A tradição revolucionária e socialista possui fecunda reflexão sobre a atuação no parlamento. Entretanto, essa longa e rica experiência (prática e teórica) tem sido sistematicamente ignorada pela esquerda liberal e os setores progressistas, fato que demonstra a profundidade da derrota político-ideológica do que sobrou da esquerda no Brasil sob os escombros do fracasso histórico do petismo.
Nessa semana o governo conservador de Lula/Alckmin (petucano) assegurou vitória parlamentar sem precedentes ao deputado ultra liberal Arthur Lira, aquele mesmo que garantiu ao protofascista Bolsonaro quatro anos de serena administração em favor dos interesses da coesão burguesa encabeçada pela fração financeira. A imprensa burguesa registra que "nunca antes na história desse país" um deputado logrou tamanha vitória: 20 partidos deram 464 votos ao novo presidente da câmara de deputados. A decisão de Lula em favor de Lira revela - antes que astúcia! - a completa debilidade do governo diante dos desafios conjunturais e históricos que estamos vivendo. Na lógica das situações extremas o petismo é presa fácil dos interesses da coesão burguesa: em lugar de dirigir e manobrar os interesses da classe dominante negociando algo substancial em favor dos interesses e do protagonismo popular, o governo é dirigido pela burguesia em seus mínimos detalhes. É um governo cativo e, mais grave, sem qualquer iniciativa política.
O governo da coalisão democrática-liberal ("frente ampla") foi constituído para evitar a radicalização em curso no país, razão pela qual não se moverá à esquerda. A suposição de que Lula aprendeu uma dura lição da cadeia e agora é um político mais maduro e consistente, é uma ilusão que custará caro aos trabalhadores. Mas as ilusões sempre alimentam interesses concretos! Nas circunstâncias atuais, as ilusões obedecem aos interesses estratégicos da coesão burguesa, especialmente a súbita e enfática "defesa da democracia" por parte dos três poderes da república burguesa apodrecida em seus pilares. A degradação permanente da atividade parlamentar é a face visível da crise do atual sistema político; tão visível quanto os métodos corruptos utilizado por Lira ou Pacheco para soldar a sólida maioria que obteve com apoio decisivo do Planalto. Ninguém deveria esquecer que em julho do ano passado o senador Marco do Val declarou ter recebido nada menos do que 50 milhões para ter votado em Pacheco... Os exemplos abundam!
Em troca do apoio a Lira, o PT "garantiu" a presidência da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) considerada decisiva para controlar assuntos importantes, especialmente a destituição do presidente da república. A esquerda liberal considera que ganhou tempo (apenas 1 ano!!) na suposição de que a administração competente da crise poderá devolver aos trabalhadores emprego e renda; ademais, julga que poderá aumentar seu apoio via políticas sociais suficientes para "acumular força" capaz de balancear a disputa no covil de ladrões dirigido por Lira. A análise fria indica a ausência de qualquer garantia nessa direção; ao contrário, até agora as ações do governo exibem apenas sua debilidade política.
Quem comanda a oposição?
Na disputa no interior do covil de ladrões, a oposição de direita votou em Lira e guardou munição para se opor a Pacheco. No senado - uma casa destinada a desaparecer num regime político unicameral efetivamente popular - a tropa de Bolsonaro revelou alguma força a despeito da reeleição de Pacheco com menos votos (49) do que em sua eleição (57). O ex ministro de Bolsonaro, Rogério Marinho obteve 32 votos: não é pouco!
A candidatura de Chico Alencar (PSOL-Rede) confirmou a bancada do partido como apêndice do governo, uma conduta orientada pela intenção de afirmar a condição de principal "espírito crítico" do governo conservador petucano. O PSOL possui 13 deputados (dois justificaram ausência) e arrancou outros 10 de maneira aleatória: obteve 21 votos. O discurso de Chico foi marcado pela tentativa de "dignificar o parlamento", resgatar as virtudes republicanas e atacar a direita "golpista" de maneira genérica. De resto, a tradicional defesa do identitarismo, dos povos indígenas, do meio ambiente, a pauta que garante votos urbanos ao PSOL e acesso ao financiamento estatal do partido.
O deputado Marcel Van Hatten do Partido Novo - a ultra direita liberal - bateu duro no governo e com apenas 3 votos levou 19 na conta final. No entanto sua candidatura tinha o claro objetivo de manter em alta a pressão ideológica que emergiu com força a partir de 2013, avançou na destituição de Dilma em 2016 e conquistou a presidência em 2018. Agora, sem qualquer possibilidade de vitória, os ultraliberais dirigiram suas baterias contra o governo exibindo o tom que a direita praticará e, em circunstancias de crise, tende a se alastrar tanto nas ruas quanto no parlamento se algo substancial não mudar na ação do governo. A direita pratica intensa luta ideológica razão pela qual tem capacidade de disputar a hegemonia política na sociedade e acumular forças para embates futuros no parlamento logo que as condições políticas permitirem. Ao contrário, a esquerda liberal - na qual o PSOL se inscreve - despreza completamente a luta ideológica em favor do socialismo e da revolução social e, em consequência, depende tão somente do êxito do governo na política econômica (emprego e salário) e nas políticas sociais de extração filantrópica, ambas de alcance super reduzido.
