As lágrimas de Lula brotaram ao som de Como nossos pais na cerimonia de posse da nova diretoria do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo. Ao final da canção, diante da catarse quase coletiva dos presentes, Maria Rita - a filha de Elis Regina - também aos prantos, é abraçada pelo presidente da república em longo e carinhoso consolo. As lágrimas, no entanto, não se confundem pois pertencem a tempos e razões muito distintas.
Nada no mundo da política ocorre por acaso.
A presença da cantora Maria Rita no evento coincide com a campanha publicitária da Volkswagen a propósito dos 70 anos da multinacional alemã no Brasil num momento em que a submissão do trabalho ao capital é completa tanto no sindicato quanto no governo. O sindicalismo outrora classista e combativo não mais existe e o governo professa enorme fé na necessidade de reconciliação nacional como via para superar a crise da republica burguesa. A conciliação é tradição política cara a burguesia e, como demonstra a história, sempre trouxe enormes prejuízos para os trabalhadores.
Na propaganda televisiva da multinacional alemã na qual Maria Rita repete a preferência da mãe exibindo o novo modelo, as eventuais brigais de pais e filhos - com a correspondente culpa que ambos possam carregar - desaparecem no embalo da canção do sobralense Belchior: "minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos país". A nova versão da antiga Kombi une passado e presente numa trama articulada pela multinacional destinada a ocultar ou esquecer os pontos sensíveis do drama nacional em curso.
Ao contrário da década de setenta e oitenta do século passado, o cenário nacional é sombrio para os trabalhadores. Há um mês a Volkswagen anunciou que vai paralisar três fábricas pelos próximos três meses. A decisão é uma bofetada na cara do governo que criou minúsculo programa de estímulo ao consumo de carros populares no suposto que as multinacionais manteriam o emprego e, talvez, ampliassem a produção. Entretanto a economia política burguesa possui leis próprias e não respeita os sentimentos dos trabalhadores, as saudades dos velhos e bons tempos e, menos ainda, as intenções filantrópicas governamentais.
Em todo caso, no limite, sempre quando emparedada, uma empresa pode assumir culpas e sentar na mesa dos réus. É o que ocorreu em setembro de 2020 após intensas denuncias de organizações de direitos humanos e até mesmo da imprensa burguesa, quando a filial da multi no Brasil fechou um acordo com o Miinistério Público Federal (e de São Paulo) destinado a promover cínica reparação em função de sua participação direta na delação, perseguição, prisão e tortura de trabalhadores durante a ditadura militar. O acordo judicial ocorreu no ano em que a receita líquida da multinacional bateu R$ 22 bilhões de reais; portanto, os míseros R$ 36 milhões de reais destinado às vítimas da perseguição empresarial contra os trabalhadores mais ativos politicamente corresponde a uma gota no oceano.
Na Alemanha, em 1998, a Volks - uma empresa fundada em 1938 durante o III Reich de Hitler - reconheceu "as responsabilidades históricas e morais derivadas do uso de mão-de-obra escrava durante a Segunda Guerra Mundial" e, em consequência, aceitou a criação de um fundo destinado a reparações. As cifras igualmente modestas turbinaram as demandas nos tribunais por parte de associações de judeus e ao longo das últimas décadas os desembolsos são mais ou menos constantes, mas intensa é a resistência da empresa em reconhecer seus crimes.
A canção de Belchior, apareceu em 1976 em pleno governo do general Geisel, quando o país vivia o fim do "milagre brasileiro" cujo epicentro era a indústria automobilística paulista. O tradicional orgulho burguês da industrialização apenas começava a sentir o amplo protesto operário contra a ditadura. A greve dirigida por José Ibrahim em Osasco naquele duríssimo 1968 já anunciava de certa maneira o calor dos novos tempos. A verdade é que a crise da ditadura de classe inaugurada em 1964 contra o nacionalismo reformista de João Goulart, começava a ruir lenta e inexoravelmente. Lula, o personagem central na posse da diretoria do sindicato realizada ontem, apareceria somente muito mais tarde quando Zé Ibraim, o líder operário certamente mais importante e esquecido daquele período, amargava longo exílio, após prisão, tortura e posterior troca permitido pelo sequestro do embaixador estadunidense Charles Elbrick realizado em 1969. O exílio de Ibrahim durou 10 longos anos.
Longe do conflito de classes, Belchior compôs um lamento de sucesso imediato na voz de Elis e o disco caiu nas graças da juventude da classe média cada dia mais indisposta contra o regime militar. O sucesso, sabemos, raramente vai acompanhado da crítica. De minha parte sempre mantive certo incômodo com a canção porque ela tem, de fato, uma ambiguidade incorrigível, além de enorme dose de conformismo. No fundo, é uma canção para os derrotados sem perspectiva alguma de futuro, exceto o apelo genérico, ingênuo e indeterminado ao novo que "sempre vem" como se pudesse ser, necessariamente, bom. Naquela época, diante do sucesso de Belchior, nunca deixei de fazer meus reparos à música a despeito do gosto de amigos queridos.
