelmente, também aparece como artigo corrente nos partidos da esquerda. A consequência necessária deste comportamento é o ocultamento das questões centrais da Revolução Brasileira, entre as quais figura a famosa "questão nacional". A publicação desta obra e o debate que certamente suscitará, é indispensável para que a tematização do nacionalismo - centro da questão nacional - não se limite as reflexões do marxismo europeu, sempre divulgadas no Brasil como se pudessem ser a solução para os impasses de um país dependente e subdesenvolvido.