Numa república em profunda crise não deixa de ser curioso ver e ouvir personagens e partidos que compõem a esquerda liberal reivindicando o bom funcionamento das instituições burguesas. Até agora, o clamor do espírito republicano confinado ao labirinto da República burguesa em crise, se resumia tão somente no bordão capaz de indicar algo errado e até mesmo lograr alguma simpatia diante da suposta anomalia: “é preciso acabar com a judicialização da política e também com a politização do judiciário!”. Na prática, com pálido verniz sociológico, políticos e dirigentes partidários reclamam da desordem atual exigindo a harmonia e independência entre os poderes como se fosse possível corrigir o mundo caótico em que estamos metidos com uma ou duas aulas do manual de Montesquieu. Entretanto, a crise possui raízes mais profundas e obviamente não pode ser corrigida com um breve curso republicano de boas maneiras, como pretendem os ideológicos liberais e também grande parte da imprensa burguesa.
O grito da esquerda liberal em defesa da harmonia e
independência dos poderes teve sua expressão mais eloquente no combate petista
contra a Operação Lava Jato conduzida pelo juiz Sérgio Moro – um office-boy dos
Estados Unidos – que, amparado na onda moralizante segundo a qual vivíamos uma profunda
crise de “valores”, atropelou todos e cada um dos ritos sagrados do direito
burguês em favor dos interesses imediatos da classe dominante; no entanto, esse
episódio da luta política no país tinha antecedentes igualmente importantes que
a consciência ingênua e o oportunismo político dos partidos da ordem esquecem com
imensa facilidade.
O roteiro dessa longa novela na qual a imprensa burguesa foi
decisiva não pode, de fato, permanecer no esquecimento, pois aqueceu o
noticiário e produziu malabarismos políticos nos partidos políticos e na
atividade parlamentar dignos de registro histórico.
A despeito da amnésia praticada pela esquerda liberal e sua
incurável memória curta, é de justiça observar que os malabarismos e
reviravoltas nos partidos e parlamentares foi acompanhado de igual
comportamento nos juízes e nas decisões de tribunais. Em setembro de 2015, por
exemplo, o ministro Gilmar Mendes, num seminário com Paulo Skaff (ex-presidente
da FIESP), anunciou, na forma de uma sentença, a natureza da crise do regime
político então em curso: “na verdade, o que se instalou no país nesses últimos
anos e está sendo revelado na Lava-Jato é um modelo de governança corrupta,
algo que merece um nome claro de cleptocracia. Veja o que fizeram com a
Petrobrás. Eles tinham se tornado donos da Petrobrás. Infelizmente para eles, e
felizmente para o Brasil, deu errado”.
Porém, já em dezembro de 2016 – com Dilma já fora
do governo – o ministro Mendes gira seus canhões na direção oposta: ataca
frontalmente as 10 medidas anticorrupção, elaboradas pela dupla Moro-Dallagnol,
e apresentadas pelo Ministério Público Federal ao parlamento. Naquela época, a
Associação dos Magistrados Brasileiros, baluarte da moral burguesa decadente,
denunciou o ministro Mendes acusando-o de fazer política e, em consequência,
indicou que o melhor caminho seria sua renúncia, sucedida da ocupação de um
posto de comentarista político em algum jornal! Antes disso, no dia 10 setembro
do mesmo ano, a imprensa anunciava um pedido de impedimento contra Gilmar
Mendes, no Senado da República, com a assinatura de eminentes advogados
alinhados com a esquerda liberal (Bandeira de Melo, Fábio Konder Comparato, etc.),
acusando-o de “gratidão ao PSDB” e manifesta “ojeriza ao PT” que, tal como
recomenda as leis objetivas da luta política, foi devidamente arquivado uma
semana depois pelo presidente do Senado – ex-aliado, ex-inimigo e na atualidade
aliado do PT, o senador Renan Calheiros.