Muito tempo depois do êxito do álbum Falso Brilhante de Elis, convidei a sandinista Monica Baltodano para um seminário da UFSC. Eu conheci Monica em Manágua em 1990 e, desde então, mantivemos apreço mútuo e correspondência sempre que possível. Ela era deputada após uma década no comando da luta armada vitoriosa em julho de 1979 contra a ditadura de Anastásio Somoza, uma peça decisiva da contrarrevolução centro-americana apoiada fortemente por republicanos e democratas desde os Estados Unidos. Mais tarde, após a derrota da ditadura e a fuga da ditador - ele seria executado em Assunção, Paraguai em 1980 - Monica foi ministra do governo de Daniel Ortega e mesmo depois, na condição de deputada, lentamente se afastou do sandinismo para manter suas convicções! Hoje vive exilada na Costa Rica, com seus parcos bens confiscados pelo governo atual e sem direito a cidadania nicaraguense. Há pouco nos encontramos em Porto Alegre onde recordamos com alegrias e preocupações a situação latino-americana.
No seminário de Floripa realizado provavelmente em 2013, após as conferências, ao entrar num restaurante ao som de Belchior, comuniquei a Monica que a canção no ar era uma espécie de símbolo de nosso tempo no Brasil. Ela imediatamente pediu a tradução de Como nossos pais e, após breve pausa, anunciou a sentença: "é uma música reacionária! Eu não vivo como meus pais! Fizemos uma revolução social e nada tenho com a história deles". Os amigos na mesa exibiram um riso amarelo e seguimos na conversa como se nada tivesse acontecido; entretanto, o contraste era muito profundo para evitar reflexão sobre um simples episódio capaz de expressar contradições históricas ainda presentes entre nós. O entusiasmo do público ao entoar ontem a antiga canção no sindicato em que Lula começou sua carreira política, não deixa dúvidas sobre a necessidade da reflexão crítica.
Ao ver o vídeo da cerimonia de posse da nova diretoria dos metalúrgicos, ouvir o surrado e alienante discurso de Lula, a apresentação de Maria Rita e a enorme difusão nas redes digitais das lágrimas derramadas ao som da canção de Belchior, pensei uma vez mais na triste situação em que nos encontramos. De um lado, a apologia petista do governo conservador petucano Lula/Alckmin expressa o beco sem saída da esquerda liberal, impotente, sem iniciativa e sem horizonte utópico. O futuro apresentado novamente por Lula aos trabalhadores simula um paraíso tipo classe média regado a picanha, cerveja, viagem de avião, um carro popular na garagem e, se possível, serviços de saúde e educação aceitáveis. Na periferia capitalista as promessas presidenciais são irrealizáveis porque também nos países centrais está em crise. Ademais, a surrada promessa do presidente choca até mesmo com as sombrias declarações da ministra Simone Tebet segundo as quais a austeridade orçamentária será a regra para 2024 exigindo cortes adicionais. Ora, de um lado um orçamento curtíssimo e no chão da fábrica, há muito as notícias não são nada promissoras. Nada poderia ser pior...
Eu não sei se Belchior leu Pasolini para compor sua conhecida canção, mas o fato é que um ano antes, nos primeiros dias 1975, Pier Paolo escreveu "os jovens infelizes", um belo e fecundo artigo ajustando contas com a esquerda em geral e com a juventude em especial, cativa do consumo e sempre disposta a responsabilizar os pais por fracassos ou omissões próprias. Pasolini, mesmo remando contra a maré não se inibiu e antecipou de maneira implacável uma advertência útil para os dias que correm: "é melhor ser inimigo do povo do que ser inimigo da verdade". Mandou bala contra a juventude bocó e boçal, contra os medíocres e os cultos, contra os iniciados e aqueles que renunciaram. Enfim, contra todos.
No evento sindical, participaram várias gerações de pais e filhos. No entanto, antes do conflito geracional, todos pareciam estar em comunhão nas lágrimas e na canção. Assim, destituídos de um horizonte utópico, armados apenas com a renuncia comum ao combate contra o sistema capitalista e unidos tão somente na condição de impugnadores morais do sistema, destinados a repetir enfadonhamente os pais com a roupagem do novo modelo, esquecem que sequer podem comprar um imóvel para viver longe da saia da mãe ou da aba do pai. Nem mesmo a esperança de comprar um carro popular podem alimentar. O lamento coletivo entoado a pleno pulmões, confortou a todos e produziu uma espécie de conciliação entre gerações até ontem em conflito azeitado por alguma culpa comum, mas sempre atribuída ao outro. Essa paz entre as gerações - ao contrário do conflito que Belchior denuncia ao escrever que "quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude tá em casa guardado por deus contando o vil metal" - somente é possível porque a antiga culpa, a despeito de enormes resistências ainda presentes, não dirige mais o destino de jovens e velhos, ambos gemendo na vala comum do sofrimento humano sempre mais grave na periferia capitalista.
A celebração do fim da utopia não pode ser exibida com cores cinzas, razão pela qual deve luzir com o poder de sedução de um falso brilhante, regado a lágrimas arrancadas de um misto de frustração e impotência. De minha parte, confesso sob circunstâncias inesperadas, que a antiga e aclamada composição rendeu homenagem a Belchior; a canção se tornou, de fato, não mais expressão da angustia pessoal do autor naqueles anos de chumbo e figura agora como verdadeiro hino da esquerda liberal. A vida, por enquanto, ao fim e ao cabo, concedeu razão a Belchior.
Seguem Lula, PT e a dita esquerda liberal enchendo suas estantes com troféus "simbólicos".
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