segunda-feira, 31 de julho de 2017

Sobre revoluções e governos

Em política não há lugar cômodo. Nem em Paris, antecipo aos eurocêntricos e também àqueles que analisam processos sociais sentados confortavelmente numa mesa de café. A propósito da disputa venezuelana, a grande maioria dos analistas revela conhecimento superficial da situação histórica e dos dilemas atuais da Revolução Democrática Bolivariana. A recente moção de meu partido - o PSOL - sobre a eleição da nova constituinte no país vizinho é, além de lacônica, improdutiva. Na prática serve apenas para prestar contas ao liberalismo de esquerda e direita que domina a sociedade brasileira. Creio que como partido político destinado a renovar radicalmente a política tal como a sofremos (ou seremos devorados por ela) o PSOL deveria estimular o debate interno forte sobre política internacional. As idéias dominantes são as ideias da classe dominante e, em consequência, devemos, antes de flertar com elas, submete-las ao crivo da crítica.

Creio que um bom começo para entender o que acontece na Venezuela é o reconhecimento da crescente separação entre a força original da Revolução Democrática Bolivariana e o governo bolivariano. O conflito na Venezuela, quase sempre apresentado aqui como forma não civilizada do fazer político é, na verdade, resultado de longo processo histórico, amadurecido pela aparição de Hugo Chávez e o MBR-200 há quase duas décadas. Desde uma perspectiva exclusivamente brasileira, estamos longe - muito longe! - do grau de consciência adquirida pela sociedade civil venezuelana, resultado necessário da transição entre a consciência ingenua do eleitor e a consciência crítica militante acelerada pela vitalidade da RDB. Aqueles que ignoram este dado elementar, deveriam abrir os jornais de hoje e constatar que o governo liberal e corrupto de Temer conta com apatia das ruas para seguir eliminando direitos fundamentais em nosso país. Na Venezuela, ao contrário, a chapa arde. Cada metro quadrado é disputado com suor e sangue. Aqui, ao contrário, esperamos 2018 e lamentamos a distancia entre nossas necessidades e o sofrimento do povo com as eleições tão distantes. Eis o terreno fértil para a crítica liberal à realidade venezuelana.

Nunca será ocioso recordar a legalidade constitucional da convocatória do presidente Maduro (Capítulo III, art. 348). No entanto, desde uma perspectiva bolivariana, é mais do que evidente a falta que fez o plebiscito prévio, evitado por razoes óbvias: o governo, muito provavelmente, não conseguiria autorização para a nova constituinte. As críticas a decisão governamental não nascem apenas da oposição; na verdade, os primeiros em manifestar contrariedade foram setores importantes do bolivarianismo. Tampouco devemos ignorar que o parlamento dominado pela direita, mais do que de uma simples e cândida oposição, declarou-se em "rebeldia" contra o sistema político. Algo muito semelhante ao congresso nacional brasileiro - aquele covil de ladrões - desconhecer as determinações do STF ou do governo. Em semelhante circunstâncias, qual democrata ou liberal - de direita ou esquerda - concordaria com tal procedimento?

A causa fundamental do descontentamento popular com o governo de Maduro é, pelo menos, dupla. 

Em primeiro lugar o uso do excedente econômico permitido pela renda petroleira. As divisas hoje sob controle do Banco Central - ao contrário do Brasil, o BCV é também responsável pela política de desenvolvimento e não está limitado ao controle da inflação - são capturadas por frações do capital comercial e pelo sistema bancário. Todos aqueles liberais que criticam o desastre econômico do governo bolivariano deveriam atentar para a causa primária da inflação: a conta de capitais aberta e o controle de cambio. Ainda em 2010, quando permaneci 3 meses no departamento de pesquisa do BCV, escrevi um informe onde registrei que até mesmo os manuais do FMI indicavam o desastre produzido por esta combinação explosiva. No Brasil, a canalha liberal que domina o Ministério da Fazenda e o Banco Central - com apoio batalhão de jornalistas treinados na arte da servidão voluntária ou à espera de um convite para participar da farra das altas finanças - indica o controle de cambio como fonte de todos os males e, cinicamente, nada diz sobre a conta de capitais aberta, considerada um dogma pelos economistas neoclássicos e keynesianos convertidos ao credo liberal. O resultado é evidente: há vários anos a fuga de capitais enriquece um setor minoritário da classe dominante, alimenta a inflação que castiga o povo e permite todo tipo de falcatruas de empresários oposicionistas e governistas. A CEPAL informa que até 2014 a Venezuela figura como exportadora líquida de capitais enquanto o capital comercial dedicado ao tráfico de mercadorias especula diuturnamente com a fome do povo. Forças dentro e fora do governo pactam longe dos holofotes este pernicioso e decisivo mecanismo de apropriação da renda petroleira. Com astucia, a imprensa prefere destacar o "conflito irracional" das ruas...

