Não recordo com precisão a data, talvez tenha sido em 2010; mas lembro do recado para um encontro com Samuel Pinheiro Guimarães, quem estaria interessado em conhecer o trabalho do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA). Na época ele ainda mantinha grande influência em Brasília e estava de passagem pela UFSC. Numa tarde discutimos longamente a situação política nacional e a orientação da política externa construída em larga medida sob sua influencia. Samuel tem incomum paciência. Não aquela paciência cosmética, própria do cretinismo parlamentar ou do diplomata cínico, simulação de ouvidos ao interlocutor. É paciência de quem sabe a disputa pelo futuro da nação marotônica e não prova de 100 metros rasos.Talvez por isso ele exibe parcimônia na exposição de idéias e na disputa teórico-política como se fosse um monge dotado de serenidade secular. Ele sabe que poderá não colher os frutos de sua pregação - afinal a Revolução Brasileira não ocorrerá em outubro próximo - mas tal realismo não diminui seu interesse ou força discursiva sobre os destinos do Brasil. Lá vai Samuel pelos auditórios ensinando soberania, conceito inexistente na formação do corpo diplomático.
Nos últimos anos tivemos vários encontros no Brasil e em outros países da Pátria Grande, sempre em atividades destinadas a criar consciência sobre nossa condição de país subdesenvolvido e dependente. Antes de conhecê-lo, eu havia lido 500 anos de periferia (1999), livro no qual imediatamente apreciei a heresia do embaixador ao adotar o conceito "periferia" tão hostilizado pelo corpo diplomático afeito ao colonialismo dominante quanto decisivo para a política de um país verdadeiramente independente. Basta imaginar a preocupação das classes médias com "nossa imagem lá fora" para perceber sua idêntica ojeriza aos conceitos "periferia" ou "subdesenvolvido" sem os quais qualquer interpretação de nossa realidade é impotente. Por isso mesmo, ele pode exibir no currículo vários editoriais da imprensa burguesa contra suas exóticas idéias. Samuel sabe do efeito destrutivo das multinacionais numa economia dependente, razão pela qual não poupa os auditórios sempre treinados na arte de receber o capital externo como se fosse ar fresco para um asmático. A voz calma e por vezes irônica revela aos poucos o efeito corrosivo na consciência ingenua dos ouvintes, empurrando-os para o incomodo e inevitável terreno da consciência crítica.
No nosso jargão - na esquerda - Samuel é considerado "governista". De fato, ele é um governista. Ainda assim - governista - Samuel não perdeu a lucidez. No entanto, esta posição é matizada em perspectiva histórica, ou seja, no espelho do entreguista FHC, feito aqueles liberais que afirmam as virtudes do capitalismo a custa da Idade Média. A elegância de seus argumentos não oculta afinidade maior com Lula e molecular diferença substantiva com a política externa de Dilma só perceptível para quem se liga nas sutilizas da política, na riqueza do detalhe. O real não se vê, ensina José Martí. É a segunda vez que dividimos uma mesa de debates após a vitória de Dilma nas últimas eleições presidenciais. Eu disse a ele e escrevo aqui: Samuel era útil para o antigo governo mas é muito melhor quando está na oposição. É fácil imaginar quanta angústia ele acumulou para tentar - por dentro do governo - avançar na afirmação da soberania e independência da política externa que se revelou, ao fim, vã. É drama comum a muita gente boa que acreditou estar mudando o mundo na defesa de governos assemelhados como se estes fossem, de fato, o único horizonte possível para o Brasil e a América Latina neste mundo incerto.
No encontro dos economistas da região sul realizado aqui em Floripa na semana passada, o embaixador chegou mesmo as raias da diversão ao responder sobre o papel de Serra no governo Temer. Trata-se de um neófito, nada mais, disse Samuel. Na verdade, fosse a imprensa minimamente apegada a verdade, Serra já seria objeto de escárnio público. No entanto, o senador paulista é um homem de Washington na disputa presidencial brasileira e conta com aquela imunidade "natural" do jornalismo (TV, rádio e jornal). Na verdade, Serra é funcionário público estadunidense com mandato de senador, atualmente desenvolvendo funções na chancelaria. A diferença é, além da benevolência da imprensa, o fato de Serra saber mentir com método e praticar o discurso que os editores tomam como música. O conceito imperialismo não existe na cabeça da elite brasileira e, em consequência, tampouco surge na redação de jornalões e/ou jornalecos. Não existe na cabeça porque na real, para os sabichões de plantão, imperialismo não existe mais. Existe globalização...
O futuro é sempre incerto e não poucas vezes a escolha dos povos conta com a falta de juízo histórico severo, especialmente no curto prazo. Não obstante, em breve - creio eu - amplos setores da população abandonarão o ceticismo conveniente à ordem dominante e, mais cedo do que tarde, serão arrastados pelo turbilhão da política, superando assim a aparência de situação sem saída agora sentida como verdade eterna. Neste tempo futuro, com a serenidade necessária, observaremos então a importância do combate e a solidão política do embaixador, confinada nos estreitos limites do sistema petucano onde os dois bandos - petistas e tucanos - em aparente antagonismo revelaram, cada qual a seu modo, as misérias da classe dominante que fez do país um horror para as classes populares e um paraíso para seu completo e exclusivo deleite.
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