Como se a luta de classes não
mais existisse, Lula promoveu em 12 de abril de 2010 um acordo de cooperação militar
entre o Brasil e os Estados Unidos. O documento traz a assinatura de Nelson
Jobim, então ministro de Defesa e Robert Gates, o secretário estadunidense.
Gates não é um sujeito qualquer: por quase três décadas, foi membro e diretor
da CIA e conseguiu a aparente proeza de ocupar um cargo estratégico tanto no
governo do rústico Bush quanto na presidência do simpático afro-americano Barak Obama.
Ademais, o poderoso Gates, a despeito de parecer um falcão jogo-duro, era
também um sujeito descolado: decretou o fim da exclusão das mulheres nos
submarinos e também das perseguições de homossexuais nas forças armadas. Jobim
tampouco improvisou em sua larga carreira: ministro de justiça de FHC ocupou também a condição de Ministro de Defesa nos governos de Lula e Dilma. Foi ministro e presidente
do STF (indicado por Cardoso), defensor de Andrés Esteves quando o banqueiro foi preso na Lava Jato e, atualmente, é nada menos que sócio e presidente do conselho
de administração do BGT Pactual, banco criado por seu ex-cliente e patrão
quando diante dos tribunais. Não é um cara fraco, definitivamente.
O acordo de cooperação militar
entre a potência imperialista e um país latino-americano não suscitou polêmica
à época, mas, ao contrário, desprezo aos críticos. A consciência ingênua
dominante na esquerda liberal encabeçada pelo PT dava de ombros às críticas do
“esquerdismo” considerando-as não somente extemporâneas, mas completamente
descabidas historicamente. Não poucas vezes, os quadros remanescentes da
esquerda revolucionária eram considerados anacrônicos, cuja critica soava no
mínimo cativa dos tempos da guerra fria, que, segundo a fé corrente, não mais
existia,
pois teria sido soterrada pela queda do muro de Berlim. A opressão e dominação
de um país por outro, portanto, era alegadamente coisa do passado. Tal como
escreveu Marx acerca dos liberais defensores do livre comércio, “se são
incapazes de compreender como pode um país se enriquecer a custa de outro, não
necessitamos assombrarmo-nos que esses
mesmos senhores compreendam ainda menos que, dentro de um país, uma classe
enriqueça à custa de outra”.
A imprensa burguesa fez sua parte
e informou de maneira econômica a assinatura do acordo. Numa pequena nota, a
Folha de São Paulo registrou apenas que o “texto inclui a aplicação da
"cláusula de garantias" exigida pela Unasul (União das Nações
Sul-Americanas), que prevê não intervenção, integridade e inviolabilidade
territorial”. No entanto, em setembro de 2004, portanto no início do primeiro
mandato de Lula, o princípio da “não intervenção” seria rapidamente substituído
pelo “princípio da não indiferença” e os militares brasileiros encabeçariam –
sob comando de um então desconhecido General Augusto Heleno – o “intervencionismo
humanitário” a serviço de duas potências imperialistas, os Estados Unidos e a França.
Á época, apenas Hugo Chávez e Fidel Castro criticaram abertamente o
intervencionismo estadunidense validado pelo governo de Lula e mantiveram lúcida
e solitariamente a advertência até seus últimos dias de vida; em 2017,
quando ninguém mais duvidava do fim catastrófico da Minustah para o povo
haitiano, tampouco foram recordados. Entretanto, no Brasil, enquanto o petismo
silenciava-se sobre a “intervenção humanitária” no Haiti, a crônica otimista
das forças armadas brasileiras se manteve em alta até o último dia da ocupação
no pequeno país caribenho. Uma nota publicada na página do Corpo de fuzileiros
navais da Marinha do Brasil, registrou assim sua participação: “Em outubro de 2017, com um país mais seguro e
estável, a MINUSTAH chegou ao fim. Hoje, a segurança está a cargo
da Polícia Nacional do Haiti, que atualmente conta com um efetivo de 15 mil
homens – 10 mil a mais do que possuía em 2004. Após 13 anos de muitos desafios
e superação, com o sentimento de dever cumprido, os Fuzileiros Navais da
Marinha do Brasil deixaram o Haiti e entraram para a história.”
(cursivas minhas, NDO). O Haiti está, finalmente, pacificado. Não é mesmo uma
maravilha?