Entretanto, não tardou muito (outubro de 2019) para que o mesmo Gilmar Mendes – considerado um inimigo mortal do petismo e da esquerda liberal – se transformasse, gradualmente, num “defensor da democracia e do Estado de direito” quando acusou Moro de atropelar as sacrossantas escrituras do rito jurídico burguês: “hoje se sabe, de maneira muito clara, e o Intercept está aí para confirmar e nunca foi desmentido, que usava-se a prisão provisória como elemento de tortura. E quem defende tortura não pode ter assento na Corte Constitucional. O Brasil viveu uma era de trevas no que diz respeito ao processo penal”. Num passe de mágica, Gilmar Mendes se transformou numa espécie de herói jurídico em defesa do bom funcionamento da República diante dos excessos cometidos por juízes, tribunais, políticos, etc.
A destituição sob comando do STF |
Há, sem dúvida alguma, estreita relação entre
a adesão da esquerda brasileira à ordem burguesa e o protagonismo dos tribunais.
A precoce conversão da esquerda brasileira ao liberalismo – o nascimento da
esquerda liberal – confinou o protesto político das classes populares às
disputas eleitorais cada dia menos politizadas. Era comum na esquerda que
sobreviveu a ditadura a crença segundo a qual os processos eleitorais
representavam oportunidade para “politizar e organizar” o povo, especialmente
os trabalhadores. No entanto, basta observar o quanto esse postulado válido em
outras épocas foi gradual e inexoravelmente se transformando num movimento de
alienação e conformismo de amplos setores populares na exata medida em que a
busca desesperada pelo voto (orientado pelo cretinismo parlamentar) implicou no
rebaixamento cada dia mais evidente do horizonte socialista até seu virtual
desaparecimento. No lugar do combate nos marcos da ordem burguesa – mas contra
a ordem burguesa! – emergiu a enfadonha competição entre todos os partidos para
saber quem poderá melhor administrar a crise da República burguesa. Não foi por
acaso que o PT anunciou, ainda na época do sistema petucano, que o petismo administrava
melhor o Estado e a economia do que os tucanos, além, é claro, de apresentar
uma resposta, tímida e paliativa, aos dramas sociais das maiorias num país
regido pela superexploração da força de trabalho. Tampouco foi obra do azar a
rápida transição da oposição e crítica ao Plano Real que “estabilizou a
inflação” para o reconhecimento petista de que os tucanos deveriam ceder passo
para os responsáveis pelo “crescimento com distribuição de renda”, nos termos
da economia política burguesa inerente a um país dependente e subdesenvolvido.
No silêncio do “êxito” petista, especialmente
concentrado no segundo mandato de Lula, o processo de alienação das
organizações populares se consolidava e o movimento de massas cedia espaço para
as ilusões inerentes ao cretinismo parlamentar. Lula representou a exibição
mais eloquente do presidencialismo sem dentes para morder ao aderir, de maneira
desinibida, ao “presidencialismo de coalisão” inaugurado por um obscuro
sociólogo de simpatia tucana. Nos dois mandatos de FHC, quando o PT estava
ainda orientado por forte carga moralista e capitalizando o descontentamento
inerente as reformas “neoliberais” implementadas pelos tucanos, as negociatas
entre partidos políticos, a compra da emenda da reeleição, o toma-lá-dá-cá
entre o parlamento e o governo, era considerado um agir exclusivo dos “partidos
burgueses”. A vida demonstrou, mais cedo do que tarde, que a degradação
permanente do regime constitucional e a consequente corrupção da atividade
parlamentar não incluía apenas os “neoliberais”, mas, inexoravelmente,
alcançaria também os puros, inocentes e bem intencionados petistas, cujo
exemplo mais ilustrativo pode ser visto na trajetória e biografia de Antonio
Palocci, ex-ministro de economia de Lula e chefe da casa civil de Dilma.
