sábado, 26 de março de 2016

Mister Obama atualiza Mario Benedetti

Não sou leitor disciplinado do Mário Benedetti ainda que sempre cultivei pelo escritor uruguaio gratuita e precoce simpatia. No entanto, gosto de seu ensaio, especialmente aqueles voltados para entender a rebelde realidade da América Latina. Benedetti, quem foi alfabetizado em alemão e conhece profundamente a cultura européia, carrega magistralmente imensa originalidade latino-americana em tudo o que escreveu. Ademais, nunca cultivou as convenientes ambiguidades de Jorge Luis Borges, para ficar apenas no exemplo mais exuberante.

Foi no escrito Dos muertos que no acaban de morir, título tomado da canção de Viglietti inspirado no poema do peruano César Vallejo, onde Benedetti elucidou para a eternidade a relação entre política e verdade quando nós, latino-americanos, nos defrontamos com os presidentes estadunidenses e a política imperialista.

O texto foi lido em 1978 numa homenagem a dois parlamentares uruguaios (Zulmar Michelini e Héctor Gutierrez Ruiz) sequestrados e assassinados em Buenos Aires dois anos antes e apareceu num livro quase esquecido, intitulado El recurso del supremo patriarca

O genial escritor uruguaio elucida os "ciclos da CIA", especialmente útil para todos aqueles que defendem a democracia e rechaçam, ainda que de maneira cosmética, a violência na política. É também muito importante para verificar como, de fato, funciona o sistema democrático estadunidense e especialmente válido para entender o terrorismo de estado, a modalidade terrorista mais letal que a Humanidade já conheceu.




Nesta semana o presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, visitou Cuba e Argentina. Aqui no país vizinho, Obama confessou o "apoio dos Estados Unidos" à sangrenta ditadura (1976-1983), período onde desapareceram e foram assassinados milhares de argentinos (talvez mais de 30 mil). A assessora de segurança e política externa do presidente estadunidense, Susan Rice, disse ao jornal espanhol El País que, "para expressar nosso comprometimento com os direitos humanos, o presidente visitará o Parque da Memória, a fim de homenagear a memória das vítimas da guerra suja da Argentina. Além dos 4.000 documentos sobre esse período obscuro que os EUA já liberaram, o presidente Obama, a pedido do Governo argentino, anunciará um esforço para abrir documentos adicionais, incluindo, pela primeira vez, documentos militares e de inteligência. Acreditamos - disse a funcionária gringa - que essa viagem será uma demonstração histórica da aproximação entre nação e a América Latina".

A "generosidade" de Obama me recordou Benedetti e os "ciclos da CIA". 

Abaixo, sem talento literário, traduzo o trecho de Benedetti que dispensa comentário adicional.

"A história contemporânea ensina que os porta vozes oficiais norte-americanos nunca reconhecem de imediato os excessos da CIA. Ainda mais: negam enfaticamente sua própria intervenção, como se quisessem dar a entender que a CIA atua por sua própria conta, sem consultar sequer a Casa Branca. Com frequência transcorrem vários anos antes que algum sagaz jornalista do Washington Post ou do New York Times publique a previsível e sensacional série de artigos, denunciando a participação da Agencia Central de Inteligência em tal ou qual atentado (exitoso ou falido) ou em tal ou qual golpe de estado (geralmente exitoso), Somente então aparecem os menos previsíveis senadores da oposição (democratas, se o governo  é republicano; republicanos, se o governo é democrata) que, ecoando as denuncias jornalísticas, promovem exaustiva investigação que, obviamente, vai demonstrar com pelos e sinais, e também com gravações e fotografias, a culpabilidade da famosa Agencia. Uma vez alcançado esse ponto de ebulição, é fácil concluir no horóscopo o capítulo seguinte: aparecerão como por encanto comentaristas internacionais, jornalistas de nota, locutores de radio e televisão, prêmios Nobel, escritores com bolsa, ex-presidentes, ex-secretários da OEA, todos os quais lançarão sua voz para elogiar até as lágrimas a vigência do direito no sistema democrático dos Estados Unidos, capaz de detectar suas próprias transgressões, suas arapucas, suas mentiras e crimes, e, como se fosse pouco, nomeando os culpados por seus nomes e apelidos. Com semelhante toque final, e ainda que nenhuma dessas esplendorosas virtudes sirva para que os assassinados ressuscitem, o terreno fica pronto para começar a preparar a próxima eliminação de dirigentes de esquerda, a próximo queda de um avião de passageiros, o próximo atendado as embaixadas do Terceiro Mundo, e, assim sucessivamente. Como é lógico, quando algum deste planificados novos golpes da CIA se produza, aparecerá o porta-voz de sempre, ou seu substituto, para negar enfaticamente a participação de seu governo, e somente três anos depois um jornalista hábil descobrirá finalmente que foi a CIA a inspiradora do crime, e aparecerão senadores da oposição, etc., etc. O ciclo se cumpre e feliz páscoa."  

