quarta-feira, 20 de agosto de 2025

O discurso crítico de Marx


Bolívar Echeverría é um marxista desconhecido no Brasil e Virada do século é seu primeiro livro publicado em português. Nasceu no Equador (Riobamba, em janeiro de 1941, e faleceu no México, em 5 de junho de 2010), foi professor da faculdade de filosofia da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) durante muitas décadas como expressão de um marxismo cujo primeiro livro lançado em 1986 não deixava dúvidas: O discurso crítico de Marx. Portanto, antes mesmo da queda do muro de Berlim – cidade onde viveu dias intensos ao lado de Rudi Dutschke na década de sessenta – Bolívar resgatou a perspectiva crítica de Marx e do marxismo contra a hegemonia estalinista e a sociologia positivista então dominante nas filas da esquerda. Entretanto, o leitor não deve se enganar sobre o essencial, pois Bolívar não praticou uma exegese cujo obtivo sempre foi fugir da luta de classes e da perspectiva da revolução social em nome da reflexão sobre preciosismo conceitual inerente a obra de Marx. Ao contrário, com profundo apego a realidade social latino-americana, toda sua obra foi dedicada a elucidar os dramas e opções da esquerda aqui e agora em nosso continente e um chamado eloquente para que, finalmente, assumisse a perspectiva crítica inerente ao marxismo em geral e a obra de Marx em particular.

A crítica da cultura foi em muitos sentidos um ponto central da obra de Bolívar Echeverría, razão pela qual o resgate e reflexão do barroco – mais precisamente do ethos barroco – ocupou sua atenção com o objetivo de compreender temas inerentes a nossa particular formação social como a estética barroca e a mestiçagem cultural. Assim, a modernidade capitalista em curso na América Latina desde 1492 recebeu uma abordagem crítica destinada a elucidar algo essencial a todo projeto revolucionário na periferia latino-americana: o esforço político e teórico não poderia ter como o horizonte a realização das tarefas inconclusas da promessa liberal inerentes ao capitalismo dependente, mas, ao contrário, indicar claramente que na origem, nos próprios países centrais, a promessa liberal era em si mesma indesejável. Em consequência, as forças da esquerda latino-americana não poderiam orientar ou fundamentar sua práxis política ao horizonte permitido pelo liberalismo, mas, ao contrário, revelar que em sua fonte originária, aquele liberalismo – tanto o antigo quanto o moderno – eram duas versões incapazes de tirar a maioria da população das terríveis condições de vida e da quase completa alienação cultural na qual estão afundadas. De resto, mais que incapazes, qualquer versão do liberalismo constituía precisamente a fonte da opressão e alienação da maioria da população de todos os países da América Latina.  

A crítica marxiana da cultura ocupou, portanto, grande parte da obra de Bolívar Echeverría num terreno em que não faltam alertas sobre os descuidos do marxismo. Contudo, se a crítica da cultura é, de fato, um terreno de difícil e necessário acesso, ninguém pode ignorar a notável contribuição do marxismo latino-americano – de Adolfo Sánchez Vázquez a Bolívar Echeverría – para a definição da cultura e as profundas implicações políticas das “opções” culturais. Nesse contexto, o trato da identidade recebeu do marxista equatoriano fecunda perspectiva ao versar sobre a modernidade e a branquitude longe dos modismos identitários alienantes importados dos Estados Unidos como ideologia de negação da mestiçagem, de recusa do próprio, de rechaço a nossa vital realidade social e da necessária libertação da escravidão intelectual que parece dominar de maneira irremediável a cena político-cultural. Bolívar não vacilou em apontar que essa tendência indicava na verdade uma enorme desconfiança da teoria que em não poucos casos expressava um “horror a teoria” que atravessa a pesquisa científica dos fenômenos culturais. Portanto, no primeiro ano do século atual publicou Definición de la cultura, livro no qual aprofundou as hipóteses contidas no seu original Las ilusiones de la modernidad lançado no distante 1995, oportunidade na qual lançou desafios teóricos e políticos ainda abertos a sua plena realização.    