No governo, a característica essencial da
esquerda liberal encabeçada pelo petismo (Lula e Dilma) consistia precisamente
em manter o povo longe das decisões estratégicas da economia e do Estado. O
partido nascido do protesto operário contra a ditadura, com a notável
contribuição da esquerda que combateu o regime militar de armas na mão,
abandonou a mobilização e politização das “bases” para se transformar numa
eficaz máquina eleitoral. Não devemos eludir o fundamental: o dilema de um
partido socialista num país periférico e dependente na América Latina – com
mais razão no Brasil – não consiste em estar “em contato com as bases e não as
abandonar jamais”, como ainda pretende de maneira cínica a esquerda católica
que apoiou Lula e o PT em tudo! Há algo mais valioso que o basismo alienante
não pode ocultar: somente o horizonte socialista e o combate feroz contra a
dominação burguesa poderiam abrir as portas para a redenção das massas sob o
capitalismo dependente e rentístico, e conceder, em duros combates, alguma dose
de “cidadania” à massa de oprimidos e explorados. O bordão que anuncia a “volta
às bases” oculta algo essencial: o que dizer para mobilizá-las?
Na ausência de um partido socialista ativo na
defesa da Revolução Brasileira e do movimento de massas, os tribunais ficaram
muito mais livres para decidir sobre a vida e a morte de milhões de brasileiros
da mesma forma que podiam arbitrar os conflitos de natureza política com mais
desenvoltura e autoridade. Ademais, não foram poucas as vezes que a esquerda
liberal em seu combate “contra o neoliberalismo” de FHC credenciou os tribunais
em nome da “defesa dos interesses dos trabalhadores”, recorrendo sem inibição
aos togados. O recurso ordinário aos tribunais em qualquer instância e por
qualquer causa se tornou a via privilegiada de “luta” da esquerda
liberal contra os “excessos” da burguesia na sua guerra de classes contra os
trabalhadores. De resto, a esquerda, outrora crítica da Constituição, logo
assumiu – pasmem! – a posição de ardorosa defensora da Carta Constitucional
diante da ofensiva burguesa que iniciou precisamente no mesmo dia em que,
finalmente, a carta magna foi aprovada pelo parlamento, em 5 de outubro de 1988.
Ora, a defesa das “conquistas sociais da constituição
de 88” não poderiam ser asseguradas pelos juízes da Suprema Corte mesmo quando
a maioria deles fosse indicada pelo PT. A profunda transformação do capitalismo
dependente em sua fase rentística produziu a metamorfose classista da
representação parlamentar, cada dia mais evidente, na medida que os
parlamentares são organicamente vinculados as distintas frações do capital e
sua autorreprodução eleitoral depende da decisão de banqueiros, latifundiários,
grandes comerciantes e industriais decadentes. Em consequência, o adjetivo
“centrão”, utilizado pela mídia burguesa e adotado sem reservas pela esquerda
liberal – PT, PCB, PC do B e PSOL – é tentativa ilusória e perigosa para
ocultar a afinidade entre os parlamentares e o grande capital como se, de fato,
o Congresso Nacional não fosse um covil de ladrões, mas apenas uma cesta de
maçãs comprometidas com algumas frutas podres. A progressão capitalista da
representação parlamentar também alcançou os tribunais, como não poderia deixar
de ocorrer. Nas últimas décadas, especialmente após a afirmação plena do
capitalismo rentístico, os tribunais avançaram na mesma linha do parlamento e
cada decisão da Corte não somente era incapaz de assegurar o recurso ingênuo
aos tribunais em defesa dos direitos trabalhistas por parte da esquerda liberal
mas, ao contrário, afirmava a legalidade da superexploração da força de
trabalho e o assalto a riqueza pública com voracidade semelhante àquela dos
parlamentares.
Os burgueses e seu parlamento |
Nesse contexto, os sucessivos recursos da esquerda liberal aos tribunais, na vã esperança de bloquear o “avanço do neoliberalismo” no terreno das causas defendidas pelo grande capital, simplesmente não prosperaram; basta lembrar as autorizações para as privatizações (da Casa da Moeda às empresas da Petrobrás) e a absoluta indiferença diante de mais de 30 ações diretas de inconstitucionalidade (Adin) sobre as reformas trabalhistas, que são, todas elas, olimpicamente ignoradas pelos excelentíssimos ministros do STF. A concepção liberal de economia e a servidão dos juízes do STF às classes dominantes é a norma desde sempre naquele tribunal e pouco importa se seus membros foram indicados por Lula, Dilma ou Bolsonaro, pois todos são “terrivelmente pró capitalistas”. É possível observar de maneira clara que historicamente, de fato, não há crime contra a República que não teve a validação daquele tribunal. Portanto, é necessário esclarecer as razões pelas quais a esquerda liberal segue alimentando ilusões no sistema de justiça burguês. Portanto, basta realizar o inventário das sucessivas derrotas dos trabalhadores para sentenciar que a “luta nos tribunais” não conseguiu impedir a superexploração da força de trabalho, sustento dos lucros extraordinários aos capitalistas da coesão burguesa, que decide a sorte de todos os governos desde 1994.
