No Canal Resistentes participo há mais de dois anos numa coluna quinzenal na qual abordo temas políticos da América Latina e, obviamente, também do Brasil. Na última edição do programa exibido em 17 de setembro Claudio Passos organizou um debate entre Elias Jabour – membro do comitê central do PC do B – e eu para discutir a crise chilena e as eleições presidenciais. Na oportunidade, Elias sustentou as posições de seu partido convocando voto em Lula já no primeiro turno enquanto eu defendi o voto nulo na disputa presidencial. Indagado a respeito, Walter Pomar emitiu uma opinião sobre o evento na qual tratou exclusivamente de minha posição – voto nulo – atribuindo-me o poder de “causar danos ao marxismo”. Elias teve melhor sorte pois Pomar não emitiu palavra sobre a qualidade de seu marxismo.
https://www.youtube.com/watch?v=oV6aNl_C5qQ&t=5186s
A leitura de sua brevíssima sentença sobre o encontro permite
concluir que o divisor de águas para sacramentar a verdade sobre o marxismo está
determinado por quem vota em Lula e aqueles que negam o voto ao ex-presidente. É
Lula – e não o enorme conflito de classes que arde sob nossos pés – o critério
da verdade para Pomar. A “análise concreta de situações concretas” possui uma
essência eleitoral capaz de qualificar ou condenar toda posição: quem está com
Lula toca na realidade e, quem, ao contrário, nega voto ao ex-presidente, não
somente está fora da realidade senão que produz imenso dano ao marxismo.
http://valterpomar.blogspot.com/2022/09/nildo-ouriques-ou-sobre-como-causar.html
De minha parte, recordo que há anos sou um crítico quase
solitário dos marxistas que atuam na universidade; estes, na verdade, não
representam o “marxismo acadêmico” pois suas contribuições são pra lá de
modestas e constituem na grande maioria das vezes mera exegese sem conexão
alguma com a evolução da crise brasileira e menos ainda com o futuro da
Revolução Brasileira a despeito do conhecimento que eventualmente exibem
sobre a seção V do tomo III de O capital, da Crítica ao Programa de Ghota ou mesmo da Ontologia do ser social de Lukács... Portanto, não estou disposto a aceitar sem reserva a existência
de um “marxismo acadêmico” que, nas condições brasileiras, admitiria como uma
virtude semelhante àquelas que existem nos Estados Unidos ou na Inglaterra,
para dar apenas dois exemplos.
Entretanto, lidando e litigando contra o marxismo que se
refugiou na universidade após a domínio estalinista sobre o antigo movimento
comunista internacional, eu sou capaz de reconhecer contribuições parciais e
mesmo algum esforço bem logrado quando professores encaram temas de fronteira
ou aspectos parciais de nossos problemas desde uma “perspectiva marxista” sem,
contudo, tocar no nervo da Revolução Brasileira. Nesse contexto, creio que
Pomar está muito mais exposto ao “marxismo acadêmico” do que eu e, na verdade,
sua sentença sobre meu marxismo não possui os anticorpos que, por ossos do
ofício, desenvolvi em quase três décadas de profissão.
O PT é um partido que exibe enorme e definitiva crise ética,
programática e política cujo epílogo estamos observando nessas eleições. É um
partido que há muitos anos está impossibilitado de desenvolver teoria sobre a
realidade brasileira e, em consequência, aqueles que ainda resistem ao processo
já concluído de sua completa adesão a ordem burguesa, importam para seu
interior de maneira miserável as modas universitárias sem qualquer rigor e
reproduzem toda sorte de quinquilharias ideológicas necessárias para justificar
com algum “brilho teórico” as disputas eleitorais que, ao fim e ao cabo, ainda
mantém o partido “vivo”. Eu devo reconhecer que, vez por outra, vejo o esforço
necessariamente improdutivo de Pomar nos congressos ou encontros do PT, sempre destinados
a convencer a maioria do seu partido para voltar à rebeldia que exibiu na
juventude e, sejamos justos, foi precisamente aquela radicalidade que
finalmente construiu a aceitação eleitoral que ainda hoje possui mesmo que sem
brilho. Ainda assim, é fácil concluir que Pomar – há anos membro do diretório
nacional – não sai ileso da batalha contra a maioria absoluta de seu partido
pois o máximo que logrou até agora é simular que o “outrora maior partido de
esquerda da América Latina” ainda estaria “em disputa” quando, na verdade, nem
mesmo o caldinho de radicalidade que ele e seus companheiros logram manter
consegue impedir a conciliação de classe cuja expressão maior não poderia ser
mais eloquente: a chapa petucana Lula/Alckmin.
Devo registrar um grave descuido de meu crítico
pois enquanto ele me indica como uma espécie de maçã podre capaz de produzir
danos na cesta do marxismo, deixa sem cuidado seu próprio pomar. Ocorre que Walter
está empenhado na campanha de Lula para presidente e de Haddad para governador
de São Paulo. O último acaba de lançar um livro – O terceiro excluído – que ataca de maneira sorrateira a tradição
marxista no que ela possui de mais vital, potente e atual. Até agora, não vi
palavra de Walter sobre o tema embora seria uma tarefa a altura de um
comissário marxista. Mais importante ainda: o candidato de Walter para
governador e possível sucessor de Lula no futuro do partido, declara
solenemente que seus “gurus intelectuais” que terminaram por lhe influenciar
decisivamente na escrita de um livro abertamente reacionário são três
conhecidos e festejados acadêmicos uspianos (Ruy Fausto, Roberto Schwarz e
Marilena Chauí); todos eles com pinta de “marxistas” embora com reparos suficientemente
claros para não se confundir com a tradição crítica de Marx e Engels.
No Brasil, ninguém vacilaria em desconhecer que São Paulo é o
coração burguês do país e que a USP, embora cada dia mais decadente na batalha
das ideias, ainda mantém considerável influência acadêmica no país. Ora, os três festejados uspianos homenageados por
Haddad exercem de maneira distinta influência notável no partido de Walter e,
creio, até mesmo ele estaria disposto a admitir caso fizesse cuidadosa revisão
teórica e política, o quanto o “marxismo acadêmico” uspiano foi sempre
responsável em larga medida para as sucessivas derrotas que meu crítico acumula
na luta interna e que o condenaram a condição marginal nas decisões mais
importantes do PT. Na verdade, emparedado pelos acadêmicos uspianos – Haddad à
cabeça – Walter logra apenas marcar posição interna e figurar como testemunha
singular da completa adesão de seu partido a ordem burguesa.
Não considero uma contradição o fato de Walter me atribuir a
condição de “marxista acadêmico” enquanto seu candidato a governador é
expressão maior do academicismo alienante e funcional a ordem burguesa que
domina seu partido com a total cumplicidade e até mesmo entusiasmo de meu
inesperado crítico. Lula é, de fato, um divisor de águas entre nós nessa
eleição, mas jamais poderia ser o critério da verdade. Entretanto, não devemos
ignorar que precisamente Lula é apenas expressão cada dia mais pálida da
conciliação de classe que eu renuncio no terreno eleitoral enquanto Walter a reproduz
como se não tivéssemos alternativa senão seguir agarrado num santo que pode ter
muitos eleitores, mas é totalmente incapaz de produzir algum milagre.