Em política não há lugar cômodo. Nem em Paris, antecipo aos eurocêntricos e também àqueles que analisam processos sociais sentados confortavelmente numa mesa de café. A propósito da disputa venezuelana, a grande maioria dos analistas revela conhecimento superficial da situação histórica e dos dilemas atuais da Revolução Democrática Bolivariana. A recente moção de meu partido - o PSOL - sobre a eleição da nova constituinte no país vizinho é, além de lacônica, improdutiva. Na prática serve apenas para prestar contas ao liberalismo de esquerda e direita que domina a sociedade brasileira. Creio que como partido político destinado a renovar radicalmente a política tal como a sofremos (ou seremos devorados por ela) o PSOL deveria estimular o debate interno forte sobre política internacional. As idéias dominantes são as ideias da classe dominante e, em consequência, devemos, antes de flertar com elas, submete-las ao crivo da crítica.
Creio que um bom começo para entender o que acontece na Venezuela é o reconhecimento da crescente separação entre a força original da Revolução Democrática Bolivariana e o governo bolivariano. O conflito na Venezuela, quase sempre apresentado aqui como forma não civilizada do fazer político é, na verdade, resultado de longo processo histórico, amadurecido pela aparição de Hugo Chávez e o MBR-200 há quase duas décadas. Desde uma perspectiva exclusivamente brasileira, estamos longe - muito longe! - do grau de consciência adquirida pela sociedade civil venezuelana, resultado necessário da transição entre a consciência ingenua do eleitor e a consciência crítica militante acelerada pela vitalidade da RDB. Aqueles que ignoram este dado elementar, deveriam abrir os jornais de hoje e constatar que o governo liberal e corrupto de Temer conta com apatia das ruas para seguir eliminando direitos fundamentais em nosso país. Na Venezuela, ao contrário, a chapa arde. Cada metro quadrado é disputado com suor e sangue. Aqui, ao contrário, esperamos 2018 e lamentamos a distancia entre nossas necessidades e o sofrimento do povo com as eleições tão distantes. Eis o terreno fértil para a crítica liberal à realidade venezuelana.
Nunca será ocioso recordar a legalidade constitucional da convocatória do presidente Maduro (Capítulo III, art. 348). No entanto, desde uma perspectiva bolivariana, é mais do que evidente a falta que fez o plebiscito prévio, evitado por razoes óbvias: o governo, muito provavelmente, não conseguiria autorização para a nova constituinte. As críticas a decisão governamental não nascem apenas da oposição; na verdade, os primeiros em manifestar contrariedade foram setores importantes do bolivarianismo. Tampouco devemos ignorar que o parlamento dominado pela direita, mais do que de uma simples e cândida oposição, declarou-se em "rebeldia" contra o sistema político. Algo muito semelhante ao congresso nacional brasileiro - aquele covil de ladrões - desconhecer as determinações do STF ou do governo. Em semelhante circunstâncias, qual democrata ou liberal - de direita ou esquerda - concordaria com tal procedimento?
A causa fundamental do descontentamento popular com o governo de Maduro é, pelo menos, dupla.
Em primeiro lugar o uso do excedente econômico permitido pela renda petroleira. As divisas hoje sob controle do Banco Central - ao contrário do Brasil, o BCV é também responsável pela política de desenvolvimento e não está limitado ao controle da inflação - são capturadas por frações do capital comercial e pelo sistema bancário. Todos aqueles liberais que criticam o desastre econômico do governo bolivariano deveriam atentar para a causa primária da inflação: a conta de capitais aberta e o controle de cambio. Ainda em 2010, quando permaneci 3 meses no departamento de pesquisa do BCV, escrevi um informe onde registrei que até mesmo os manuais do FMI indicavam o desastre produzido por esta combinação explosiva. No Brasil, a canalha liberal que domina o Ministério da Fazenda e o Banco Central - com apoio batalhão de jornalistas treinados na arte da servidão voluntária ou à espera de um convite para participar da farra das altas finanças - indica o controle de cambio como fonte de todos os males e, cinicamente, nada diz sobre a conta de capitais aberta, considerada um dogma pelos economistas neoclássicos e keynesianos convertidos ao credo liberal. O resultado é evidente: há vários anos a fuga de capitais enriquece um setor minoritário da classe dominante, alimenta a inflação que castiga o povo e permite todo tipo de falcatruas de empresários oposicionistas e governistas. A CEPAL informa que até 2014 a Venezuela figura como exportadora líquida de capitais enquanto o capital comercial dedicado ao tráfico de mercadorias especula diuturnamente com a fome do povo. Forças dentro e fora do governo pactam longe dos holofotes este pernicioso e decisivo mecanismo de apropriação da renda petroleira. Com astucia, a imprensa prefere destacar o "conflito irracional" das ruas...