Ao contrário das ilusões produzidas diariamente
pela esquerda liberal, derivadas da crença na justiça nos marcos da ordem
burguesa, todos os meses os tribunais – especialmente o STF – revela seu
caráter de classe e invariavelmente decidem matéria banhada em cifras que, na
prática, implica no assalto ao Estado e a transferência de bilhões de reais para
o caixa dos capitalistas. Todos os meses, ano após ano, o STF decide em favor
dos capitalistas em matéria tributária, financeira, cambial e trabalhista!
Bilhões e bilhões de reais são destinados, por vias distintas, aos capitalistas,
revelando, até mesmo para os neófitos, o caráter de classe das decisões de um
tribunal composto majoritariamente por ministros indicados pelo PT. A
propósito, pouco importa a origem de classe e menos ainda a nomeação
presidencial, pois os ministros votam invariavelmente nas questões essenciais
com maioria folgada. Ora, basta recordar a chamada “tese do século” na qual o
STF decidiu em favor dos capitalistas dívidas tributárias que se
transformaram em créditos tributários numa decisão que não recebeu
desaprovação da esquerda liberal; ao contrário, a reação da esquerda liberal
foi de completo silêncio sobre cifras que não poderiam ser ignoradas e que
relevam a essência capitalista daquele tribunal. Não conheço sequer uma
postagem num aplicativo digital de deputado ou líder de partido da esquerda
liberal (instagram, face, twitter, “lives”, etc.) protestando contra esse
mecanismo de assalto ao Estado pela via do STF.
O Instituto Brasileiro de Planejamento e
Tributação (IBPT) calculou que a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e
da Cofins poderia chegar a R$ 587 bilhões de reais. No entanto, a chamada
“modulação dos efeitos” da decisão do STF, reivindicada por Paulo Guedes, que
“mitigaria” o rombo fiscal do mega assalto ao Estado, ainda deixaria nos cofres
dos capitalistas pelo menos R$ 358 bilhões! Não por acaso, a imprensa burguesa
tratou a operação como sendo a “tese do século”, com efeitos tanto retroativos
quanto no futuro: a bagatela rendeu às distintas frações do capital nada menos
que R$ 93,4 bilhões (26,08% do montante), já compensados entre 2017 e 2020,
enquanto outros R$ 56 bilhões deveriam ter sido pagos em 2021; o “restante” –
míseros R$ 69,6 bilhões – devem ser quitados durante 2022. Nos anos de 2023 e
2024 a compensação de créditos deverá ser de R$ 47,8 bilhões e de R$ 44,1
bilhões, respectivamente. De 2025 em diante, estima-se que a compensação de
créditos será de R$ 47,09 bilhões.
O assalto ao Estado não se realiza, portanto,
prioritariamente pelo roubo no orçamento da merenda escolar, num esquecido município,
exibido com regularidade e em horário nobre na TV, destinado a arrancar gritos
de indignação no eleitor mais indiferente. Da mesma forma e com o mesmo
objetivo, o roubo bilionário orientado pelo interesse de classe não
produz tanta indignação e atenção mediática quanto alguns milhões encontrados
em malas num apartamento de ex-ministro dos governos da esquerda liberal ou um
punhado de dólares na cueca de um insignificante deputado. A exibição exaustiva
da pequena corrupção e a meticulosa investigação de um repórter preocupado com o
desvio da merenda escolar oculta, precisamente, o mega assalto ao Estado autorizado
pelos eminentes e respeitados juízes da Corte Suprema, justificado nas frestas
da lei e da jurisprudência, destinado a proteger a propriedade capitalista.