Alguns anos mais tarde, precisamente
em 18 de dezembro de 2015, poucos dias após o início do processo de impeachment,
a presidente Dilma promulgou aquele antigo acordo iniciado com Lula por meio do
Decreto 8.609, após a aprovação pelo congresso nacional em junho do mesmo ano. Em Washington, assinou pelo Brasil o então
ministro de Defesa, o petista Jacques Wagner e pelos Estados Unidos, o
secretário de Defesa, Ashton Carter. O decreto de Dilma foi igualmente ignorado
pelo militante da esquerda liberal, mais ainda do que a pioneira decisão de
Lula em favor da política imperialista. O pânico derivado do início do processo
de destituição capturou todas as atenções políticas de tal forma que uma
decisão de alcance estratégico, tomada provavelmente para buscar aliados
externos com a intenção de se manter no posto, simplesmente não teve
repercussão alguma. É verdade que o Acordo sobre Proteção de Informações
Militares Sigilosas foi assinado por Dilma em 26 de junho de 2015, véspera
da visita a Washington para um encontro com o democrata Obama. O Ministério da
Defesa publicou sua avaliação em nota, afirmando que, após “cinco anos de
espera e de debate”, os dois acordos, então aprovados na Câmara e no Senado
vão, finalmente, “abrir portas para novas perspectivas de cooperação no setor
de defesa com o governo norte-americano”.
A despeito das manobras, golpes,
traições, alianças espúrias e acusações de toda espécie no interior do
parlamento burguês que marcaram o ano anterior da campanha contra Dilma, o
Ministério da Defesa do Brasil não perde a linha da necessária lucidez quando
assuntos estratégicos estão em jogo. A nota firma que a “articulação do
ministro da Defesa, Jaques Wagner, junto aos presidentes das duas casas
legislativas, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e o senador Renan Calheiros
(PMDB-AL), foi fundamental para a promulgação da matéria, pois desde 2010 os
dois acordos aguardavam a apreciação do Congresso Nacional devido à necessidade
de alguns ajustes.”. Não se pode desprezar a capacidade de políticos vulgares
como Eduardo Cunha e Renan Calheiros em separar, como Lenin diria,
o governo passageiro do governo permanente, para usar a terminologia da direita
estadunidense. Tampouco devemos ignorar a ação de Jacques Wagner, um dos
cardeais do petismo, que, mesmo diante da chapa quente produzida pela oposição
na campanha do impeachment, não deixou a peteca cair e levou, a despeito de rusgas
aqui e acolá, a ação estratégica comum para regularizar e trocar informações
militares sigilosas entre um país dependente e a potência imperialista.
Portanto, a presença de 240
militares estadunidenses em território brasileiro nessa semana (entre 28 de
novembro e prevista para se estender até 18 de dezembro em 2021) é resultado de
longo esforço da classe dominante em afirmar, com governos da esquerda liberal
ou da direita liberal, os interesses estratégicos da potência imperialista no
Brasil. Tal constatação evidencia o quanto o “pragmatismo” vulgar colocado em
prática pela esquerda liberal, produto da ignorância histórica e do desprezo
pela tradição teórico-política da esquerda latino-americana anti-imperialista,
tem sido nocivo para a soberania defendida apenas de maneira retórica.
Considerando a “sabedoria
política” da esquerda liberal encabeçada pelo PT, especializada em legalizar
todo tipo de assalto ao Estado e agressões à soberania com medidas
pretensamente destinadas a regulamentar a ambição burguesa e imperialista –
como se fosse possível ordenar a vida com leis e decretos – é legitimo supor
que o mencionado acordo de “proteção de informações militares sigilosas” tenha
sido proposto para regular a espionagem que os órgãos da potência imperialista
realizaram e foram devidamente denunciados por Snowden à época. Uma vez mais, a
subserviência e a impotência política da esquerda liberal aparecem na forma de
um legalismo infantil que os organismos da potência imperialista sabem driblar
há séculos, tornando inútil a letra da lei.
A situação era, de fato, muito
grave, pois naquele período, já existiam provas suficientes para não levar
adiante semelhante acordo; pouco tempo antes – em junho de 2013 - Edward Snowden,
um ex-funcionário da CIA revelou a espionagem em nada menos que a correspondência
eletrônica de Dilma por parte da NSA, a Agência de Segurança Nacional dos EUA.
Entretanto, a gravíssima violação da correspondência presidencial foi
considerada pelo petismo apenas um “episódio” e, em consequência, olimpicamente
esquecido pelo governo brasileiro de tal forma que nada impediu seguir adiante
nos planos de “cooperação militar” com os Estados Unidos. Assim, a obra iniciada
por Lula e concluída com Dilma estava, finalmente, completa.
