A repetição é tão certa quanto os dias santos no nosso calendário: enquanto o desfile militar ocorre em Brasília após autorização presidencial, alguém nas filas da esquerda liberal aproveita a data nacional para espinafrar o patriotismo ou qualquer forma mais fecunda de nacionalismo como se estivéssemos diante de uma lepra ou contágio capaz de nos levar de maneira definitiva ao abismo e ao caos.
O bordão predileto da esquerda liberal semi-analfabeta em economia política é a conhecida sacada de Samuel Johnson contra os oportunistas ingleses do século XVIII (1774): "o patriotismo é o último refúgio dos canalhas". O leitor desavisado divulga a crítica fora de tempo e lugar convicto de que toda manifestação de patriotismo e nacionalismo seria expressão de irracionalismo da direita. O mundo é das nações, é também um mundo capitalista ordenado pela lei do valor e falseado pelo estado nacional, recurso especialmente importante para os países imperialistas. Ou seja, tudo que os preços de produção não resolvem na concorrência capitalista é solucionado por uma boa dose de nacionalismo econômico na forma de protecionismo que somente os estados imperialistas podem praticar enquanto condenam a prática a todos os seus adversários.
A afirmação inocente e irresponsável condenando o "patriotismo" termina por levar águas para o moinho da direita na exata medida em que o nacionalismo - especialmente aquele que denomino revolucionário - antes de fortalecer a luta pelo socialismo termina por permanecer como monopólio da direita. A esquerda liberal é pródiga em se definir cosmopolita embora distante do espelho não passe de um subproduto ridículo do Partido Democrata dos Estados Unidos com visitas à Bernie Sanders e direito a fotos com Alexandria Ocasio-Cortez em recente giro de inspeção no Brasil.
Panfleto de Johnson de 1774 |
No 7 de setembro - tal como invariavelmente ocorre todos os anos! - recebi num grupo de aplicativo de celular texto de professor universitário onde o postulado de Samuel Johnson é repetido com enorme dose de ignorância sobre sua origem, reproduzindo asneiras como se fosse sabedoria ou mesmo erudição. A crítica de Johnson segundo a qual o patriotismo seria mesmo "o último refúgio dos canalhas" pretendia alertar os patriotas ingleses do século XVIII contra os inimigos da nação, os traidores dos trabalhadores em luta por seus direitos e especialmente contra os sacanas de todo tipo que circulavam em torno do monarca via parlamento. Aqui, como manda a ignorância histórica, é utilizado em seu sentido oposto, destinado a alimentar a dúvida sobre toda e qualquer manifestação nacionalista. Esse procedimento ilustra o quanto os acadêmicos praticam a papagaiada sem conhecimento histórico elementar.
Ademais, o breve texto do acadêmico divulgado em rede digital, "ilustrou" com os tradicionais vícios as quinquilharias retiradas de literatura rebaixada, cuja expressão máxima é o livro de Benedict Anderson, festejado aqui como se fosse o último grito de sabedoria sobre o destino das nações (Comunidades Imaginárias). No entanto, o escrito de Anderson não possui qualquer importância, especialmente para quem vive na periferia do sistema capitalista. Exceto, é claro, porque se trata de ideologia destinada a esterilizar aqui a luta pela soberania. Na mesma linha de argumentação, o clássico texto de Ernest Renan (O que é uma nação?), pronunciado numa conferência na Universidade de París-Sorbonne em 11 de março de 1882, aparece como se fosse suficiente para lançar todas as dúvidas sobre o caráter perpétuo das nações, considerada uma reminiscência da época burguesa em vias de desaparição, razão pela qual toda defesa da pátria seria um exercício não somente improdutivo mas sobretudo duvidoso e, no limite, perigoso. Em defesa de Renan é preciso informar que a despeito de sua precária definição ("uma nação é uma alma, um princípio espiritual... resultado das complicações profundas da história"), o texto indica os perigos daqueles que pretendem afirmar a existência da nação pela força da raça, do idioma, da religião. Entretanto ele evita em dois parágrafos a abordagem exaustiva da "comunidade de interesses" e, a despeito de sua honestidade, não podemos esquecer que o autor escreve desde um país imperialista, a mais burguesa das nações de sua época, a França. Enfim, tanto a defesa do patriotismo de Johnson como os alertas de Renan são apresentados como antídotos diante do nacionalismo quando, na verdade, foram escritos para outro fim. Aqui figuram como expressão da luta ideológica destinada a esterilizar a luta pela soberania.
A esse respeito, há muito as quinquilharias ideológicas que circulam nas universidades são adotadas acriticamente por partidos da esquerda liberal e especialmente pela militância identitária, como se fosse ciência certa e não apenas ideologia destinada a iludir trouxas boçais, dentro e fora da academia. Da mesma forma, as misérias dos partidos políticos da esquerda liberal são ignoradas - quando não justificadas! - pelos acadêmicos como fenômenos secundários ou expressão de determinações sobre as quais não temos qualquer governo e diante dos quais o trabalho político se resume a justificá-los.