Há tempos publiquei meu informe na Revista da Rebela. Há anos indico este tema no Programa Faixa Livre na Rádio Bandeirantes do Rio Janeiro. O silêncio completo sobre esta questão é fácil de entender, pois minha crítica ao governo Maduro é igualmente severa com a gestão considerada racional entre nós. Melhor silenciar sobre os críticos... Abaixo o texto completo para quem quiser entender um pouco melhor a fonte do "desastre" econômico na Venezuela.

(http://iela.ufsc.br/rebela/revista/volume-5-numero-1-2015/rebela/revista/artigo/politica-de-desarrollo-y-transicion-al)


Contudo, algo deve ser dito sobre o grave tema da corrupção. Não é trivial sustentar governo e não lutar contra a corrupção, fenômeno inerente ao estado burguês. Não basta a recorrente operação orwelliana realizada aqui por Dilma Roussef quando mencionava, com inocultável constrangimento, os "maus feitos" de seus partidários, sem contudo avançar no combate sem tréguas a roubalheira. Aqueles que entre nós apontam o dedo para os bolivarianos deveriam observar a dificuldade que possuem em responsabilizar diretamente Lula e Dilma pela "crise moral" do petismo e do sistema petucano. Não resta dúvida que se trata da mesma dificuldade... No Brasil, o caminho para eludir o tema da corrupção tem sido o de acusar o caráter persecutório do juizeco Sergio Moro contra Lula, de resto, mais do que evidente. No entanto, não ouço vozes dizendo que tanto Lula quanto Dilma foram cúmplices da corrupção porque julgavam que simplesmente não era possível combate-la. Decidiram conviver com a corrupção e não desmontaram o conveniente sistema político, limitando-se a clamar, retoricamente, por uma reforma política que jamais desejaram. E precisamente o sistema político que a consciência liberal de esquerda chama democracia, é corrupto, essencialmente corrupto. Na Venezuela o problema é grave e, nos marcos do sistema político atual e da aliança de classes que lá permanece, não alimento otimismo.

Portanto, quando falamos dos dramas do processo venezuelano não é possível esquecer que estamos diante de um espelho. Neste momento não temos o direito de aliviar a critica lá pra justificar condescendência com nossas invetáveis falhas e erros futuros. No entanto, creio que é decisivo que os partidos e organizações, lideres políticos e militantes de base, abandonem a formação obtida em conventos e mosteiros e tratem os temas da política e do Estado com o rigor necessário. Tal conduta somente será possível desde uma perspectiva socialista, revolucionária que, a despeito do moralismo - a impotência em ação, diria Marx - parece pouco realista para muita gente boa que sustenta a atual hegemonia no interior da esquerda brasileira.  

Neste contexto, a atuação de Washington e da classe dominante venezuelana é clara: derrubar Maduro fustigando o governo nas ruas, conspirando nas casernas, e de olho no calendário eleitoral. Leopoldo Lopes e Henrique Capriles atuam conjuntamente com táticas distintas, pois enquanto o primeiro rompe sistematicamente a legalidade o segundo pavimenta o terreno para as próximas eleições presidenciais. Hoje o Conselho Nacional Eleitoral anuncia que mais de 8 milhões de pessoas votaram. É cifra significativa. Não esqueça que o comportamento típico do bolivarianismo que discorda da iniciativa presidencial é o abstencionismo e facilmente compreenderá que parte importante dos bolivarianos não votaram porque discordam da qualidade do processo e, se por um lado não validam o governo, tampouco somam com a oposição de direita. A despeito do recurso constitucional, é impressionante o apoio eleitoral obtido por um governo que sempre atuou nos estreitos marcos da lógica das situações extremas. A oposição "conseguiu" - num processo informal repleto de falsificações - 7 milhões de votos há menos de um mês. No marco legal, Maduro superou a cifra de 8 milhões. O governo bolivariano ganhou fôlego, sem dúvida. Poderá agora, desarmar a trama que o levou a tão difícil situação? 