O cenário é, portanto, claro: a oposição será comandada pela direita. A oposição de "esquerda" ao governo conservador de Lula/Alckmin não existirá no parlamento a despeito do enorme espaço social para tal na sociedade. No entanto, a concepção parlamentar de política que alimenta a esquerda liberal e a consciência ingênua que a informa nos assuntos essenciais da economia e do estado, não permite sua evolução numa linha de massas até agora capturada pela direita tal como demonstrou no dia 8 de janeiro.
A crise da república aparece todos os dias em eventos que confirmam o enredo já estabelecido: cada novo escândalo degrada o regime político aos olhos do povo e potencializa uma alternativa de direita. É claro que Lula/Alckmin sonham com a prisão de Bolsonaro e, para tal, depositam suas esperanças na ação do ministro Alexandre de Moraes ou de possíveis iniciativas do Ministério Público. Entretanto, a eventual prisão de Bolsonaro em função de seus "ataques ao estado democrático de direito" colocaria amplos setores sociais na oposição ao governo Lula em pé de guerra. A propósito, a desejada prisão de Bolsonaro não se assemelha em nenhum aspecto a prisão de Lula em 7 de abril de 2018. Este aposta todas as fichas na renegeração do regime liberal burguês enquanto o primeiro postula abertamente sua supressão em favor de uma modalidade qualquer de um "regime forte". Ademais, Bolsonaro é expressão da hegemonia ultra liberal no interior das forças armadas - especialmente do Exercito - razão pela qual sua prisão implica em mudanças importantes inimagináveis sob o "comando" de Lula.
O otimismo ingênuo dos liberais de esquerda e da "direita democrática" tomam os sucessivos escândalos e "revelações" potencializados pela imprensa burguesa (Globo e CNN no comando) como se, de fato, fossem capazes de restaurar as virtudes republicanas do regime atual sem ruptura com os fundamentos do "golpismo" e da podridão: a economia política do rentísmo, a sabotagem permanente do presidencialismo via acordos parlamentares, a degradação da prática parlamentar e o ativismo do judiciário sob comando de Alexandre de Moraes. No entanto, a verdade é que o governo não possui iniciativas para romper a hegemonia da direita e segue prisioneiro do programa ultra liberal praticado por Bolsonaro/Guedes/Braga afirmando tão somente a impotente ideologia da "reconstrução nacional".
Nesse contexto, é claro que o Informe Capelli sobre a ofensiva da direita sobre Brasília revelou apenas os limites do Ministério da Justiça diante dos militares. Na prática, nada de novo foi apresentado por Ricardo Capelli para além das suspeitas, denuncias e provas que a imprensa burguesa segue publicando em profusão. Na verdade Capelli elaborou um "informe técnico" quando o momento exigia um informe político destinado a devolver a iniciativa política ao governo e armar uma contraofensiva capaz de orientar as ações do STF e do MP. Mas Lula vetou essa possibilidade pois tal como afirmou Flávio Dino, a competência de seu ministério não avança sobre as competências de outras pastas, especialmente aquelas relativas aos ministérios militares! Portanto, o governo renunciou a oportunidade de retomar a iniciativa política diante da direita porque a linha adotada na campanha e também no governo é considerada pelos liberais de esquerda como a única possível, limitada tão somente a manter a fantasiosa "frente ampla" e a precária "defesa da democracia". Nem mesmo a ofensiva da direita logrou mudar um átomo naquela opção desastrosa e suicida!
A reeleição de Lira com firme apoio de Lula e inclusive o ridículo grito de "vitória" de parlamentares petistas após a inédita conquista do nobre deputado, multiplicou a força da direita no parlamento. Tampouco há indicações minimamente confiáveis de que o massivo apoio do governo à Lira logrou "dividir o bolsonarismo" seja lá o que essa expressão possa representar. Bolsonaro é a cabeça visível da direita e seu representante mais importante, mas não único. Ainda assim, o fantasma de Bolsonaro orienta cada passo da esquerda liberal e seu governo tão impotente quanto débil. No entanto, o protofascista nunca deixou de ser um representante da classe dominante que mantém firme as rédeas do estado e da economia e não vacilaria em joga-lo ao abismo caso o conflito político exija.
O governo conservador petucano Lula/Alckmin mesmo diante de circunstâncias excepcionais - e oportunidades que jamais deveriam ser desperdiçadas! - revela precocemente a mais completa incapacidade para enfrentar a ofensiva da direita cujo conteúdo não é outro senão o próprio programa burguês praticado por Bolsonaro/Guedes. A mera administração "democrática" de um regime político em frangalhos e a afirmação de políticas de inclusão social de caráter filantrópico são, mais do que em outros tempos, completamente incapazes de assegurar estabilidade política ao governo e menos ainda disputar a hegemonia nas classes populares quando entramos numa lógica das situações extremas. A direita esta livre para operar. A esquerda liberal permanece prisioneira de suas ilusões.
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