A imprensa nacional - especialmente os monopólios Globo e CNN - anunciam Lula como a grande estrela da cúpula sobre meio ambiente que se realiza no Egito. A manufaturação do consenso sobre a defesa capitalista/imperialista do meio ambiente produziu uma espécie de situação que, a primeira vista, a sobrevivência do planeta dependeria da política do governo brasileiro para a Amazônia. O presidente egípcio Abdul Fatah Khalil Al-Sisi convidou o presidente eleito para falar no evento onde os criminosos e os defensores do meio ambiente disputam cordialmente a condição de protetores do planeta. Ali, se costura uma "agenda" - na verdade uma ideologia - destinada a orientar a ação de partidos, movimentos sociais, acadêmicos e capitalistas em todo o mundo.
Ao aceitar o convite, Lula antecipou sua posse e decidiu comparecer ao encontro para anunciar a incrível "volta" do Brasil ao cenário mundial, superando a condição de "pária mundial que ninguém quer e ninguém visita". A esquerda liberal trata o tema como se, de fato, o presidente eleito aproveitaria a oportunidade para ensaiar nosso reingresso na civilização ocidental. De minha parte confesso que "a imagem do Brasil lá fora" não me comove em nada porque os olhos dos países imperialistas nunca enxergam e jamais enxergarão nossa humanidade.
Janeiro parece distante demais para a esquerda liberal. Na prática, tudo funciona ordenado pela angústia ou ansiedade de tomar posse o mais rapidamente possível e inaugurar nossa "volta a normalidade" com as instituições funcionando em harmonia e independência, as políticas públicas produzindo milagres jamais vistos em outras paragens e, nas relações estritamente individuais, aquele seu vizinho, bolsonarista hostil, com a bandeira nacional ainda pendurada na sacada de seu apartamento, finalmente, terá sido devolvido ao lugar da impotência e resignação que o regime democrático o obriga.
A viagem ao Egito, nessas circunstâncias, se tornou uma necessidade imperiosa, algo semelhante a viver cada minuto, cada evento, "como se não houvesse amanhã". Mas sempre haverá o amanhã...
Foi nesse contexto que Lula pegou uma carona rumo ao Egito oferecida por um conhecido empresário do setor de saúde chamado José Seripieri Filho, proprietário da QSaude. É uma empresa que possui 30 hospitais, 151 clínicas e l54 laboratórios. Ademais, o rapaz é um doador da campanha vitoriosa do presidente eleito (quase 1,2 milhão) e réu confesso de crime eleitoral com direito a prisão, acordo de delação que corre em segredo de justiça e, segundo a imprensa, ressarcimento aos cofres públicos de 200 milhões de reais. A "carona" é uma definição oferecida pelo vice presidente tucano Alckmin quem afirmou que Lula não tomou o avião emprestado mas tão somente pegou uma carona para um evento em que os dois - presidente eleito e o capitalista do setor da saúde - "vão juntos" a tal COP-27.
A direita aproveitou o "erro" para seguir na disputa da moral pública cujo epicentro é a corrupção derivada da relação ultra parasitária entre capitalistas e o estado e na qual os governos jogam um papel central. A reação da esquerda liberal - especialmente do lulismo - foi manter o silêncio como se o episódio não existisse ou, de fato, fosse irrelevante diante da urgente tarefa de salvar a Amazônia e exibir as virtudes da "volta do Brasil ao cenário internacional".
Lula tinha alternativas, obviamente. A primeira era solicitar que o convite do presidente egípcio viesse acompanhado de recursos para fretar um jatinho com a segurança que um futuro chefe de estado exige; afinal, não se convida um presidente eleito considerado peça decisiva na defesa mundial do meio ambiente sem a gentileza da passagem e os requisitos indispensáveis de semelhante viagem. Outra solução poderia nascer do apoio de recursos financeiros bilionários destinados ao Brasil pelos países europeus e devidamente bloqueados diante dos gravíssimos crimes ambientais promovidos pelo governo do protofascista Bolsonaro. É claro que o PT - partido do presidente - poderia simplesmente alugar um jato e enviar Lula em segurança com os recursos do fundo partidário. Finalmente, diante do fracasso das alternativas anteriores, posto que a campanha já terminou, o presidente eleito poderia simplesmente gravar um vídeo ou fazer uma participação online no evento, anunciando metas e propósitos de seu futuro governo.
A necessidade de agir como se ainda estivesse em campanha revela temores e exibe preocupações inconfessáveis pela esquerda liberal mas, ao contrário do que a ingenuidade poderia esperar, nenhum ação dirigida a corrigir "erros" do passado. A vitória eleitoral não foi e nem seria suficiente diante da podridão do sistema político inerente a crise da república burguesa. A esquerda liberal, no entanto, segue na crença segundo a qual a eleição de Lula era vital para mudar a correlação de forças, tomar um respiro e iniciar uma contraofensiva capaz de devolver a "paz social" perdida. Mas a primeira ação de Lula revela as debilidades inerentes da trama e do roteiro que o presidente eleito construiu e da qual não pretende abandonar nem por um segundo e da qual não há a menor certeza de nos tirar da crise.
Qual, afinal, o problema de uma "carona"?