Durante todos estes anos, o governo bolivariano - também nos tempos de Hugo Chávez - teve sucessivas oportunidades para vencer o rentismo petroleiro, controlar a inflação, enfrentar a especulação e o roubo e, finalmente, reconciliar governo e as energias revolucionárias abrigadas na memória de um povo que ganhou consciência na luta contra a política agressiva dos Estados Unidos e a classe dominante local. A trama esta orientada por intenso conflito de classe que precisamos entender ou seremos devorados pela intensidade da crise que sofremos e da guerra de classes declarada por Temer contra nosso povo. As circunstâncias são diferentes, o roteiro é o mesmo. Neste contexto, o drama venezuelano é nosso. Por isso considero a "moção" do PSOL inócua. Não julgo fácil superar ambiguidades no terreno político. Mas nunca deveríamos alimenta-las.

sábado, 8 de julho de 2017

a coesão burguesa e o político vulgar

Na esquerda subsiste uma dúvida: a burguesia esta ou não unificada diante da crise? A dúvida que assalta alguns camaradas com larga experiência tem - curiosamente - origem na aparente divisão da imprensa, pois enquanto a Globo joga duro pela destituição de Temer, a Folha - o jornal municipal paulista - apoiava a permanência do corrupto. É possível observar as oscilações das empresas jornalísticas com certa diversão sem perder o fio da meada. Não resta dúvida que, lentamente, a campanha jornalística está manufaturando o consenso sobre a necessária queda de Temer.

A coesão burguesa é de fácil identificação. Todas as frações do capital querem o fim da previdência social e das leis trabalhistas - aprofundamento da superexploração da força de trabalho - e o corte sistemático do investimento e gasto público. O desemprego bateu 18% na grande São Paulo na semana passada. Enorme. O pesado custo da crise recai sobre os trabalhadores, condenando-os ao abismo social. O superendividamento do estado - pilar da estabilidade monetária - segue sua marcha inabalável. No ano passado, o governo destinou 1 trilhão e 300 bilhões para juros (R$ 304 bilhões) e custo de amortização (1.044 trilhão) da dívida interna. Enfim, o automatismo da dívida e do rentismo superou a casa do trilhão anual!!!!

Na oposição Lula costura o acordo sob os escombros de Temer. Na ausência de debate e candidato realmente alternativo, seguirá crescendo na preferência eleitoral assegurando aos pobres a antiga esperança de incluí-los no orçamento e, aos capitalistas, a garantia que um eventual governo encabeçado por ele não reverteria as "reformas do capital". Lula não esconde o jogo. Neste contexto, a margem de Ciro Gomes diminui acentuadamente. No entanto, a antiga regulação keynesiana não tem a menor eficacia porque a indústria desaba e as altas finanças avançam sem obstáculos. Ninguém no jogo político dominante quer fazer a eutanásia do rentista recomendada por Keynes. A burguesia industrial brasileira nunca teve força para tal e agora abriga-se no rentismo para sobreviver sob a pressão das mercadorias produzidas na China, na Índia e nos Estados Unidos. Adeus à era industrial do ABC paulista.

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A ação do procurador geral da República Rodrigo Janot contra Aécio e Temer representou uma pancada no juizeco Moro. Para este, os tucanos sempre foram corruptos de predileção. Agora, José Serra, quem mereceu olímpico desprezo nas investigações da Lava Jato a despeito de evidências abundantes de crimes, também será ferido de morte pelo procurador que deixa o cargo. Janot sai atirando no alvo. No STF Gilmar Mendes oferece cátedras sobre a farsa da independência dos poderes de Rousseau. O homem comum, orientado por sentido elementar de lógica formal, acusa a "incoerência" das sentenças dirigidas politicamente. Não existiu outra época em que o sistema político exibisse de maneira mais clara suas preferências de classe num momento aparentemente confuso. Enfim, tudo fica claro na confusão!