A lenta, inexorável e definitiva adesão do PT à ordem burguesa sob comando de Lula não deixa dúvidas sobre a natureza do processo, embora os acadêmicos desprezem as lições diárias da crise da república burguesa sob condução da esquerda liberal. Os militantes de esquerda que teimosamente resistem no interior do PT têm vida testemunhal e restam apenas como vã tentativa de evitar a decadência política, programática, moral e ética do partido exibida com requinte tanto na oposição quanto no governo. Aqueles que possuem uma molécula de respeito pela história, podem observar que no lugar do antigo militante - mesmo aqueles cativos da consciência ingênua -, agora reina de maneira plena uma bola de parlamentares e burocratas sem qualquer compromisso com o povo alimentados por catolicismo rasteiro agitando a bandeira da filantropia para as maiorias enquanto seu governo engorda sem medida a conta bancária e o poder político de todas as frações do capital reunidos na coesão burguesa.
Em consequência, a "disputa" nos congressos internos, nas decisões de cúpula, há muito deixou de ser modulada pelo antigo e combativo núcleo de base e/ou a zonal para tornar-se o espaço por excelência do político profissional, representante das distintas frações do capital que você pode ver em seu estado em exemplares quimicamente puros. A metamorfose do PT à condição de partido da ordem permanece como critério social de tal forma que mesmo um partido relativamente jovem como o PSOL já reproduz todos os seus vícios sem nenhuma de suas virtudes originárias!
No processo de adequação à ordem burguesa, antigos desafetos se filiaram ao PT de Lula para seguir renovados em suas carreiras sob os escombros do sistema político. Adversários acirrados de outrora se elegeram pelo Partido e prosperam na vida pública como "dirigentes" ou ministros de Estado. Inimigos declarados que juraram ódio eterno aos "socialistas do PT" são agora portadores de nova cidadania outorgada pelo próprio Lula ao afirmar Alckmin como "companheiro".
A tragédia não pára por aqui. O vice presidente nacional do PT é um tal Washington Quaquá. notável contribuição fluminense à nova cultura nacional petista. O último candidato a prefeito de São Paulo foi Gilmar Tato, cuja reputação levou milhares de petistas ao voto no candidato do PSOL ainda no primeiro turno. O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues é um autodenominado indígena cuja PM mata tão impiedosamente quanto o bolsonarista Tarcisio em SP. O senador Rogério Carvalho de Sergipe aprovou em plena pandemia o PL 3.877/2020 de sua autoria que autoriza o Banco Central a remunerar depósitos voluntários, o maior assalto ao Estado à luz do dia de que temos notícia. Na Petrobrás, o senador petista pelo Rio Grande do Norte, Jean Paul Prates, comanda a entrega dos recursos valiosos do petróleo aos rentistas internacionais com sorriso de bom moço completamente amparado por Lula. A qualidade da metamorfose petista é muito evidente mas os acadêmicos e os cínicos preferem acusar o protofascista Bolsonaro como origem e destino de todos os nossos males.
"Éramos felizes e não sabíamos" |
No terceiro mandato, tudo ficou ainda pior. Na véspera do dia da pátria, para dar apenas um exemplo, Lula trocou Ana Moser por um deputado de nome Fufuca, um sujeito que votou pelo impeachment de Dilma e agora é o oitavo membro do bloco "golpista" no governo de reconstrução nacional... Na semana da Pátria, Lula defendeu - pasmem! - o voto secreto dos membros do STF como forma de proteger os ministros da Corte Suprema do protesto popular, uma posição inacreditável até mesmo para nós, acostumados com o avanço desinibido do presidente à direita! Incorrigível, a servidão voluntária praticada pelo petista/lulista ingênuo prefere registrar que o presidente tinha ao seu lado no desfile militar várias mulheres, um contraste "simbólico" com o desfile anterior presidido pelo protofascista, enquanto ao petista autêntico, quase uma peça de museu, resta-lhe o lamento solitário num canal de Youtube. Uma miséria!
Voltemos a Johnson e a questão nacional. O desfile militar e principalmente o estéril discurso do dia da pátria pronunciado por Lula em horário nobre na véspera do 7 de setembro só não envergonha porque desarma as maiorias e não toca nos nervos de nossa crítica situação. Entretanto, os acadêmicos mantêm fidelidade à Lula como se o país não tivesse outro horizonte senão aquele traçado pelo Partido Democrata, o Vaticano e a coesão burguesa fortalecida pela economia política do rentismo tocada por Lula e Haddad. Portanto, o recurso aos textos esquecidos não produzem sequer a desconfiança de que algo semelhante poderia estar acontecendo aqui, em baixo de seus narizes. Quando Johnson proclamou em alto e bom som que "o patriotismo era o último refúgio dos canalhas" pretendia nada menos do que a defesa de seu partido, o patriotismo. Não era a denúncia do patriotismo ou do nacionalismo, mas, ao contrário, sua defesa, destinada a preservar os patriotas na luta contra os desmandos do rei e a corja de parlamentares que sustentavam a monarquia!
Na cabeça dos acadêmicos, a despeito de tantas evidências, a pergunta não emerge: acaso seria o PT, "o último refúgio dos canalhas"?
Revisão: Junia Zaidan