Há tempos publiquei meu informe na Revista da Rebela. Há anos indico este tema no Programa Faixa Livre na Rádio Bandeirantes do Rio Janeiro. O silêncio completo sobre esta questão é fácil de entender, pois minha crítica ao governo Maduro é igualmente severa com a gestão considerada racional entre nós. Melhor silenciar sobre os críticos... Abaixo o texto completo para quem quiser entender um pouco melhor a fonte do "desastre" econômico na Venezuela.
(http://iela.ufsc.br/rebela/revista/volume-5-numero-1-2015/rebela/revista/artigo/politica-de-desarrollo-y-transicion-al)
Contudo, algo deve ser dito sobre o grave tema da corrupção. Não é trivial sustentar governo e não lutar contra a corrupção, fenômeno inerente ao estado burguês. Não basta a recorrente operação orwelliana realizada aqui por Dilma Roussef quando mencionava, com inocultável constrangimento, os "maus feitos" de seus partidários, sem contudo avançar no combate sem tréguas a roubalheira. Aqueles que entre nós apontam o dedo para os bolivarianos deveriam observar a dificuldade que possuem em responsabilizar diretamente Lula e Dilma pela "crise moral" do petismo e do sistema petucano. Não resta dúvida que se trata da mesma dificuldade... No Brasil, o caminho para eludir o tema da corrupção tem sido o de acusar o caráter persecutório do juizeco Sergio Moro contra Lula, de resto, mais do que evidente. No entanto, não ouço vozes dizendo que tanto Lula quanto Dilma foram cúmplices da corrupção porque julgavam que simplesmente não era possível combate-la. Decidiram conviver com a corrupção e não desmontaram o conveniente sistema político, limitando-se a clamar, retoricamente, por uma reforma política que jamais desejaram. E precisamente o sistema político que a consciência liberal de esquerda chama democracia, é corrupto, essencialmente corrupto. Na Venezuela o problema é grave e, nos marcos do sistema político atual e da aliança de classes que lá permanece, não alimento otimismo.
Portanto, quando falamos dos dramas do processo venezuelano não é possível esquecer que estamos diante de um espelho. Neste momento não temos o direito de aliviar a critica lá pra justificar condescendência com nossas invetáveis falhas e erros futuros. No entanto, creio que é decisivo que os partidos e organizações, lideres políticos e militantes de base, abandonem a formação obtida em conventos e mosteiros e tratem os temas da política e do Estado com o rigor necessário. Tal conduta somente será possível desde uma perspectiva socialista, revolucionária que, a despeito do moralismo - a impotência em ação, diria Marx - parece pouco realista para muita gente boa que sustenta a atual hegemonia no interior da esquerda brasileira.
Neste contexto, a atuação de Washington e da classe dominante venezuelana é clara: derrubar Maduro fustigando o governo nas ruas, conspirando nas casernas, e de olho no calendário eleitoral. Leopoldo Lopes e Henrique Capriles atuam conjuntamente com táticas distintas, pois enquanto o primeiro rompe sistematicamente a legalidade o segundo pavimenta o terreno para as próximas eleições presidenciais. Hoje o Conselho Nacional Eleitoral anuncia que mais de 8 milhões de pessoas votaram. É cifra significativa. Não esqueça que o comportamento típico do bolivarianismo que discorda da iniciativa presidencial é o abstencionismo e facilmente compreenderá que parte importante dos bolivarianos não votaram porque discordam da qualidade do processo e, se por um lado não validam o governo, tampouco somam com a oposição de direita. A despeito do recurso constitucional, é impressionante o apoio eleitoral obtido por um governo que sempre atuou nos estreitos marcos da lógica das situações extremas. A oposição "conseguiu" - num processo informal repleto de falsificações - 7 milhões de votos há menos de um mês. No marco legal, Maduro superou a cifra de 8 milhões. O governo bolivariano ganhou fôlego, sem dúvida. Poderá agora, desarmar a trama que o levou a tão difícil situação?
Durante todos estes anos, o governo bolivariano - também nos tempos de Hugo Chávez - teve sucessivas oportunidades para vencer o rentismo petroleiro, controlar a inflação, enfrentar a especulação e o roubo e, finalmente, reconciliar governo e as energias revolucionárias abrigadas na memória de um povo que ganhou consciência na luta contra a política agressiva dos Estados Unidos e a classe dominante local. A trama esta orientada por intenso conflito de classe que precisamos entender ou seremos devorados pela intensidade da crise que sofremos e da guerra de classes declarada por Temer contra nosso povo. As circunstâncias são diferentes, o roteiro é o mesmo. Neste contexto, o drama venezuelano é nosso. Por isso considero a "moção" do PSOL inócua. Não julgo fácil superar ambiguidades no terreno político. Mas nunca deveríamos alimenta-las.
Ficou complacida pelo seu análisse, meu caro Nildo Domingos Ouriques! Um análisse que tenta ultrapassar as escritas complacentes e "ideologizadas" que tanto mal têm feito na caraterização da situação em nosso país. Uma sugestão. Não é possivel compreender o processo político venezuelano sim ter como ponto de partida o Caracazo. O movimento do 4F é uma expressão dessa ruptura histórica no ano 1989 na Venezuela. Agradeço sua lucidez e sensatez! Abraço forte!