No conjunto, as importantes obras de Bolívar Echeverría aliaram o conhecimento cuidadoso da perspectiva marxiana com o tratamento crítico destinado aos teóricos frankfurtianos que sem dúvida também exerceram certa influência intelectual em seus trabalhos sem, contudo, perder de vista os problemas humanos desde uma perspectiva genuinamente latino-americana. A recuperação do materialismo marxiano jamais recusou a indispensável análise da circulação capitalista e a reprodução da riqueza social contida nos esquemas de reprodução de Marx, rigor este tão incomum nos supostos críticos do autor de O Capital que pretendem, ingenuamente ou não, descartar a análise da economia como se essa pudesse ser representada pelo economicismo vulgar.

O leitor tem as mãos um livro cujo objetivo é a análise do século que vivemos a partir da revisão de nossas melhores heranças teóricas e políticas, da recusa ao senso comum e o pragmatismo rasteiro que o informa e da valorização da teoria marxiana necessária para tirar a esquerda da América Latina das ilusões próprias e alheias que a mantém numa condição apenas testemunhal na imensa crise que se desenvolve sob nossos pés.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Sobre ditadura e democracia

                                        "O amor, mãe, não é amor ridículo pela terra, nem à grama que nossas  plantas pisam. É o ódio insaciável a quem a oprime. É o rancor eterno a quem a ataca"

José Martí


As ilusões liberais burguesas afirmam a democracia como um valor universal embora as classes dominantes violem o postulado de maneira sistemática. Nos países capitalistas centrais – especialmente naqueles de histórico imperialista como os Estados Unidos ou a Inglaterra – o sistema político está longe de ser considerado uma democracia porque um sistema eleitoral não assegura virtudes capaz de efetivamente respeitar a vontade popular. Ademais, após o voto, há ainda o caráter de classe do Estado e suas instituições que se movem orientadas por interesses que passam bem distantes das necessidades das maiorias.

Na periferia capitalista, nos países dependentes e subdesenvolvidos, não é possível aceitar as teses liberais mesmo quando se apresentam de forma educada ou ilustrada pois o regime político liberal burguês é incapaz de assegurar as condições mínimas de cidadania para a maior parte da população. Tudo permanece na promessa durante décadas ou mesmo séculos!

Afinal, se a promessa liberal burguesa goza de simpatia popular, por que razão as ditaduras são recorrentes? No Brasil, a ditadura implantada pelo golpe militar de abril de 1964 nasceu por dupla determinação: de um lado emergiu como contrarrevolução diante das reformas de base do governo reformista de João Goulart; de outro, a partir dos interesses de segurança hemisférica dos Estados Unidos que não podem admitir qualquer modalidade de soberania numa área estratégica do domínio imperialista.

A despeito de sua longevidade, as causas e as lições de 21 anos de ditadura foram esquecidas. Atualmente, a juventude dominada pelo liberalismo – tanto à direita quanto à esquerda – possui escassa consciência das razões que levaram a ditadura de classe e menos ainda das transformações ocorridas naquele período. O governo reformista de João Goulart – reforma universitária, urbana, agrária e especialmente a lei de remessas de lucros que limitava as transferências das multinacionais – constituíram um bloco popular de enorme força que avançava em consciência e organização popular destinada a arrancar dos tribunais e do parlamento conquistas dentro dos marcos legais. As classes dominantes e a embaixada de Washington não vacilaram: o recurso a ditadura era o único meio de estancar a emergência do povo na História. Entre o 1 de abril de 64 e a eleição indireta de Tancredo Neves e janeiro de 1985, o desenvolvimento capitalista alterou sua qualidade. Durante a ditadura o desenvolvimento da burguesia industrial, comercial, agrária e especialmente bancária cresceu de maneira vertiginosa. O processo de urbanização foi intenso e o mercado de trabalho ampliou sob o tacão de ferro da superexploração da força de trabalho.