Ora, além dos antecedentes criminais do capitalista que levou o presidente, a empresa do amigo de Lula vai se beneficiar diretamente da política pública para a saúde. A QSaúde atenderá uma promessa de campanha de Lula segundo a qual o tratamento de alta complexidade não ofertada pelo SUS será contratada junto ao setor privado onde empresas acumulam capital com a deficiência do serviço público cronicamente subfinanciado desde sempre. Não é o único setor que acumulará bilhões em nome do atendimento de necessidades do povo brasileiro. A miséria e a exploração dos trabalhadores é fonte de riqueza para os capitalistas benevolentes e contempla as pequenas ambições e o cretinismo parlamentar da esquerda liberal em nome filantropia orwellianamente chamada de "políticas públicas".
Após o TSE declarar Lula vitorioso, as ações dos grandes grupos capitalistas em educação tiveram altas inéditas pois é conhecida de todos a política petista de transferir bilhões de recursos públicos para os capitalistas da educação em nome da ascensão social dos miseráveis que num dia sobem pela escada e noutro, embalado pela próxima crise, desce rapidamente ao chão pelo elevador. Há poucos dias o jornalão burguês informou que as ações de empresas de educação operaram "em forte alta na B3 após o resultado das eleições presidenciais no Brasil, na medida em que o setor deve ser favorecido no governo do presidente eleito". As ações da Cogna, por exemplo, indicaram alta de 2,51%, as da Yduqs, 4,2% e as da Ânima bateram 8,59% (Valor, 31/10). No momento em que escrevo essa nota (16/11) a imprensa burguesa informa que os grupos econômicos estão ansiosos pela "ampliação do FIES" e os especialistas afirmam que o programa pode proporcionar "para Ânima, Gogna, Ser Educacional e Yduqs um aumento de 7% na receita e de 12% no lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização". Uma festa, não?!
Ora, educação e saúde num país subdesenvolvido sempre são mercadorias em qualquer governo, mas, no Brasil, a vitória do cinismo burguês transformou a miséria do povo e a promessa de mobilidade social em suculenta fonte de acumulação de capital além de fundamento material da digestão moral da pobreza. A filantropia é transformada em política pública com a mesma força e eficácia em que rendem bilhões aos capitalistas da educação e saúde que, por sua vez, não vacilam em exibir sua sensibilidade social na mesma medida em que sua conta bancária cresce. O alerta de Bernard de Mandeville - a quem Marx chamou de "bom e nobre homem" - segundo o qual as virtudes públicas nascem dos vícios privados segue ignorado pela esquerda liberal.
De minha parte reconheço a habilidade de Lula na arte de iludir mas devo adiantar que ele não mentiu sobre o conteúdo conservador de sua aliança e tampouco de seu futuro governo; ao contrário, sempre foi explícito em afirmar que "esse governo não será do PT", uma partitura, de resto, conhecida. As sucessivas declarações do eleito encontrou logo uma benevolente tradução na esquerda liberal orientada por um bordão tão antigo quanto miserável: "o governo esta em disputa". Em consequência, caberia aos movimentos sociais e a "sociedade civil", arrancar cada conquista com o suor de seu apoio e da mobilização na base...
Na realidade, cativa do lulismo - uma degeneração do fracasso histórico do petismo - essa formulação justifica não somente a degradação completa do regime presidencialista cuja autoridade diante do povo marca nossa evolução histórica mas, sobretudo, permite ao PT e a esquerda liberal, a condição de ator coadjuvante (de caráter parlamentar) cuja expressão mais vulgar pode ser constatada no apelo permanente de "voltar para a base" e trabalhar duro junto ao povo para empurrar o presidente para à esquerda. O resultado da rendição é conhecido: em primeiro lugar, a pratica de um parlamentarismo atravessado pelo "presidencialismo de coalisão" de extração petucana novamente desinibido pois a direita no governo o praticou em larga escala. Em segundo, a absolvição prévia de Lula de qualquer deslize ou erro grave, pois é muito provável que a pressão dos milhares de "comitês populares" criados na cabeça de alguns dirigentes do movimento social jamais exibirão força de massas.
A carona do burguês tem ida e volta; é, pois, via de mão dupla. Tal como reza o ditado popular, "uma mão lava a outra e as duas lavam o rosto". É legitimo concluir que o gesto de Lula em aceitar o favor do capitalista milionário, antes que imprudência, anunciou no terreno da política a verdade já revelada pelos tribunais superiores em relação aos absurdos jurídicos e violações das normas do direito praticados pela Lava Jato sob condução do antigo xerife do bairro agora eleito senador pelo Paraná. Assim, os preconceitos do distinto público devem ceder a certo pragmatismo, parte constitutiva da volta a normalidade, entende?
Na oposição, entretanto, há a partir de janeiro uma direita cuja liderança na disputa da moral pública ainda permanece forte como demonstra tanto sua campanha quanto os votos recebidos. Não sabemos se os crimes do protofascista e sua família denunciados com certa insistência pela mídia burguesa chegarão aos tribunais e, nesse caso, se contribuirão para colocar o protofascista na cadeia ou apenas na vala comum da corrupção. Há pouco, ouvi João Pedro Stedile comparar Lula a Moisés quando este, segundo o livro sagrado, comandou a travessia do mar vermelho. A direita também nutre um sentimento religioso manifesto pelo seu Messias que agora vai para a oposição. Nos dois casos, a despeito das evidências, nenhuma acusação parece colar no bezerro de adoração. Mas a História ensina que quando a conduta religiosa comanda a ação política, a esquerda, mesmo quando liberal, sempre perde.
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