Em perspectiva histórica, é trágico e espantoso perceber como a esquerda liberal no governo – com Lula e Dilma – banalizou até o fundo e o fim as relações com o imperialismo estadunidense não somente ignorando a violação da correspondência presidencial como também a influência cada dia maior do Comando Sul dos Estados Unidos na formação e iniciativas políticas dos militares brasileiros. De fato, a “influência” da potencia imperialista nas forças armadas brasileiras era antiga e é justo afirmar que os sucessivos governos petistas não fizeram mais do que fortalecê-la e torná-la oficial, auferindo perverso verniz republicano às suas decisões. A consciência anti-imperialista que marcou a longa e tortuosa trajetória da esquerda brasileira estava, finalmente, rarefeita ou mesmo, dissipada. Em seu lugar, uma sorte de pragmatismo vulgar orientou – e ainda orienta – o “realismo petista” como se fosse possível, de fato, construir soberania sem luta contra a potência imperialista. No lugar da análise fria, calculista e apegada à memória histórica, o recurso do petismo foi, tal como manda a tradição do país, uma tirada literária de um compositor popular a serviço da consciência ingênua: agora, nos governos petistas, anunciou Chico Buarque, o “Brasil não fala fino com os Estados Unidos e tampouco grosso com o Paraguai”. Na operação, o tabuleiro da geopolítica onde conflitos de classe emergem e orientam seu itinerário, deixava trânsito livre para a tirada literária do boteco zona sul carioca.
Os dados anteriores são
indispensáveis se quisermos entender a razão pela qual nesse mês, protegido por
imenso silêncio da imprensa burguesa e sem qualquer registro pelos instrumentos
digitais da esquerda liberal, 240 soldados estadunidenses realizam desde o dia
28 de novembro treinamento militar em terras brasileiras a convite do
protofascista Bolsonaro. É verdade que o atual presidente da república jamais
escondeu sua filiação canina ao imperialismo estadunidense: bateu continência
para a bandeira tricolor, realizou inédita visita à sede da CIA em Langley, na
Virgínia, em março de 2019, e não poupa elogios ao país do norte dirigido por
republicanos ou democratas.
A operação conjunta de tropas
brasileiras e estadunidenses foi autorizada pelo Decreto 10.834 publicado no dia
13 de outubro e assinado pelo protofascista juntamente com o general Braga
Neto. Até onde alcança nossa informação, é um exercício militar inédito.
Segundo o Correio Brasiliense, as “duas equipes” participam “da edição 2021 do
chamado Combined Operations and Rotation Exercises (Core), um
tipo de treinamento militar concebido durante conferência bilateral de
Estado-Maior Brasil-EUA realizada em outubro de 2020, "com o objetivo de
incrementar a interoperabilidade entre os dois exércitos".” A secretaria
da presidência da república informou a novidade eliminando qualquer improviso
em assunto tão sério e estratégico: o “exercício” se realizará todos os anos
até... 2028!
É muito provável a ausência de
curiosidade jornalística da chamada mídia independente necessária para
investigar a fundo algo relevante sobre a inédita presença de tropas americanas
no Brasil. Da mesma forma, os parlamentares da esquerda liberal tampouco
buscarão por meios legais e legislativos ações para esclarecer a razão e o
sentido – além de antecedentes e repercussão – de tão grave presença militar
estadunidense em nosso país. Nas atuais circunstâncias, a única esperança é,
talvez, a possibilidade de um pesquisador no futuro, orientado por sentimento e
convicção nacionalista e revolucionária, encontrar no baú esquecido da História,
as razões que levam um país de enorme potencial à miserável posição de
dependência e subdesenvolvimento em que nos encontramos.
Finalmente, bastam duas moléculas
de lucidez e outra de honestidade intelectual para perceber o quanto ações
simples e silenciosas como essas são as responsáveis por levar as forças
armadas no Brasil à radical submissão política e ideológica, à doutrina
“América para os americanos” anunciada por James Monroe em 1823. O Brasil vive
um clima de pré-campanha eleitoral e tudo indica que o essencial – como a
presença das tropas estadunidenses no Brasil – permanecerá longe da atenção do
público e simplesmente será ignorado como se jamais tivesse existido. Mais cedo
do que tarde, não será surpresa alguma se a esquerda liberal comandada pela
consciência ingênua – agora livre da antiga tradição anti-imperialista
atualmente exorcizada por seus novos profetas e “dirigentes” – manifestará cinicamente
sua surpresa e até oposição diante da ação entreguista de um presidente
protofascista, adepto confesso do alinhamento automático do Brasil à política
de segurança e do expansionismo permanente dos Estados Unidos, como se não
fosse ela também responsável pelas tropas estadunidenses em território
brasileiro. Da mesma forma, antes que ironia da História, o “episódio” revela
que ninguém ficará impune de severo juízo histórico necessário para superar os limites
objetivos do liberalismo de esquerda a que estamos aparentemente condenados.
Revisão de Junia Zaidan