O regime liberal burguês atual, ao contrário daquele período de transição da ditadura de classe para um regime eleitoral, não goza em absoluto de prestígio popular. A democracia não pode ser confundida com um regime eleitoral! A democracia será sempre uma realidade histórica a ser conquistada pela luta e poder da maioria dos trabalhadores! O simples funcionamento de tribunais, a realização de eleições regulares, a alternância de presidentes da república está longe – bem longe! – de lograr a simpatia da maioria do povo. O que dizer da sacrossanta “liberdade de imprensa”? Ora, os monopólios televisivos – nacionais e estrangeiros – manufaturam a opinião pública segundo os interesses das grandes corporações. De fato, não há novidade, mas ignorância e cumplicidade do liberalismo de esquerda na análise do processo pois há quase um século (1933) Edward Bernays, a propósito do sistema político estadunidense, escreveu: “A nossa deve ser uma democracia de liderança administrada por uma minoria inteligente que saiba como disciplinar e guiar as massas”. Poderia ser mais claro? Afinal, o controle da opinião pública por meio dos monopólios de comunicação não realiza o objetivo com precisão? Aquele que dúvida ou acredita que com seu instagram ou canal de youtuber está influenciando algo na formação da consciência popular, deveria observar com mais cuidado o gradual fortalecimento dos interesses da classe dominante na economia, no parlamento, no judiciário, nas artes e na estética dominante, na escola básica e nas universidades!

Ademais, o empobrecimento da classe trabalhadora não pode ser superado pela filantropia que na prática ordena aquilo que a esquerda liberal chama de “políticas sociais”. De fato, um programa como Bolsa Família, para dar apenas um exemplo eloquente, considerado pela consciência ingênua como exemplo de solidariedade social durante os governos do PT foi mantido e até mesmo fortalecido nos 4 anos do protofascista Bolsonaro, o maior representante da direita. Por quê? Porque consumia menos de 0,5% do PIB enquanto o Estado destinava mais de 10% para pagamento da dívida interna, núcleo racional do rentismo organizado pela classe dominante e todas as frações de classe. No Brasil, mais de 90% dos trabalhadores recebem até 2,5 salários-mínimos! Como viver e garantir algum futuro para os trabalhadores nessas condições?

Nesse contexto, há que compreender a democracia liberal burguesa como um sistema de dominação e, em consequência, a luta política dos trabalhadores no seu interior deve colocar em xeque os interesses da classe dominante. É, portanto, uma luta nos marcos da ordem burguesa, mas contra a ordem burguesa! O atual sistema não possui capacidade de autorregeneração: acaso, há alguma iniciativa destinada a dar mais transparência ou legitimidade ao sistema eleitoral ou alguma reforma das instituições capaz de restaurar a fé pública no seu funcionamento?

A manutenção da democracia reduzida ao sistema eleitoral somente é possível e necessária porque as classes trabalhadoras sofrem com a letargia de sua consciência e grau de organização, resultado e suposto da hegemonia do liberalismo de esquerda em suas filas. Ainda assim, a direita liberal não vacila e a ofensiva em curso contra a “democracia” revela de maneira clara que vivemos sob a lógica de situações extremas a despeito da lentidão e aparente paralisia da política. Nesse contexto, conspira contra os interesses populares a reprodução das ilusões inerentes “a defesa da democracia” tal como tem sido praticada atualmente. A razão é elementar: quando as maiorias não confiam na democracia, a simples defesa do atual sistema não faz menos do que autorizar o liberalismo de direita na sua marcha em direção a qualquer regime de terrorismo de estado capaz de calibrar a violência de acordo com suas conveniências e necessidades. Não será, portanto, um magistrado como Alexandre de Morais, um guardião eficaz do regime liberal burguês; ao contrário, em cada ação desenvolvida pelo ministro, a direita liberal acusa nova violação do regime das liberdades abstratas e, em consequência, fortalece não somente suas convicções, mas a agitação de que o sistema político atual não poderia ser pior.