sexta-feira, 25 de março de 2016

Um proletariado sem cabeça

E pur si muove 
A despeito das preferências políticas, ninguém poderá ignorar a importância e magnitude da massa humana que emergiu dia 18 de março em todo o pais e, especialmente, aquela da Avenida Paulista, a artéria mais importante do coração burguês do país. Em Salvador e Recife, as manifestações em defesa de Dilma foram as mais volumosas até agora, muito superiores as ocorridas contra a presidente no dia 13 ou ainda em ocasiões anteriores. A questão regional, tão esquecida no Brasil apaulistado, cobra seu preço.

No entanto, a manifestação tingida de vermelho foi relevante não somente pela magnitude, mas sobretudo por sua natureza. Ocorre que aquela multidão ganhou as ruas sem que a presidente Dilma a convocasse! Na mesma toada, Lula tampouco a convocou embora tenha comparecido e, mais importante, tenha sido o principal orador. Não restam dúvidas que ambos eram os mais interessados no exito do evento. Aparentemente é inusitado a ausência do chamado nas circunstancias atuais. O protagonismo natural da presidente e do líder do PT ficou, na prática, por conta dos partidos da base aliada e por movimentos e organizações sociais.

Em qualquer país normal - especialmente na América Latina - é absolutamente natural que o presidente ameaçado de destituição convoque o povo na defesa de seu mandato. No Brasil, ao contrário, aparentemente resulta normal o respeito da presidente a inútil "liturgia do cargo", razão pela qual Dilma se mantém como figura decorativa diante da ofensiva liberal orientada a destituí-la. Em consequência, a mandatária não disse palavra sobre a manifestação do dia 18. Lula, mais safo, anunciou no dia anterior que compareceria. Repito: não convocou, mas confirmou, via boatos, sua presença.

Não é surpreendente a presença massiva diante deste curioso e inusitado comportamento de seus líderes?

Dilma convocará as massas? 
No dia 22 de março Dilma simulou mudança de conduta. No Encontro com juristas pela legalidade e a democracia, a presidente recordou ninguém menos que Leonel Brizola e afirmou: "jamais imaginei que voltaríamos a viver o momento em que se fizesse necessário mobilizar a sociedade em torno de uma nova campanha da legalidade como estamos fazendo neste encontro". Disse também que jamais pensou em gastar energias nesta direção pois, "preferia - disse a presidente - não viver este momento, mas que fique claro que me sobra energia, disposição, e respeito a democracia, para fazer o enfrentamento necessário a conjuração que ameaça a normalidade constitucional e a estabilidade democracia do pais."

Na prática, Dilma repete Lula em conversa telefônica com Wagner Freitas, presidente da CUT. O diálogo entre Lula e o disciplinado Wagner permite valiosa reflexão sobre os dias que correm e, em minha opinião, é a única revelação digna de nota do grampo policial ao ex-presidente. Obviamente, a imprensa, os críticos e sobretudo os inimigos do governo ignoraram por pura conveniência a preciosidade. Lula, após encontro com 26 senadores transmite a Wagner o recado dado aos parlamentares: "Eu não quero incendiar o país. Eu sou a única pessoa que poderia incendiar esse país. E eu não quero fazer como 'Nero', sabe? Não quero! Sou um homem de paz, tenho família".

