Sobre a
incompatibilidade entre universidade e cultura
A propósito do UFSCTock
A realização do
UFSCTock despertou a atenção para um problema sério que precisamos enfrentar: a
alienação cultural que a experiência universitária representa na vida de
milhões de pessoas. Até agora foi demasiadamente cômodo denunciar as restrições
orçamentárias perenizadas, “lutar” por melhores salários, apresentar projetos
“interessantes” e resumir nossa “militância” no surrado bordão da “luta contra
o neoliberalismo”. Cômodo, demasiadamente cômodo! Enquanto parte considerável
da esquerda espeta o “neoliberalismo” (nas circunstancias atuais, um objeto não
identificado), a universidade se transformou num valioso instrumento de
alienação científica e cultural em favor das classes dominantes. Eu sei que a
maioria considera este juízo um exagero encantada que está com o academicismo. Contudo,
estou convencido que a universidade divide com a evangelização do país e o
abobamento televisivo, as glórias das três instituições mais importantes para a
alienação cultural. Entretanto, a maioria de nós ainda fala da universidade
como se estivesse efetivamente vivendo na casa do saber e da cultura. Grande
parte dos estudantes também, de maneira contraditória, depositam suas esperanças
na instituição universitária como instrumento de criação intelectual
(científica e artística) ainda que o cotidiano negue terminantemente esta
possibilidade. A propaganda estatal alimenta o mito de que a universidade é a
grande responsável pela pesquisa no país ou que, no nosso caso, as
universidades públicas são “indiscutivelmente melhores que as demais”. Ora, o
ensino universitário privado no país é de péssima qualidade. Nestas
circunstâncias, exibir o indisfarçável pequeno orgulho meritocrático diante da
miséria a que estão condenados milhões de estudantes que pagam ensino caro e
ineficiente, equivale, como denunciou Marx, a comodidade de ser liberal a custa
da Idade Média.
A universidade
brasileira esta sofrendo uma lenta – na verdade lentíssima – mudança. As
classes populares começam a frequentar o campus antes dominado pela classe
média alta e média. Há alguns anos, também existiam pobres entre nós, mas a
hegemonia cultural e o clima que se respirava era, inconfundível: todos, quase
todos, aspiravam a vida classemedia
que agora orienta a ideologia do país marcado pela suposta “emergência” de uma
“nova” classe média. É a ideologia da superação do subdesenvolvimento e a
dependência pela via do consumo barato (e passageiro!). Há agora, é verdade,
pobres e negros entre nós. É melhor assim. Mas devemos ser realistas: no
fundamental nada mudou.
Na exata medida em que a antiga ameaça de abrir a universidade foi se transformando em uma necessidade para a classe dominante, as frações partidárias chegaram ao consenso que era mesmo tão inevitável quanto necessário para a acumulação de capital democratizar algo do ensino superior. O mercado de trabalho está aquecido repetem os economistas, razão pela qual a expansão das vagas públicas é uma demanda do capital. No entanto, no interior do campus a boa nova encontrou uma universidade ainda mais hierarquizada. É hoje notório que a graduação representa um colégio de segunda importância para o “projeto pedagógico” que nos dirige. É na pós-graduação onde os professores (e as autoridades) criaram o mito do ethos cultural e científico. Não que as aulas dos programas de pós-graduação sejam melhores. No final das contas, o colapso pedagógico é completo e não respeita o andar de cima. A consequência deste projeto é visível, pois a graduação é um fardo que, após a terceira fase, torna-se pesadíssimo para os estudantes. É neste período que a maioria dos alunos começa calcular o tempo que falta para sair daqui.
É aqui que a
“ocupação” realizada pelo Ufsctock durante uma semana revela debilidade. O que
pode um evento diante do cotidiano curricular alienante? Pouco, quase nada. O
que pode a “semana de ocupação” diante do veto à cultura que organiza a vida
universitária?
Não quero me estender sobre o nome escolhido (UFSCTock) porque mais fora de lugar não poderia ser. Não vivemos na década de sessenta e estamos longe de qualquer movimento de rebeldia naquela direção, ainda que o mal-estar seja profundo. A propósito, é significativo que em nome de resgatar uma tradição na UFSC (não é a primeira vez que este evento ocorre), a iniciativa também implica em reprodução neocolonial.