Neste contexto, a coesão burguesa segue firme mas carece de operador confiável e, sobretudo, estável. É neste terreno movediço que a imprensa oscila não porque expressa divisão de classe mas porque ainda não encontrou um operador com vestígio de solidez. Talvez a única saída seja mesmo aprovar as "diretas já", pois Rodrigo Maia poderá sentar num tribunal antes da tentar a cadeira presidencial. As ações da Lava Jato e especialmente a estocada de Rodrigo Janot indicaram que nenhum político será poupado. Em resposta, Jader Barbalho abandonou o silêncio e fez discurso eloquente no senado em defesa de Lula acusando a covardia entre os pares e exigindo solidariedade ao ex-presidente. O brado em "defesa do estado de direito" pretendia a unidade de "todos" e da "consciência cívica" contra os abusos dos tribunais. No essencial, bradou pelo instinto de sobrevivência, típico do político vulgar. Afinal, quem senão eles representaram a consciência burguesa nestas terras? No entanto, agora é preciso salvar a própria cabeça e escapar da prisão. A campanha jornalística (não há contradição nos termos!) não se importa em torrar de maneira definitiva uma geração de políticos corruptos, vulgares e disciplinados aos interesses de classe. Há, como demonstra Dória, uma fila enorme disposta a ocupar o espaço que apodrece sob seus pés. Na tentativa de operar uma "revolução dos gerentes" de triste memória na Europa, o playboy Dória se apresenta como o anti-político, o gerente. A possibilidade de exito é pra lá de duvidosa. No lado oposto, o petismo - Gleice Hoffman na presidência do PT e Lula em campanha - condenam a carta tucana de disseminação do "ódio" na política nacional. Segundo o petismo, o "ódio" destinado contra Dilma e Lula atinge também os tucanos: o pior dos mundos possíveis, alegam. É preciso encontrar uma saída comum já que todos estão implicados.  

Portanto, a divisão da imprensa não expressa qualquer divisão classista. A burguesia permanece coesa e, no limite, mais do que em qualquer outra época recente. As classes dominantes se dividiram entre petistas e tucanos, mas o caráter específico da crise atual, inédita em muitos sentidos, impôs a unificação como único meio de sobrevivência de todas as frações do capital. Agora, o político vulgar esta dedicado a salvar o sistema político como único caminho para salvar a própria pele e, em consequência, atua por conta própria. Há evidente descompasso entre a necessidade de afirmar a moral burguesa superficial (Globo e Moro) orientada pelo "combate a corrupção" por uma lado e a imperiosa necessidade do político vulgar em "salvar o sistema político" como único meio de não terminar seus dias na cadeia, sem contas no exterior e patrimônio comprometido. Nenhum sistema se suicida, sabemos. Mas agora não é mais possível simplesmente acomodar as peças e simular uma limpeza. Na lógica imanente do sistema, Moro foi longe demais na caça a Lula. Janot feriu de morte o presidente nacional do PSDB. Não se atua assim, sem consequências. Nos bastidores todos tramam uma saída negociada para "estancar a sangria". A moralidade rasteira de um sistema sem corrupção nos marcos do capitalismo imaginado pelos moralistas de plantão e militância efêmera encontra obstáculos intransponíveis na vida real. 

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A tradição em nosso país ordena a conciliação. Tucanos e petistas, cada qual à sua maneira, já costuram o acordo possível para salvar o sistema petucano. Algumas cabeças vão rolar, sem dúvida. Para outros, talvez um tribunal de segunda instância devolva certa serenidade pessoal, ainda que jamais a vida política plena. A angustia de uns é a possibilidade inédita para outros. À esquerda, após a destituição de Dilma e a crise moral do petismo - no mínimo cúmplice de um sistema politico corrupto -, existe um imenso espaço para ser ocupado. É um espaço histórico inédito, raro em nossa História. Urge um programa e uma candidatura que expresse a gravidade do momento. No entanto, ainda estamos na janela vendo a banda passar. E, como sabemos, a banda passa.