Portanto, a manufaturação da opinião pública em favor da moral burguesa não
é operação trivial e menos ainda produto do improviso. Obedece, pois, a lógica
implacável destinada a iluminar o roubo no varejo enquanto oculta o roubo no
atacado: o gigantesco assalto ao Estado em favor da coesão burguesa.
os trabalhadores no egrégio tribunal |
Não há que perder de vista a trama em curso, pois
tanto a reprovação quanto o elogio à Corte Suprema ocorrem no interior da crise
da República burguesa, orientada pelos interesses imediatos e históricos da
coesão burguesa sob a batuta de Paulo Guedes e do presidente protofascista. As
decisões tem sido “progressistas” no terreno dos costumes e burguesas no
terreno econômico-político. As causas identitárias são recebidas com
benevolência e manifesta simpatia – sempre turbinadas pelos monopólios
midiáticos – enquanto àquelas destinadas a organização do poder político e
econômico são objeto de zelosas decisões em favor da burguesia. Nada de novo
sob o sol, pois o divórcio, com enorme oposição da igreja católica foi, no
Brasil, aprovado em plena ditadura, revelando que, mesmo uma ditadura de classe,
pode tolerar e até mesmo estimular certa liberalização no terreno da moral
burguesa.
O ziguezague da esquerda liberal no labirinto da
crise da República burguesa não constitui o roteiro completo da trama em curso.
No lado oposto, a direita não vacila em acusar a Corte Suprema como um
obstáculo objetivo ao programa ultraliberal, como único meio capaz de retirar o
Brasil desse interminável vale de lágrimas. A orientação da direita encontra
amparo nos trabalhadores que, de resto, possuem sobradas razões para não
confiar na justiça burguesa, especialmente diante das decisões de todas as
instâncias jurídicas realizadas após a renovação moral e doutrinária dos juízes
baseadas, ambas, em manuais liberais do século passado. Portanto, as massas não
somente desconfiam da justiça como, em muitos casos, temem a justiça.
Milhões de brasileiros sabem, por experiência própria, que os tribunais
assumiram um indisfarçável caráter de classe, tanto nas decisões amparadas no
direito penal, quanto no civil. Embora milhões de trabalhadores ignorem as
decisões suculentas no terreno tributário, as massas sabem que pagam a conta e,
portanto, que pagam muito imposto. A burguesia insiste todos os dias que a
“carga tributária” é elevada e, portanto, os preços poderiam ser menores e
todos seríamos mais felizes caso o Estado tirasse esse e outros pesos de nossas
costas. É por esse meio que a burguesia vocaliza o “interesse geral” das
classes e captura para o programa ultraliberal a simpatia eleitoral e popular.
Nesse contexto, a ultradireita estava mais preparada para enfrentar os tempos
de crise do que a inocente esquerda liberal, razão pela qual tomou a iniciativa
política desde que a crise mundial indicou a turbulência em 2008/2009.
O protofascista Jair Bolsonaro atua nesse terreno
munido com a precisão de uma bússola. Em consequência, não perde oportunidade
para espetar as decisões da corte ou acusá-la abertamente de jogar contra os
interesses populares e seu governo. A oscilação que pratica – ora atacando um
ministro, ora pactuando com o tribunal – não perde o rumo: desacreditar por
completo o sistema de justiça diante do povo e indicar, ainda que de maneira
acidentada, que somente uma “ditadura” ou um regime especial, poderia impor a
ordem nesse caos. A direita, de maneira clara, afirma não confiar na justiça e
na lucidez de seus ministros, enquanto a esquerda liberal segue na defesa
abstrata da democracia, silenciando diante de atrocidades decididas pelas
cortes ou afirmando que os tribunais atuaram com justiça diante de uma causa
qualquer de sua preferência ou da reprodução parlamentar. Na crise, não há
possibilidade de vitória por parte da esquerda liberal e em qualquer caso, a
concepção segundo a qual “algo deve ser feito” para parar os tribunais segue
ganhando simpatia popular sob condução da direita fascista e seu presidente. A
campanha eleitoral ainda não começou, mas não duvido em afirmar que será
incapaz de reverter anos de propaganda e doutrinação em favor da reforma moral
destinada a superar a “crise de valores” em que a República apodrece sob
condução burguesa, como se os sucessivos escândalos de corrupção – tanto no
atacado quanto no varejo – fossem frutos de desvios morais e jamais uma
consequência necessária da relação ultraparasitária entre os capitalistas e o Estado,
que marca historicamente o desenvolvimento capitalista, tanto no centro quanto
na periferia.