Aqui reside um segredo de nossa conjuntura, situado em larga medida entre a angustia de militantes com sentimento de esquerda relegados a quase-impotência política e o atinado cheiro de oportunidade da direita brasileira de comprovada eficiência histórica. A presidente Dilma afirma que lutará para defender seu programa de "inclusão social", tal como Lula admitiu meses atrás sua candidatura em 2018 caso o "projeto petista" sofresse ameaça de retrocesso. O grampo e a divulgação ilegal realizada pelo juiz Moro acelerou a conjuntura, mas não a ponto de tirar a fria lucidez da lumpemburguesia brasileira. Ambos, Dilma e Lula, ameaçam com a mobilização popular mas não ousam, de fato, ativá-la. A cada nova denuncia do consórcio Moro/Globo, Lula realiza um pequeno evento com trabalhadores, a exemplo daquele ocorrido na Casa de Portugal, em São Paulo (23/03) com um milhar de membros da CUT, da CTB e de rebeldes da Força Sindical. Em todos os atos o ex-presidente diz que vai "correr o Brasil" em defesa da presidente Dilma e do projeto petista de inclusão social. Mas no dia seguinte a agenda do ex-presidente é normal. Enfim, Lula ameaça, mas não ataca. Dilma declara, esboça reação, mas não atua. Por que?


Manufaturando a opinião pública
De minha parte, fico espantado como pessoas com alguma experiência política se iludem com declarações de parlamentares, juízes e jornalistas. Não deixa de surpreender o impacto da campanha realizada pelo canal oficial da destituição - a Globo News - patrocinada pela empresa oficial do impeachment, a Globo, na opinião de gente esclarecida e temperada em anos de luta política. Na versão midiática, destinada a manufaturar a opinião pública contra Dilma, 20 minutos de audiência são suficientes para qualquer inocente concluir que a presidente será despachada do Planalto pelos funcionários e garçons a qualquer momento. O jornalismo dominante indica que nem mesmo café frio lhe é oferecido, tamanha seria sua rejeição e o colapso de seu governo. A falsificação da realidade tem método e roteiro: o governo acabou.

No entanto, aqueles que julgam ou responsabilizam a mídia pela manipulação das massas, esquecem que são as classes sociais quem, em última instância, decidirão a sorte do governo. Esquecem também que Lula e Dilma calibram a consciência de sua base social nos marcos do absoluto respeito ao pacto de classe fortalecido em 1994 com o Plano Real. Uma demonstração eloquente da despolitização alimentada por Lula pode ser visto no discurso da Avenida Paulista onde, o ex-presidente afirmou a "inclusão social" como único horizonte possível para a "esquerda" brasileira. O discurso miserável de Lula só não foi observado claramente porque milhares de pessoas realizavam no evento espécie de catarse ou praticavam pequena revanche contra a ofensiva liberal verde-amarela que tinham suportado em silêncio e isolados nos últimos meses, especialmente forte após a grande manifestação paulista do dia 13 de março.

O ato do dia 18 resgatou momentaneamente da orfandade política milhões de pessoas submetidas aos limites intransponíveis do "lulismo". No entanto, afirmou também o caráter defensivo de todo petismo e, ao mesmo tempo, revelou a decisão do governo em manter o PT na condição de principal partido da ordem. Enfim, milhões se movem confinados entre o Jornal Nacional (Globo) e o discurso despolitizante do ex-presidente ("todos somos brasileiros", "precisamos recuperar o humor e a auto-estima do povo", "O Brasil é maior do que a crise", "restabelecer a paz e a esperança", "os pobres agora consomem", "empresários nunca ganharam tanto dinheiro como no meu governo", etc.). A questão é que as classes dominantes impulsionadas pela crise pretendem acelerar as reformas liberais enquanto o petismo indica que tudo poder ser feito negociando com os trabalhadores e sob sua condução (a defesa da legalidade). À esquerda, diante da ofensiva liberal, o petismo segue afirmando que ruim com Dilma, pior sem ela, razão pela qual no Ministério da Fazenda, o ministro Barbosa indica que a política econômica não aceita aventuras e, em consequência, as reformas estruturais exigidas pelo capital seguirá curso livre. Enfim, o Brasil, nos marcos do pacto de classe que nos domina, seguirá aprofundando a dependência e o desenvolvimento.