ResponderExcluirMuito bom. Cuba, bem ou mal, dentro ou fora da cartilha marxista, é pelo menos mais uma das várias tentativas de se estabelecer um Estado socialista. Cuba é exemplo vivo de mais uma experiência histórica. A Revolução de 1917, marco histórico de que é possível um governo da maioria, dos trabalhadores, a democracia real como horizonte utópico. Afinal, há toda uma vasta literatura materialista histórica científica apontando com lógica matemática o desiderato ao socialismo. E isto in tranquiliza a razão. Será mesmo que o incontrolável caminha da História caminhará no sentido da civilização e não barbárie? A suplantação completa do período burguês capitalista? Sem embargo, a realidade posta ou a história inflexiona com um dilema:democracia ou rebelião popular(ou ainda, socialismo ou barbárie) Toda a ruptura se comporta com um brutal vetor resultante de duas poderosas forças antagônicos em processo dialético de atração à colisão. É lei da Física e que se aplica nos fenômenos sociais. E o capitalismo contraditório em sí produz intestinalmente o próprio o embrião de sua destruição. O processo espontâneo de parto será ruptivo na medida do curto retorno a uma forma amorfa de servilismo e escravidão. Pois bem, a Venezuela, de certo modo, nas suas peculiaridades culturais, assim como foi em Cuba, estabeleceu a la caudilho mais uma tentativa de Estado socialista (e Cuba muito contribuiu para isto; é saída dela da condição de refém do Império neo-colonial). E esta é a direção a ser algo palmilhada por todas as nações abaixo do eixo terrestre equatoriano. As condições do Sul são desumanas e sob ameaça de genocídio (pelos bárbaros do Norte). A experiência venezuelana deveria ser acompanhada de perto por todos.
ResponderExcluirInclusive para dela extrair de acertos. A construção de um Estado Socialista é caminhar no escuro com manuais teóricos de baixo do braço. Não dá para ir a diante da História, a Cultura limita e a realidade é mutante. E não que se esperar rupturas abruptas em ideias, Ideias sem liame de ideias, não são ideias por serem (cientificamente)incompreensíveis. A Venezuela inaugura uma nova fase ao bolivarianismo chavista e terá maior repercussão em todo mundo. Venezuela será forçada a se dobrar ao Império assim como fez Cuba. Nada mal,que seja uma segunda Cuba.Depois a terceira... A parede conjugada entre Venezuela e o Brasil fará estremecer este.Estamos numa flexão história semelhante a Venezuela.E assim parece em maior ou menor grau com muitos outros países.A síntese vem das primaveras mundiais, no Brasil, jornadas de 2013. O emblemático momento histórico da Venezuela e do Brasil são idênticos, ressalvando-se, obviamente, suas próprias peculiaridades. Mas há uma diferença crucial entre o fenômeno transposto pela Venezuela e o que terá quer transposto pelo Brasil. O estado de ruptura imporá ao seu tempo: democracia ou rebelião popular. Porque rebelião e não revolução? Porque ao contrário da Venezuela, aqui,no Brasil, a massa está desorganizada e sem a liderança de um Maduro. E Lula, o único a incorporar uma pequena maioria seria um desastre porque totalmente afastado do pensamento médio das esquerdas. Seria revolução se (em crescente)maioria expressivamente numérica. Maduro tem o exército ao seu lado. A correlação de força militar é condição concreta às revoluções. E no caso do Brasil problema agudo: nunca tivemos uma revolução popular vitoriosa. Todas, derrotadas pelas "oligarquias",resultaram em fragilidade às outras revoluções nascentes, v.g.,Ditadura Militar 1964. Não há mais espaço para registro de fracasso. As condições geopolíticas impõe resgate da soberania engolida pela globalização imperial. E depois? Fazer o Cuba sabe e precisa fazer,abrir espaço de alianças ideológicas afinadas entre países. E assim sucessivamente,em busca de correlação de forças na arena internacional. É preciso um forte exército, mas antes de tudo unidade nacional. Quer rebelião civil ou revolução popular o embate é incógnito. Contudo,estamos num momento histórico de definição de qual caminho tomar. Visando a unidade nacional, a que Maduro habilmente tem contornado, posicionar o atual embate político num outro patamar que abra espaço para todas forças (ideias) políticas possam se confrontarem, ampliação debate político às grandes camadas sociais ainda não atingidas, vejo como única saída para evitar uma rebelião desordenada a realização de eleições gerais com poder constituinte,antecedidas de plebiscito e referendo promulgativo a posterior. Enfim, até mesmo como ultimato às forças políticas nacionais dominantes Encerrando, certo é que chegou a hora de escolha entre a civilização e a barbárie. Em outras palavras, "se correr o bicho pega e se ficar o bicho come, então,o melhor,é comer o bicho". Abraços. Estou atento a suas ideias e sua luta.
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