Nestas circunstâncias, o que poderia, então, uma ação cultural? Algo precisa ser feito. A energia de 4.000 punhos ao ar no auge político do festival revela apenas que são muitos os que estão, de fato, exaustos com a falta de vida cultural na universidade. Revela também que centenas deles – com pouco dinheiro no bolso e não menor falta de tempo – não possui outro espaço de diversão senão o campus da Trindade. As 14 bandas que lá se apresentaram nada podem contra a universidade alienante, mesmo que 4 delas composta por estudantes. É a luta entre o evento e a estrutura. O que pode o evento contra a estrutura? É preciso reconhecer primeiro, e enfrentar depois, o fato de que a arte esta proibida aos universitários da mesma forma que em lugar de uma cultura ampla, a universidade limita o horizonte cultural de todos nós. Aqui padecemos todos os males da cultura dominante. O talento dos estudantes, professores e técnicos está limitado pela estrutura curricular, pela falta de tempo programada pela formação, pela pressa industrial em quase tudo e pela mercantilização crescente da vida universitária.
O neo-desenvolvimentismo de Lula-Dilma rendeu improváveis aliados no campus, pois os projetos nos ministérios bombaram recursos para as universidades... Bem, estes projetos rendem também suculenta “complementação” salarial para um nutrido grupo de professores, razão pela qual possuem salários superiores ao teto legal. No final das contas, o salário é a parte menor da remuneração de muitos professores, complementa o salário de alguns técnicos e alimenta bolsas aos iniciados... Os recursos são públicos, sua apropriação é pública e a universidade não poderia ser mais burguesa, cumprindo sua função na divisão social do trabalho de um país dependente. Esta posição requer a produção de técnicos bem formados que necessitam figurar como especialista, ou seja, um bárbaro moderno. Enfim, um homem sem cultura. Um profissional, no sentido estrito do termo. O que pode valer o bordão “ars e scientia” nestas circunstancias? Na prática, nem arte e nem ciência. A universidade presta serviços mas não produz ciência. E não existe tempo nem função para a cultura.
Em consequência, o talento dos universitários deve buscar refugio ou realização fora do campus. A arte cênica não rima com Automação da mesma forma que balé não rima com Direito. A quantidade de gente que toca, dança, pinta, filma ou escreve fora da UFSC – sendo aluno aqui – é imensa. Imensa! A ocupação Ufstock, neste contexto, não produz efeito. É preciso que produza. É preciso, além de um evento, uma ação cultural de vanguarda mais profunda. A virtude do Ufstock é sua impotência, seu alerta. É possível que tenha despertado muitos para o tema, não duvido. A única certeza que temos é que não há política oficial da reitoria para responder a esta decisiva questão. No limite, a reitoria permite aquilo que o diretor de centro proíbe. É pouco. À cultura esta reservada tão somente atividades protocolares. Cabe, portanto, uma ação dos alunos, os únicos inteiramente dispostos a enfrentar a questão cultural sem os limites dos professores e técnicos. Muitos se somariam a criação de um movimento cultural na UFSC contra a alienação e a estupidez que nos governa. A cultura brasileira é vital, mas esta subordinada ao colonialismo cultural criado pela poderosa cultura industrial dos países metropolitanos. A cultura brasileira é desprezada entre nós. Os “universalistas” esquecem que toda cultura é antes de tudo, cultura nacional. A indústria cultural hollywoodiana, para mencionar um caso exemplar é, antes que universal, apenas cultura nacional estadunidense.
A ocupação do
campus, especialmente no final de semana, foi tão importante quanto insuficiente.
Foi um passo sem consequência? A ocupação – que custou suor e disciplina a um
grupo quase heroico de estudantes – preparou o terreno para mais um evento ou
os alunos iniciarão um movimento, de raízes profundas, capaz de mobilizar
milhares para o fazer artístico? Neste caso, não há alternativa: mais que
ocupar o campus, a ação cultural deverá ser dirigida contra a universidade que
nos governa. Mais do que exibir aqui dentro o que se produz marginalmente lá
fora, necessitamos um movimento destinado à criação permanente da cultura e da
arte no cotidiano da instituição como caminho para superação da alienação
cultural que orienta a formação profissional e domina a sociedade brasileira. Contra
a omissão das autoridades e o silencio cúmplice de outros tantos. Um movimento
dirigido a realizar o bordão que
podemos ler no escudo da instituição (ars
e scientia) ou figurar como apêndice “rebelde” da alienação em massa do
colonialismo cultural que atualmente se reproduz quase sem crítica.
Mas ah índio véio
ResponderExcluir