Razão e obsolescência do juiz Moro
A lumpemburguesia brasileira nunca esteve de fato preocupada com a moralidade pública, mas pretende manter sob controle a relação ultra parasitária entre suas frações e o Estado. Na exata medida deste objetivo estratégico, o jornal Valor (23/03) dá o tom: o juiz Sergio Moro, herói da classe média endinheirada e dos proletas sem politização, anuncia em editorial que a Lava Jato esta sob ameaça dos Poderes da Republica e dos "riscos advindos do personalismos de sua figura maior", O juiz Moro, afirma o jornal, "teve conduta exemplar na maior parte desses dois anos, mas ao agir politicamente tornou-se vulnerável em um terreno perigosos que lhe adverso".

Ora, o sistema político não poderia suportar o protagonismo político do Moro, da mesma forma que tampouco Moro pode levar as investigações da corrupção estatal e empresarial até o fundo e o fim. Uma investigação sem limites exigiria a construção de novos presídios para alojar empresários e políticos profissionais. Ademais, a atuação limitada de Moro justifica-se pois nenhum juiz pode tocar na natureza do estado que, ainda na consciência ingenua de milhões, cada dia se assemelha mais a metáfora de Marx para quem o Estado não era mais do que aquele velho a útil "comitê de negócios da burguesia". A presidente Dilma aproveitou o "vacilo" de Moro e retomou a iniciativa política, consciente que o "mundo político" lhe concederia razão mesmo que se mantenha em cauteloso silêncio. A recente lista da Odebrecht com pagamentos ilegais a mais de 200 nomes - caso se confirme cabalmente - comprova o temor justificado do parlamento na mesma medida que concede razão a Lula, para quem todos deveriam estar preocupados com a "Republica de Curitiba". O instinto de sobrevivência de deputados e senadores é imenso e afeta petistas e tucanos de igual maneira. Não é descabido supor que Dilma logrará maioria parlamentar e evitará a própria destituição com a inesperada ajuda da Lava Jato.

Neste contexto, Moro cumpriu sua função e a burguesia brasileira já decidiu sua sorte. O chamado "mundo jurídico" não gostou em nada de seus vazamentos seletivos e ilegais e menos ainda da politização que imprimiu na condução da Operação Lava Jato. Em poucas palavras, a burguesia necessita manter a aura de neutralidade da justiça e Moro parece não se enquadrar no figurino dos tribunais. Ademais, a Lava Jato veio pra ficar e já não é mais preciso o protagonismo político do efêmero herói das classes médias ativadas pelo moralismo rasteiro típico da redução da política à moral. A manifestação do Supremo Tribunal Federal - via Teori Zavascki - foi certeira como representação da vontade burguesa. A justiça, ensina o dogma liberal, serve a todas as classes de igual maneira. A "politização da justiça" para as classes dominantes é, portanto, não somente desnecessária mas, sobretudo, indesejável. Afinal, tudo funcionou bem até agora para as classes dominantes precisamente porque a Justiça era imparcial. É preciso evitar os aventureiros e seus riscos.

Nem tudo são rosas para os tucanos
Os tucanos protestam contra o governo e avançam terreno na destituição da presidente mas, sabem, o mar não esta pra peixe. Nas manifestações do dia 13, o fato mais relevante foi a fuga do senador Aécio Neves e do governador Geraldo Alckmin da ira popular. Aos que duvidam do clima hostil aos tucanos, pensem na situação ainda pior experimentada pelo secretario de segurança de São Paulo, um tal Alexandre Moraes, que mesmo protegido por sua escolta, terminou expulso da passeata na Paulista aos gritos de "assassino de crianças", "oportunista", etc (Valor, 15/03). Enfim, a campanha em curso deve ser calibrada por alguém pois o ódio ao político profissional não respeita coloração e é notadamente forte na marcha verde amarela.