A prisão de um parlamentar desprezível – o
deputado Daniel Silveira, PSL/RJ – é comemorada pela esquerda liberal como se
fosse uma vitória da pressão popular nas redes digitais dos parlamentares e
“dirigentes” partidários, da mesma forma que lamentam e denunciam a omissão da
justiça em esclarecer, após tantos anos, o assassinato da vereadora Marielle Franco
(PSOL/RJ). Nessa oscilação, a esquerda liberal também adiciona algumas
moléculas de desconfiança no sistema de justiça que, nas condições atuais,
favorecem a ofensiva da direita rumo a alguma modalidade de Estado policial, ou
mesmo reforma do sistema judicial no sentido de aprofundar os mecanismos legais
para uma política ainda mais repressiva.
Nada pode ser mais ilustrativo da situação atual
do que as recentes decisões de Alexandre Moraes, pois na mesma investigação
dirigida a incriminar o protofascista Bolsonaro por “fake news”, sob seu
comando e aplausos entusiastas da oposição, o eminente juiz determina que as
redes digitais do PCO, um partido completamente comprometido com a eleição de
Lula na disputa presidencial desse ano, sejam canceladas. No dia em que escrevo
esse artigo, a Polícia Federal prendeu o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro,
acusado de crimes tão sérios quanto recorrentes na vida política nacional; de imediato,
observo a festa nas redes digitais (propaganda eleitoral) da esquerda liberal
indicando que Bolsonaro – apesar de retirá-lo do cargo diante do escândalo de
corrupção – seguiu emprestando sua fé na suposta correção moral do pastor
evangélico enquanto ministro. No embalo da atuação política da PF e do STF, a
esquerda liberal não conseguirá jamais a “despolitização do judiciário” e o quid
pro quo seguirá servindo de munição para a agitação do protofascista contra
os tribunais e a democracia restringida a que estamos historicamente submetidos
em favor de uma modalidade qualquer de Estado policial.
No lado oposto, a esquerda liberal segue aferrada
ao bordão da “defesa da democracia” em abstrato sem ganhar a confiança e a
mobilização das maiorias e, especialmente, os trabalhadores, para as tarefas
históricas da Revolução Brasileira. Enquanto coleciona pequenas “vitórias”
garantida pela ação política do judiciário, a esquerda liberal esquece que, no
essencial, a crítica do sistema político segue sob condução da direita e
da coesão burguesa que o apoia tanto no covil de ladrões, situado no Congresso
Nacional, quanto na cumplicidade das distintas frações do capital com a
política econômica conduzida pelo ultraliberal Paulo Guedes: garantia de super
lucros à classe dominante na mesma medida em que estende a superexploração da
força de trabalho, com ou sem carteira assinada, a milhões de trabalhadores.
Ora, diante de um sistema político em plena
decomposição, portanto em instabilidade permanente, em meio à turbulência mundial
do sistema capitalista, que não oferece qualquer indicação de que os Estados
Unidos – a cabeça do imperialismo – possa iniciar a recuperação da intensa
crise cíclica inaugurada após junho de 2019, a esquerda liberal navega sem bússola
no interior da República burguesa comandada pelo protofascista Bolsonaro. O
desarme da esquerda liberal, sob comando do PT, e seu fracasso histórico após
14 anos no governo, não poderá ser superado pela reafirmação na chapa petucana
Lula/Alckmin. A contrário, o impasse das eleições de 2018 que explicitou a
ofensiva burguesa e sua guerra de classes contra os trabalhadores segue atual e
ganhou vitalidade a despeito dos percentuais eleitorais indicados pelas
pesquisas de opinião que embalam o otimismo eleitoral dominante nas filas da
esquerda liberal.