Ademais, a economia política do rentismo elaborada pelo Plano Real em 1994 – poucos anos após a aprovação da constituição de 1988 – suprimiu na prática as promessas de um estado de bem-estar social capaz de enfrentar e solucionar a “questão social” herdada da ditadura de classe concluída em 1985. Assim, desse então, governo após governo, não fizeram menos do que aprofundar a dependência e o subdesenvolvimento baseado em primeiro lugar na superexploração da força de trabalho. Alguém pode defender a cidadania quando a maioria absoluta da população está submetida a um regime de exploração e violência sem precedentes? O raquitismo científico e tecnológico, a degradação da cultura nacional sob o império da indústria cultural metropolitana, a incapacidade de controle das riquezas naturais e defesa do território, a degradação da vida urbana afundada na violência, a barbaridade do sistema carcerário que confina quase 1 milhão de trabalhadores em práticas cotidianas de tortura e violação de direitos elementares, a subnutrição de milhões, o imenso déficit habitacional que condena centenas de milhares às ruas das grandes cidades, a notável degradação e marginalidade do sistema público universitário, o subfinanciamento crônico do SUS, a marginalização completa da escola básica e elementar, entre tantos outros temas revela o quanto a democracia liberal é uma arma poderosa da classe dominante. No lado oposto, como expressão necessária do processo, a concentração da propriedade urbana e rural nas mão de poucos, a desnacionalização acelerada da produção em ramos estratégicos da economia, o avassalador domínio das multinacionais e a liberdade para remeter às matrizes lucros e dividendos, o acelerado e ininterrupto crescimento da dívida interna desde 1994 que destina bilhões de reais a cada ano para todas as frações de capitais, a supressão de direitos trabalhistas elementares em favor dos super lucros revela, até mesmo para os ingênuos, que no atual sistema não há saída para a maioria do povo.

O que fazer? Em primeiro lugar não alimentar ilusões! À falta eventual de alternativa eleitoral capaz de canalizar a ira popular para uma saída revolucionária não indica que o tempo das revoluções terminou. Ao contrário, indica apenas que a ira popular crescente na sociedade brasileira não encontra tradução no bordão liberal de “defesa da democracia”. Indica, portanto, que é preciso superar o horizonte do liberalismo tanto de direita – que pretende nos remeter a uma ditadura semelhante àquela de abril de 1964 – quanto o do liberalismo de esquerda – que insiste no aperfeiçoamento da prática eleitoral e nas promessas inúteis – sem tocar no regime de propriedade e nos pilares da dependência e do subdesenvolvimento.

De resto, é preciso trabalhar sistematicamente pelo aprimoramento do radicalismo político em favor da Revolução Brasileira como tarefa intelectual. Alguém testado pela História afirmou com razão que “sem teoria revolucionária, não há revolução”. A teoria tem sido sistematicamente desprezada nas universidades em favor de um estudo de natureza escolástica e manualesco que não é menos que uma peça de alienação e fonte de desprezo de nossos alunos. Com razão! Como gostar de um estudo que não está apegado a nossa realidade? Como elevar nosso interesse por temas que não tocam no nervo da dependência, do subdesenvolvimento, da falta de soberania, incapaz de redimir as maiorias de um sistema de exploração e violência? A tarefa intelectual, nessas circunstâncias, ganha uma dimensão essencialmente política. A separação entre o acadêmico e o político não é senão uma peça de alienação e uma arma da classe dominante. Os intelectuais honestos e os estudantes comprometidos com a possibilidade de agarrar o destino do país nas mãos possuem, aqui e agora, uma possibilidade valiosa de colocar sua energia e capacidade intelectual em favor das maiorias. É um tempo extraordinário!

Artigo publicado no jornal das relações internacionais "O canarinho" dos estundantes de RI da UFSC