O colapso do sistema petucano avança. A cada dia fica mais difícil para Moro excluir os líderes do PSDB do sistema de financiamento dos partidos via assalto ao Estado. Ademais, até mesmo as filas conservadoras sabem que duas moléculas de correção levaria os tribunais do país ao exame rigoroso das denuncias de corrupção envolvendo os governos tucanos em São Paulo e, com segurança, conduziriam Alckmin, Serra - e muitos outros - para a mesma condição em que Lula se encontra. O STF cumpre a constituição ao reivindicar o juízo sobre todos os políticos que detém a prerrogativa de foro, ou seja, aquela imunidade que a constituição garante aos políticos profissionais e, por isso mesmo, blinda o sistema político do escrutínio popular. Neste ponto, a estrito respeito a constituição dos magistrados coincide com o espírito de sobrevivência dos políticos profissionais e a República pode dormir serena por algumas horas.

Nos últimos dias o canal oficial do impeachment, a Globo, modelou a frequência e o tom pois a nova lista da Odebrecht tornou o terreno pantanoso para todos, governo e oposição. Há que manter silêncio sobre os detalhes da planilha paralela da empresa e particular cuidado com a divulgação de nomes, indicaram seus jornalistas em tom editorial. Não é uma maravilhosa demonstração de responsabilidade com a liberdade de imprensa? No conjunto, a nova lista indica que há algo de muito podre no reino da Dinamarca e, curiosamente, poderá aproximar muita gente hostil ao governo da tese petista de uma reforma no sistema político destinada a salvar gregos e troianos. Enfim, não há razão para incendiar o pais se "todos somos responsáveis".  

Lulinha paz e amor garante ajuste contra os trabalhadores
No discurso da Avenida Paulista, Lula não deixou dúvidas a respeito de seu papel nessa trama. Na Casa Civil, o ex presidente seria uma vez mais o "Lulinha paz e amor" que as classes dominantes adoram. A interdição moral, no entanto, diminuiu radicalmente o poder de negociação do único personagem que poderia "incendiar o país". Neste contexto, a presidente Dilma procura manter-se no cargo oferecendo todas as garantias à classe dominante por meio da política  econômica de extração fundomonetarista e Lula contribuiria com a fidelidade dos sindicatos ao seu líder, a despeito das perdas econômicas graves que já podemos ver na taxa de desemprego (10%), queda acentuada da renda (especialmente entre os mais baixos) e a certeza que a republica rentista esta assegurada, em especial as garantias referentes a dívida publica e a política monetária (Banco Central). Neste contexto, é evidente o fracasso histórico da política inclusiva que marcou os governos petistas e balizou o horizonte "utópico" de parte expressiva das classes populares. O capitalismo dependente jamais permitiu o sonho de uma classe média crescente quando a norma aqui é a superexploração dos trabalhadores. A ideologia lulista, expressa na política inclusiva dos governos petistas, sucumbe agora de uma vez por todas.  

É preciso dizer claramente que a política inclusiva já era miserável antes da crise e após a última eleição presidencial evidenciou a incapacidade de emancipar milhões de pessoas da miséria e da exploração; revelou também que era incapaz, especialmente após a crise, de mitigar as condições de superexploração a que estão submetidos mais de 80% da população economicamente ativa que sequer recebem o salário mínimo necessário assinalado pelo DIEESE. O crescente desemprego e a firmeza do capital nas recentes negociações salariais indicam claramente que a lei de bronze do capitalismo dependente não pode ser tocada. A ofensiva contra a CLT, a desvinculação das receitas da União, a supressão de direitos previdenciários, entre outras, contarão com apoio do governo e aplauso discreto da oposição.

A presidente Dilma terá tempo para realizar as reformas que os capitalistas desejam e seguirá governando até o fim de seu mandato? É possível, sem dúvida. As condições para implementar o programa ultra liberal são melhores neste momento e a perda de credibilidade de Lula, Dilma e sua base aliada aumentou a margem de manobra da lumpemburguesia. Nas entranhas do conflito a hegemonia liberal subiu alguns degraus e o golpe em curso esta longe de ser a mera destituição da presidente; ao contrário, o golpe consiste em simular a limpeza moral da republica vinculando sua sorte aos programas neoliberais. Com Dilma ou sem ela.

O eclipse da ingenuidade
A rapacidade da lumpemburguesia brasileira é antiga e, sabemos, sem limites nesta República. A novidade, portanto, não é seu cinismo e cretinismo parlamentar; tampouco há algo de novo na atuação destemida da imprensa, aquela mesma que blinda o governo quando este defende a reforma da previdência e o condena quando não atua decididamente em favor de seus interesses. A Globo sabe quando pode informar no asfalto (no dia 13) e quanto deve subir no teto dos edifícios para exibir sua logomarca (dia 18). A novidade é a incapacidade do PT e Lula em enfrentá-la. O Lulinha paz e amor circula novamente com certa desenvoltura para a suprema felicidade das classes dominantes e, eventualmente, pode até mesmo representar falso alívio para todos aqueles militantes sinceramente angustiados, que viram seu passado de luta e seu compromisso presente contra todo tipo de injustiça, submetido ao bombardeio midiático e a arrogância das classes médias mobilizadas em defesa do privilégio e do monopólio do poder. Os limites políticos mais do que óbvios de Lula, pouco importam neste momento. Lula foi superado pela conjuntura. O caráter defensivo e despolitizante de sua atuação não pode ser garantia de vida digna aos trabalhadores e menos ainda alimentar ilusões futuras. Não obstante, ele seguirá sendo útil como mero espelho e reforço das limitações daquele mesmo militante sincero que um dia julgou possível uma republica para todos em relativa harmonia com os interesses dominantes. 

terça-feira, 8 de março de 2016

Lula convocará as massas?

A estocada de Moro

A condução coercitiva de Lula determinada pelo juiz Moro evidenciou para muitos alguns aspectos até então nebulosos sobre a situação política nacional. Lula é, desde sempre, o alvo fundamental da Operação Lava Jato. A hipótese do Ministério Público é simples: uma organização criminosa controla o Estado brasileiro nos governos do PT. Esta "hipótese" é a tradução judicial do  postulado tucano segundo o qual "o PT aparelhou o Estado". Nada de novo entre nós, pois o substrato ideológico comum entre FHC e o juiz Moro é que o Estado representa o bem comum, portanto, acima das classes sociais. Trata-se, essencialmente, do antigo e surrado bordão liberal. No limite, a situação é apresentada como se o Estado não fosse, de fato, "o comitê de negócios da burguesia", mas um ente em que deve predominar o bem comum sem o qual "o homem será o lobo do homem". 

Até bem pouco tempo, o MP dizia que o esquema era comandado por José Dirceu, ex-chefe da Casa Civil no governo Lula, preso em Curitiba. No entanto, até mesmo os neófitos em política sabiam que, na verdade, o Ministério Público pretendia provar que a cabeça da suposta organização criminosa era mesmo Lula. A estocada de Moro foi o primeiro teste para aplicar no ex-presidente o mesmo critério que levou José Dirceu a cadeia: a doutrina do "domínio de fato". Em resumidas palavras: ainda que não existam provas cabais de eventuais crimes ou vantagens obtidas pelo ex-presidente, para o MP tudo leva a crer que Lula não somente sabia mas, sobretudo, comandava o esquema de corrupção entre empresários e políticos do PT e da base aliada.


A redução da política à moral
A despeito da reação de Lula e seus apoiadores, é preciso deixar claro que vitória burguesa no terreno da política e da ideologia é até agora enorme: milhões de pessoas consideram a corrupção o maior problema do país. Ademais, milhões acreditam também na responsabilidade do PT na profundidade e extensão da corrupção, mesmo admitindo que o assalto ao estado sempre existiu e que os políticos são, em geral, corruptos.

Lula antes e Dilma agora, supunham que a simples apropriação do programa socialdemocrata de FHC seria suficiente para diminuir as chances eleitorais dos tucanos. A esperteza petista julgava que o programa do Plano Real com pitadas de caridade cristã (Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Ações afirmativas, etc) seria suficiente para garantir sucessivas vitórias eleitorais. No entanto, as margens para esta operação no capitalismo dependente são muito estreitas. A primavera durou pouco, como até mesmo o mais ingenuo dos defensores da política da "inclusão social" pode ver. 

Enquanto Lula/Dilma aplicavam o programa do PSDB com rosto humano, a social-democracia abraçou com forte convicção a ideologia liberal. Em consequência, os tucanos comandados pelo senador "bom moço" Aécio Neves e a orientação "intelectual"  de FHC, assumiram as reformas neoliberais sem constrangimento para evidenciar os limites do governo petista, na mesma medida em que denunciavam a falta de preparo dos mesmos para implementar políticas públicas e dar racionalidade à ação do Estado. O recente programa lançado pelo PMDB deixou claro o rumo da radicalização ultra liberal a ser implementado por Dilma ou, no limite... sem ela. Os tucanos repetem todos os dias que a agenda capaz de tirar o país da crise somente poderá ser implementada por um presidente decidido e com credibilidade popular, dois artigos em falta no governo atual. Enfim, somente a destituição da presidente abre possibilidades para o futuro do país.

Neste contexto, a redução da política à moral representa valioso instrumento para legitimar o programa neoliberal, pois simula ser o único terreno em que tucanos e petistas podem, com alguma arte, simular diferenças efetivas. A atuação de Moro garante até agora um atestado de idoneidade necessário ao ultra liberalismo socialdemocrata pois, a despeito de gravíssimas denuncias contra expoentes tucanos (Aécio, Alckmin, Serra, FHC), o MP e a PF atuam com diligência exclusivamente contra o petismo. As investigações sobre tucanos - quando existem - são lentas, parcimoniosas e raramente ganham destaque na imprensa.

A divergência  no terreno moral oculta algo valioso, ou seja, a coincidência no plano programático. Há poucos dias Dilma deu demonstração eloquente da comunhão que sustenta o petucanismo quando, de maneira "surpreendente" para os petistas ingênuos, fechou acordo com José Serra na votação no senado onde aprovaram a abertura do Pré-Sal ao capital estrangeiro (dois senadores e outro da base aliada petistas faltaram e o líder do governo se absteve numa votação apertada de 33 x 31). Na semana passada, a presidente autorizou a venda de até 49% das ações das companhias aéreas ao capital estrangeiro. Agora, o movimento do governo é claro: comandar as reformas liberais (DRU, Previdência, etc) para fechar o flanco à direita na economia e seguir exigindo " equilíbrio" dos poderes públicos nos tribunais e especialmente na Lava Jato.   

O juiz Moro atua neste terreno com alguma desenvoltura e cumpre precisamente a função de indicar os petistas como um tumor que ameaça a sociedade brasileira. Agora, no entanto, terá que ir até o fim e até o fundo: Lula, reclamam os tucanos, é o chefe da organização criminosa e, a pressão será enorme para que ele leve o ex-presidente para a cadeia. Por enquanto, a condução coercitiva serviu para alimentar a propaganda de que o ex-presidente é um corrupto como outro qualquer ("ninguém está acima da lei"). A operação pretendia colocar Lula não somente como parte do "mar de lama" mas precisamente como seu grande chefe. Moro não descasará e espera encontrar novas e cabais provas nos depósitos do presidente e sobretudo nas delações premiadas de empreiteiros e do senador Delcídio. Ademais, outros políticos podem cantar e o clima é de grande insegurança no governo e no circulo íntimo de Lula. A despeito da reação encabeçada pelo ex-presidente, é fácil perceber que o estrago causado pela ação consertada entre Moro e a cobertura midiática logrou um objetivo estratégico que o antigo pragmatismo de Lula - cantado como virtude pelo petismo da ordem - colhe como fruto tão indesejável quanto inevitável. Lula, finalmente, esta na vala comum dos políticos brasileiros.
    
Lula levantará as massas?
A Lava Jato é uma operação com objetivo claro: não investiga tucanos. Simples assim. Esta opção de Moro e do Ministério Público evidencia ao observador comum o caráter político de suas operações. O discurso de Lula na sede do PT indica o problema sem tocar no assunto, ao reclamar da justiça que persegue o filho retirante do nordeste e "o presidente que mais fez pelos pobres", indicando ausência dos rigores da lei aos poderosos. O reclamo é algo insinuado, orientado pelo modo petista de namorar a classe dominante: insinua e ameaça, mas não morde. O ex-presidente diz que vai recorrer o Brasil. Lula, afinal, convocará as massas? Bueno, neste caso necessitará de uma bandeira, um programa. Por um lado pode acusar a justiça de perseguição e indicará a partidarização dos tribunais e a da PF.

O novo ministro da Justiça pode atuar discretamente nesta direção coibindo abusos, ainda que somente o uso das faculdades legais dos órgãos ao alcance do governo já é suficiente para condenar qualquer sujeito na conjuntura atual. Além disso, para percorrer o Brasil, o ex-presidente terá que defender bandeiras: qual o programa de reformas Lula poderá defender? Há duas limitações aqui. A primeira é que Dilma e Lula estão convencidos da necessidade das reformas neoliberais, como se elas fossem, de fato, uma exigência da crise. A segunda diz respeito ao processo de destituição de Dilma, pois caso este avance no parlamento - possibilidade remota, creio - tudo ficará mais fácil para Moro. Portanto, a sobrevivência política de Dilma e as possibilidades legais de Lula caminham juntas. 

A atuação política de Lula na presidência ou fora dela é clara: ele jamais convocou o povo pra uma luta. Os antigos militantes são agora, quando mobilizados, fieis eleitores. Não são mais lutadores sociais. Por outro lado, a grande mídia fabrica o consenso segundo o qual o "mar de lama" nunca foi tao profundo como agora e a responsabilidade é do PT e de seu máximo dirigente. Enfim, sem programa reformista e com sérias dúvidas sobre seu caráter, Lula não terá forças para "levantar o Brasil" contra as reformas neoliberais e o caráter político da justiça de Moro. Ademais, há outra tremenda limitação, pois Dilma esta implementando o programa neoliberal e luta contra sua destituição. A manifestação oposicionista do dia 13, a convenção do PMDB e a ameaça permanente de novas denuncias tornam seu governo instável por definição. Além disso, mesmo a derrota parlamentar da tentativa de destituição, não será capaz de eliminar a instabilidade derivada das reformas que decidiu abraçar, a elevação do desemprego, a supressão de direitos, a pressão inflacionária, o enorme custo da dívida estatal que alimenta a republica rentista e os efeitos da crise em andamento.

O petucanismo, no entanto, não perde a linha, razão pela qual a disputa moral seguirá dominando a cena. A redução da política à moral somente poderá ser superada quando forças sociais atualizarem um programa capaz de reformar o estado e a economia, possibilidade absolutamente remota nos marcos do pacto de classe dominante assumido pelos dois partidos da ordem (PT e PSDB). Na outra ponta, a fidelidade cada dia maior entre petistas e tucanos interessados em ocupar o espaço do liberalismo (Lula afirmou claramente, "sou liberal"!) na sociedade brasileira na vã tentativa de criar um liberalismo de "esquerda" contra um liberalismo de direita, tampouco impedirá o conflito inerente ao capitalismo dependente e suas enormes contradições. Na exata medida em que o petucanismo afirma a disputa no interior do liberalismo, o espaço social do protesto, da rebelião e da luta social se abre a novas forças. É o espaço que pode ser ocupado por um novo radicalismo político, necessariamente de esquerda. O petismo e sua base sindical não brotará das cinzas, pois já não mais existem as condições sociais e políticas para o "renascimento" da antiga militância. No limite, poderá exibir a indignação, ou seja, a impotência em ação. O petismo militante, se ressurgir, será necessariamente defensivo. Aproxima-se uma vez mais certo sentimento de orfandade para amplos setores sociais, estejam eles conscientes ou não das novas exigências políticas. Antes que o fim de uma era, os dias atuais nunciam, de forma confusa e atropelada, as exigências do tempo novo.